Uma cidade sobrevivente

Por: 21/01/2007 05:01:22 - O Estado de São Paulo

Grandes tragédias deixam marcas profundas em cidades. Em 1971, houve a queda do Pavilhão da Gameleira, em Belo Horizonte, que matou 68 operários. No mesmo ano, no Rio, desmoronou o Elevado Paulo de Frontin, matando 29. Um terremoto pôs a cidade do México abaixo, em 1985. A cratera aberta à beira do rio Pinheiros, diz o professor José Eduardo de Assis Lefèvre, choca mas não chega perto.


O que ela revela é outra coisa: uma cidade grande, em contínuo crescimento, atormentada por uma infra-estrutura precária e na qual as obras de grande porte são feitas sempre quando já é tarde. Uma cidade sempre flertando com seus limites, sempre os vencendo. Uma cidade única no Brasil, produtora de riqueza, que no entanto sempre deixou de lado a qualidade de vida.


“Em São Paulo, a mola para o desenvolvimento não foi a construção de um espaço de qualidade”, diz o professor da USP, arquiteto, urbanista, autor de A Avenida São Luís e sua Evolução. “Mesmo tendo uma relação mais próxima de afetividade com um lugar, aqui esta afetividade desaparece quando existe a possibilidade de ganhar dinheiro.” Assim, parques são destruídos, casas substituídas por arranha-céus e mais carros vão às ruas conforme aumenta a densidade urbana.


Está mudando. Uma discreta transformação no perfil dos governantes parece sugerir que grandes obras de infra-estrutura, do tipo que não se termina em um ou dois mandatos, estão sendo feitas mesmo assim. Novas tecnologias permitem que tais obras causem menos transtornos. E, no entanto, a lenta corrida contra o tempo deixa marcas amargas. Na construção do metrô à margem do Pinheiros, seis mortos.


Como um acidente como este afeta a cidade?


Dado o vulto da cratera, as conseqüências foram pequenas. Não foi uma tragédia como, por exemplo, o desabamento do Elevado Paulo de Frontin, no Rio, que teve enormes proporções. A queda do Pavilhão Gameleira, em Belo Horizonte, também causou uma comoção muito grande. Tem certos acidentes que marcam definitivamente a vida de uma cidade: o incêndio de Tóquio, em 1926; o de San Francisco, em 1906. O terremoto que atingiu a cidade do México, em 1985. Hoje damos grande importância para a cratera do metrô mas ela não tem este significado da grande tragédia.


Mas o acidente é capaz de ter impacto na continuação da obra, não?


É normal. Os seguros aumentam, novas precauções também encarecem a obra. Paradoxalmente, o custo acaba diminuindo. Quando se investe mais em segurança há menos acidentes e, caro mesmo, é um acidente grande como este.


Haverá o momento em que a cidade cresceu tanto que produzir infra-estrutura fica impossível?


Em São Paulo, os limites imaginados sempre foram vencidos. O custo das obras aumenta, mas a cidade sempre os venceu. Ao longo do tempo, avanços tecnológicos permitirão obras mais eficientes que interfiram menos no cotidiano. Esta obra do metrô em profundidade, por exemplo. Na década de 70, era preciso interditar ruas. Imagine uma avenida grande interditada por anos hoje em dia?


O que tende a acontecer com uma cidade grande assim é que ela deve atingir um pico e parar de crescer. É outro limite, o da saturação de determinados serviços. Aí empresas se deslocam para outros lugares para buscar eficiência, pessoas procuram vidas mais tranqüilas. Em Paris, já se estuda o momento do crescimento zero desde 1978. O equilíbrio tende a ser atingido numa situação de limite entre a demanda e a oferta de determinados produtos, no caso a infra-estrutura.


Estes limites, no entanto, são constantemente testados e parece que descobrimos que somos capazes de tolerar situações cada vez piores. O trânsito, por exemplo.


O ser humano se adapta a condições extremamente adversas. A locais muito quentes, muito frios, a pouco espaço. No Japão, que tem uma densidade populacional incrível, existem aqueles hotéis que oferecem casulos de permanência, um pequeno túnel para passar uma noite.


Aqui em São Paulo estamos atingindo uma situação limite com o trânsito. Há vinte anos, eu podia sair de manhã e visitar três, quatro obras. Hoje em dia você sai para resolver uma coisa, se resolver duas está ótimo. A eficiência do trabalho cai muito.


Se jogarmos esta perda de eficiência para a cidade, isto não afeta o crescimento econômico?


Não tenha dúvida. Mas alguns mecanismos se desenvolvem. Os motoboys, por exemplo. São Paulo é talvez a cidade que tem mais motocicletas para uso comercial no mundo. Claro que isso leva a uma redução de eficiência da cidade. As pessoas se adaptam com dificuldades a estas condições. As pessoas se adaptam a determinados estilos de vida que você, de fora, diz que é uma maluquice.


