The Economist – Sofisticação e crise no paraíso agrícola

Investimento em alta tecnologia convive no Brasil com infra-estrutura e práticas sanitárias precárias

15 de novembro de 2005 | Sem comentários Análise de Mercado Mercado
Por: The Economist via Valor

The Economist
A liberalização plena elevaria a renda real líquida das atividades agrícolas em 46%, segundo o Banco Mundial ”

Se Deus é brasileiro, como afirma o folclore nacional, sua cidade natal deve ser Petrolina. Essa, ao menos, é a crença de Arnaldo Eijsink, que comanda no Brasil as operações de agronegócios do Carrefour, rede francesa de supermercados com muitas unidades no país. A natureza fez dessa cidade, situada no pobre Nordeste brasileiro, uma estufa a céu aberto, com sol constante, solo fértil e baixa umidade – uma barreira natural contra doenças.

Após a chegada da irrigação, com água do rio São Francisco, na década de 80, Petrolina converteu-se em prodígio de horticultura. Uvas maturam em 120 dias, em comparação com 180 no resto do mundo, o que permite duas colheitas por ano. Aspargos são colhidos com o dobro da freqüência usual em climas temperados.

Outros brasileiros podem discordar de Eijsink, mas apenas para afirmar que suas próprias regiões é que são paraísos agrícolas. São Paulo, no Sudeste, produz açúcar e suco de laranja mais baratos do mundo. Os infindáveis cerrados do Centro-Oeste são ideais para o cultivo de soja, de longe a maior commodity agrícola brasileira.

O Brasil é o maior exportador mundial de carne bovina, café, suco de laranja e açúcar, e se aproxima rapidamente dos líderes em soja, carne de aves e de porco. Diferentemente do que ocorre com os concorrentes, as terras não estão escasseando no Brasil. A agricultura ocupa atualmente 60 milhões de hectares. A atividade poderia estender-se por outros 90 milhões de hectares sem tocar a floresta amazônica, diz Silvio Crestana, diretor da Embrapa, o principal instituto de pesquisa agrícola do país.

Se os países ricos repentinamente demolissem as barreiras comerciais e zerassem os subsídios, as atividades agrícolas brasileiras entrariam em marcha acelerada. Uma liberalização plena elevaria o valor real da produção agrícola e alimentícia em 34% e a renda real líquida das atividades agrícolas em 46%, segundo cálculos do Banco Mundial. Num cenário mais realista, a renda brasileira cresceria US$ 3,6 bilhões por ano.

Daí a grande importância da Rodada Doha de conversações multilaterais de comércio. Os brasileiros temem que o resultado de Rodada seja chover no molhado -aprovação de reduções nas tarifas máximas que soem bombásticas, mas sem reduzir em muito as efetivamente aplicadas. “Uma redução de 50% pode significar nada”, diz Marcos Jank, do Icone, instituto de pesquisas e planejamento pró-liberalização do comércio.

Nesse momento, os agricultores brasileiros sentem-se mais amaldiçoados do que abençoados. O início da década de 2000 foi de anos milagrosos, com preços internacionais aquecidos para diversas das principais commodities e um câmbio competitivo, o que deu um empurrão extra nas exportações. Mas os preços recuaram e, o que foi mais prejudicial, o real registrou forte valorização frente ao dólar.

A seca abateu-se sobre o Sul do país durante a mais recente temporada de plantio. O valor da produção agrícola (não incluindo a pecuária) deverá cair 16%, para R$ 80 bilhões (US$ 35 bilhões), em 2005. As exportações de carne bovina foram atingidas por um surto de febre aftosa. Os juros reais, no Brasil, são os mais altos do mundo, e o sistema de transporte de commodities é digno de um país atrasado do Terceiro Mundo, não de uma superpotência agrícola.

No curto prazo, a produção provavelmente crescerá lentamente, se é que crescerá. A Agroconsult, uma firma de consultoria, prevê “forte redução” na extensão de terras a serem plantadas com algodão, arroz e, pela primeira vez em seis anos, soja. Em junho, 20 mil proprietários rurais e 3 mil tratores foram a Brasília exigir ajuda financeira do governo.

A vocação agrícola brasileira sobreviverá à crise. O país ampliou suas riquezas naturais com décadas de investimentos em pesquisa e desenvolvimento, criando a “primeira agricultura tropical competitiva” do mundo, nas palavras de José Roberto Mendonça de Barros, diretor da MB Associados. O crescente apetite chinês por produtos do agronegócio brasileiro, aguçado pela urbanização, parece tão inevitável quanto a ascensão chinesa ao status de superpotência.

Entretanto, o ritmo do desenvolvimento brasileiro é incerto. Ele será determinado, em parte, por três fatores: câmbio, juros e crescimento econômico. O empenho de produtores e do governo em enfrentar os déficits de transportes e gerenciamento desempenharão um grande papel. Alguns tipos de pequenas propriedades agrícolas ficarão para trás. Outros obstáculos estão no mundo rico, cujos subsídios e barreiras comerciais prejudicam as exportações brasileiras.

