História e fábula

Por: Marcelo de Paiva Abreu*

Para que se retirem lições da História é vital, como primeiro passo, que os fatos sejam estabelecidos de forma inequívoca. Há mais de 2.400 anos, Tucídides fez defesa magistral da postura de que a análise histórica requer que os fatos sejam apresentados de forma objetiva, não se dando “muito crédito, de um lado, às versões que os poetas cantaram, adornando e amplificando seus temas, e, de outro, considerando que os cronistas mais antigos compuseram suas obras mais com a intenção de agradar aos ouvidos do que de dizer a verdade, uma vez que suas histórias não podem ser verificadas, e eles, em sua maioria, enveredaram, com o passar do tempo, para a região da fábula” (História da Guerra do Peloponeso, livro I:21). Nos tempos que correm, entretanto, é menos árduo verificar os fatos e separar as histórias das fábulas.

O deputado Delfim Netto é um dos luminares de um Congresso Nacional com poucas luzes. É referência nacional em relação a vários atributos: astúcia, jogo de cintura, rapidez nos comentários ferinos. Jovem, escreveu tese sobre o café no Brasil que figura em qualquer lista das melhores obras sobre a economia brasileira. Foi figura importante na consolidação do ensino de economia na USP, nas décadas de 1950 e 1960. Depois, durante longo período na ditadura militar, foi ministro todo-poderoso, responsável pela política econômica. Entre 1967 e 1974, emplacou a imagem de pai do “milagre brasileiro”, quando a economia cresceu a taxas próximas de 10% ao ano, na esteira de um boom na economia internacional. Na sua volta, entre 1979 e 1985, já não teve tanto sucesso, a se julgar com base na inflação alta e na intensidade da recessão.

A esta altura seria talvez razoável esperar que o deputado estivesse em condições de refletir com isenção sobre sua longa vida pública e ajudar a extrair lições para evitar a repetição de velhos erros. Mas o que recente entrevista no jornal Valor Econômico (30/9) mostra é algo bem diferente. Em meio a alguns destemperos endereçados a críticos de suas gestões à frente da economia, a entrevista descamba decididamente para o embelezamento autobiográfico e termina por fazer pouco da memória de seus leitores.

O deputado rebate críticas a seu voto favorável ao Ato Institucional nº 5, em 1968, esclarecendo: “O que eu falei é que ia fazer uma mudança tributária que iria permitir o crescimento.” Na transcrição das fitas, o que se lê é algo distinto e bem menos técnico: “Estou plenamente de acordo com a proposição (…) direi mesmo que creio que ela não é suficiente ( …) deveríamos dar a Vossa Excelência (o presidente Costa e Silva) a possibilidade de realizar certas mudanças constitucionais que são absolutamente necessárias para que este país possa realizar o seu desenvolvimento com maior rapidez.” Só se pode lamentar que apoio tão caloroso ao golpe tenha sido de um professor universitário com bagagem acadêmica relevante.

Na entrevista, o rol de racionalizações continua. É claro que sabia que inflação de custos em 1967-1968 era um jogo de palavras. Não seria verdade que tivesse havido manipulação dos índices de preços ao final de 1973 para mostrar que a inflação estava caindo mais do que realmente estava, pois os produtos, de fato, eram vendidos ao preço tabelado. As acusações de que obras como a Transamazônica e a ponte Rio-Niterói foram feitas com déficit são repelidas. Não existia déficit público: “Esta precariedade é um mito.” Nenhuma reflexão sobre a justificativa econômica de tais empreendimentos, sobre a excessiva centralização, sobre a falta de reforma do Estado. Nenhuma autocrítica quanto à proliferação de incentivos setoriais, à crença quase que religiosa nas virtudes da escolha de vencedores.

Sobre 1979: “Eu me dava muito bem com o Mário (Henrique Simonsen)(…) sujeito extremamente competente”, que deixou o ministério “porque viu que as contas não fechavam.” Nada sobre por que as contas não fechavam, sobre a derrota de Simonsen na fixação dos preços mínimos agrícolas. Explicando o rotundo fiasco da sua política de prefixação das correções monetária e cambial em 1979-1980, qualificada por Simonsen, anos depois, como “fracasso retumbante”, sai-se com uma cambalhota de circo: “Fixei a taxa de câmbio, mas nunca obedeci à minha fixação.”

A crise da dívida de 1982 só teria ocorrido porque os mexicanos não avisaram ao Citibank que iam quebrar. O que faltou foi só um telefonema e o governo americano os salvaria e “não teríamos ido para o buraco”. As “polonetas”, que micaram na mão do Brasil no início da década de 1980, acabaram salvando o Brasil na crise cambial de 1998, quando foram negociadas. Fica a dúvida se o então ministro já havia, no início dos 80, antecipado com clarividência este nobre uso.

A folha de serviços do ministro no início dos anos 80 deixa muito a desejar. Levou a economia à mais intensa crise da sua história e deixou ao País o inesquecível legado da alta inflação crônica. Não dá para se agarrar ao crescimento em 1984, sempre lembrado para compensar esse desempenho melancólico. Não seria demais esperar outros arrependimentos, além do controle de preços, e o reconhecimento de que nem todos os equívocos foram magistralmente calculados. Talvez fazendo bom uso de sua própria (boa) boutade de que “a gente fica mais virtuoso quando o futuro virou passado”.

*Marcelo de Paiva Abreu, doutor em Economia
pela Universidade de Cambridge, é professor- titular do Departamento de Economia da PUC-Rio

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