No Brasil, um debate sobre o que conceder em troca da liberalização do comércio agrícola reacendeu a velha suspeita de que a exportação de commodities é uma atividade de segunda categoria para um país ambicioso. Livre comércio agrícola, tudo bem, dizem, mas não às custas do setor industrial. Ao discutir o agribusiness, os brasileiros buscam definir que tipo de país o Brasil deveria ser.

A agricultura é a Cinderela da economia brasileira. À época dos governos militares, os ditadores brasileiros acreditavam que o desenvolvimento industrial seria a marca de um país avançado, e até o final da década de 80 exploraram a agricultura para proporcionar recursos à indústria e oferecer alimentos baratos às massas urbanas. Exportações e preços eram controlados. Os plantadores de algodão, por exemplo, eram sujeitos a cotas de exportação, o que os obrigava a fornecer o produto a preços baixos ao setor têxtil. O governo compensava parcialmente tais restrições assegurando preços mínimos. Na década de 90, os subsídios diminuíram e as restrições foram abolidas. Ao mesmo tempo, o Brasil reduziu as tarifas sobre insumos importados, o que melhorou os termos de troca para a agricultura.

Investidores estrangeiros, alguns dos quais ausentes há algum tempo do Brasil, aproveitaram a oportunidade. Tradings como Cargill, Bunge e Archer Daniels Midland trouxeram financiamento relativamente barato, infra-estrutura e vínculos internacionais para o setor da soja e de outros grãos. Multinacionais como a francesa Danone e a suíça Nestlé, abocanharam a distribuição de leite e outros laticínios. Em 1997, o governo eliminou os impostos sobre as exportações de commodities, o que reduziu os custos entre 10% e 20%, no que “talvez tenha sido o maior estímulo à agricultura no Brasil”, diz Sergio Barroso, presidente da Cargill do Brasil. Uma forte desvalorização do real em 1999 deu outro impulso favorável.

Isso coincidiu com uma migração épica, que começou no fim da década de 70: do Sul, tradicional celeiro do país, para o Centro-Oeste. O movimento migratório ainda não cessou.

As grandes empresas estão seguindo a trilha dos pioneiros. A Brascan, companhia brasileiro-canadense, está transferindo sua produção de carne bovina de São Paulo, onde os custos são altos, para o Mato Grosso. A Sadia, maior processadora de carne de aves, está concentrando a nova produção na mesma região. O atrativo, diz Luiz Murat, diretor financeiro da companhia, é “o mais baixo custo (de produção) de grãos no mundo”.

Isso foi inegavelmente benéfico para a economia brasileira. A participação da agricultura no Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro é de 8,8%, não maior do que em economias comparáveis, salienta relatório da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE). É incomum, porém, que a participação não tenha diminuído com o avanço do desenvolvimento. E o mais importante é que o comércio de produtos agrícolas e setores interrelacionados respondem por 40% das exportações brasileiras, e, em 2004, por 100% do superávit comercial de US$ 34 bilhões. O êxito rural não é simplesmente um quebra-galho, para dar sustentação à economia até a decolagem do desenvolvimento industrial. “O conhecimento aplicado à natureza” pode ser um pilar do desenvolvimento do Brasil, assim como o foi para os países nórdicos, argumenta Mendonça de Barros. No passado, a Nokia, estrela finlandesa em telefonia celular, teve uma grande presença na produção de celulose.

O Brasil não produziu uma Nokia, mas em atividades agrícolas traz notáveis exemplos de tecnologias criadas por brasileiros, em vez de importar idéias do exterior. Enquanto as autoridades econômicas criaram “reservas de mercado” para proteger a indústria local contra concorrentes estrangeiros, na década de 70, a Embrapa investiu no aperfeiçoamento de cientistas em universidades americanas e européias. A conquista do cerrado resulta de avanços revolucionários, como a invenção de variedades de soja que se desenvolvem em condições tropicais.

No setor canavieiro, um programa da década de 70 visando produzir álcool combustível para os automóveis a partir da cana-de-açúcar, em substituição à gasolina, somou-se à criatividade técnica brasileira, do que resultou a criação de um núcleo de alta tecnologia no Estado de São Paulo. Além de produzir açúcar e álcool aos mais baixos custos no mundo, o governo federal desenvolve novas iniciativas de aproveitamento da cana, que baixam ainda mais os custos e ampliam a linha de produtos.

No topo da cadeia canavieira estão os automóveis híbridos, veículos capazes de promover a combustão de álcool e gasolina em quaisquer proporções, que já representam quase dois terços dos carros vendidos no Brasil.

Padrões de sofisticação nórdica convivem com infra-estrutura decrépita, cumprimento errático da lei e práticas sanitárias relapsas, que mais lembram o Terceiro Mundo.

Um lembrete disso, e um choque para os brasileiros, foi quando em outubro irrompeu um surto de febre aftosa no Mato Grosso do Sul, o que levou alguns dos principais importadores da carne bovina brasileira a suspender parcialmente as importações, comprometendo o que se anunciava como um ano recorde para as exportações. Os pecuaristas logo atribuíram a culpa ao vizinho Paraguai, de onde pode ter vindo o gado infectado, e ao governo, que reduziu a alocação de recursos para fiscalização da saúde animal. Mas parte da culpa, aparentemente, é dos próprios criadores, alguns dos quais ignoraram parte da regulamentação que exige a vacinação de seus rebanhos.

Os pecuaristas são tradicionalmente uma “raça teimosa”, com pouca paciência para respeitar o comportamento exigido pela legislação. A atividade pecuarista é um caso notório, mas não se trata de um exemplo isolado. Os agricultores brasileiros, campeões mundiais no cultivo de soja, desrespeitaram repetidamente contratos de venda de grãos assinados com tradings quando tiveram oportunidade de negociar preços melhores com outros compradores. Instituições frágeis e contratos pouco confiáveis constituem “o mais importante problema para o setor agrícola”, afirma Decio Zylbersztajn, economista da USP.

Se essa é a principal dificuldade, um segundo, e não muito menor problema, é a frágil infra-estrutura, que prejudica as vantagens em custo da terra e de mão-de-obra. Apenas 10% das estradas do país são pavimentadas, em comparação com 29% na Argentina, segundo relatório da OCDE. O Brasil negligenciou suas ferrovias, meio mais sensato do que as rodovias para o transporte de grãos. Os rios navegáveis não atravessam o coração do país.

O avanço da agricultura para o cerrado tem sido uma marcha para longe dos consumidores. Apesar da maior escala das propriedades rurais no Centro-Oeste, seu ponto de equilíbrio entre despesas e receitas é 12% mais alto do que nas fazendas da região sul, estima Fernando Pimentel, da AgroSecurity, uma firma de consultoria, devido, em larga medida, aos custos de transporte mais elevados. É também do Centro-Oeste que a pecuária e a agricultura avançam sobre a floresta amazônica, sendo essa a mais séria ameaça à imagem do Brasil no exterior.

O Brasil está atacando esses problemas, mas de maneira errática. Os consumidores, tanto estrangeiros como brasileiros, estão domando a indisciplina agrária. Os estrangeiros impõem suas exigências através das empresas que interligam os produtores rurais brasileiros com redes varejistas que operam em países importadores. No caso da soja, os vínculos vitais são das grandes tradings estrangeiras com algumas empresas brasileiras, como a Incopa. Nos mercados de carne de aves e de porco, multinacionais brasileiras como Sadia e Perdigão dão orientação sobre rações animais e cuidados veterinários, entre outros aspectos, a milhares de pequenos criadores, assumindo depois o abate, a embalagem e o embarque do produto final, freqüentemente sob suas próprias marcas.

As exigências para exportar, investir em tecnologia e em segurança alimentar, e para levantar financiamento externo, estão incentivando o surgimento de grandes companhias, suficientemente transparentes para se submeter à fiscalização do público consumidor, e fortes o bastante para assumir o controle de concorrentes.

Os abatedouros de gado estão voltando. Uma década atrás, a Sadia saiu desse mercado porque não tinha condições de competir com empresas que fugiam ao recolhimento de impostos. Depois de um crescimento de 100% nas exportações de carne bovina nos últimos cinco anos, os abatedouros estão buscando respeitabilidade e escala, tendência que acelerará depois do susto com o surto da febre aftosa. Mais de 20 abatedouros de médio e grande porte foram vendidos ou alugados no ano passado, diz Marcus Vinícius Pratini de Moraes, presidente da associação de exportadores de carne bovina do Brasil. Entre os compradores está a Friboi, que adquiriu as operações da Swift Armour na Argentina. A Sadia voltou ao mercado.

Investidores estrangeiros estão começando a buscar novas oportunidades no agronegócio brasileiro. Segundo a Conferência sobre Comércio e Desenvolvimento da ONU, estão prestes a ser injetados no setor alcooleiro US$ 3 bilhões na forma de investimentos estrangeiros e nacionais. Outro alvo é o processamento de carne bovina.

Será que a rodada Doha reduzirá as barreiras o suficiente para gerar novos fluxos comerciais? A recente proposta americana, agressiva quanto a tarifas e subsídios a exportações, porém tímida quanto a subsídios domésticos, criaria mais comércio do que a posição da UE, que tende para a redução dos subsídios domésticos, mas quer impedir um maior acesso a mercados.

Mas o Brasil tem suas próprias resistências em relação às negociações e concessões que tem pela frente. As conversações de comércio também colocaram interesses industriais centrados em São Paulo e Manaus, base do setor eletrônico, contra o centro agrário, que está ” ganhando peso político ” , diz Marcelo de Paiva Abreu, um economista da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. O livre comércio deverá ter impactos desfavoráveis em alguns setores. Mas o sol, o solo e a água – e a aplicação de conhecimento científico -, deverão assegurar o sucesso da agricultura brasileira.

(Tradução de Sergio Blum)

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