Mas cidades não precisam ser lugares perdidos. Não existe aí uma série de oportunidades perdidas? O metrô da Cidade do México, por exemplo, começou a ser construído na mesma época que o de São Paulo e hoje abarca a cidade toda.


É, mas na cidade do México as condições de solo são mais propícias ao metrô. Em São Paulo você tem o espigão da Paulista, as baixadas, o solo é mais complicado. E tem outra questão que é a estrutura de viária de São Paulo. A cidade do México tem grandes avenidas, espaços mais abertos. Aqui o sistema viário teve de ser alargado, sempre com grandes dificuldades, alargamentos que envolveram demolições.


Agora, houve efetivamente oportunidades perdidas. Em determinados momentos tentou-se adequar a cidade para o automóvel, que não resolve o problema de transporte. Isto não acontece numa cidade como Paris ou como Tóquio, onde a rede de metrô e de ferrovia é suficientemente densa e passa a ser mais interessante usar o transporte coletivo do que o automóvel. Aqui, se você faz um percurso diário, de casa para o trabalho, do trabalho para casa, e tem a condição de usar um transporte coletivo que o atenda, pode se adaptar. Mas se você tiver que fazer percursos triangulares, ir a três ou mais lugares, apesar do congestionamento levará menos tempo de carro.


Também houve oportunidades perdidas nas Marginais. Houve planos no passado prevendo a implantação de barcos no Tietê e a criação de espaços que viessem a amenizar as enchentes. As enchentes em São Paulo vêm desde antes do início do processo de urbanização. Sempre choveu e sempre teve chuva se acumulando nas várzeas. O aumento da urbanização, da impermeabilização do solo, só veio a agravar. Agora, realmente, a obra da Calha do Tietê resolveu o problema das enchentes no Tietê. Mas ainda tem problemas localizados noutros rios.


Como se deu este processo?


Do ponto de vista da urbanização, São Paulo se originou como um núcleo, o centro tradicional, ligado através de caminhos a vários aldeamentos afastados por dez, vinte quilômetros. O centro foi aumentando, a partir deste núcleo primitivo, crescendo mais rapidamente a partir do século 19.


São Paulo sempre teve uma característica de ser o entroncamento de rotas diferentes. Do sul para ir a Minas, do interior ao litoral, e esta característica é o que explica um pouco o enriquecimento. As cidades do interior, Jundiaí, Campinas, Mogi, São José, formam uma rede coerente de produção, de abastecimento e de consumo fruto dos bandeirantes e dos fazendeiros.


O responsável pelo crescimento industrial da cidade de São Paulo foi o binômio café-ferrovia. O café se expandia por causa da ferrovia, a ferrovia aumentava sua importância por causa do café, se desenvolveram juntas. Da agricultura para a indústria, as coisas estão ligadas. Os plantadores de café foram responsáveis pela industrialização.


No resto do Brasil os latifundiários rejeitaram as mudanças econômicas.


É. Aqui, as famílias mais tradicionais saíram na frente, indo para novas atividades. Até 1870 a cidade era muito pequena, pobre e interiorana. Mas sempre teve importância política. Hoje, é uma cidade de serviços, a indústria realmente se dirigiu ao interior. Mas essa substituição também aconteceu numa dinâmica que possibilitou uma coisa substituir a outra com poucos traumas.


Por que o desenvolvimento econômico não veio com infra-estrutura e melhor qualidade de vida?


Por que São Paulo não se aprimorou urbanisticamente como o Rio de Janeiro, por exemplo? Porque, por aqui, sempre houve um foco muito grande na atividade econômica. As questões urbanas foram ficando de lado. O Rio investiu maciçamente para fazer da cidade mais atraente, mais bonita. Esse momento de transformação, em 1903, 1904 com o Pereira Passos e depois nos anos 20, com o Paulo de Frontin, em São Paulo foi retardado.


Este período em que as cidades abriram grandes bulevares, no início do século 20, não aconteceu em São Paulo, não é? Não há um grande urbanista transformador?


O primeiro, o urbanista talvez mais conhecido, foi o Prestes Maia, prefeito de 38 a 45. Mas mesmo o plano Prestes Maia foi focado na adaptação da cidade para uso do automóvel. Foi uma adaptação da cidade para as elites. Sempre. Para a população menos favorecida sobraram os restos, as baixadas sujeitas a enchentes.


Isto mudou com a implantação dos Jardins, criados pela Companhia City e pela São Paulo Light, que transformaram uma área pouco valorizada, de baixada, em região procurada. Foi uma proeza. E como fizeram? Através da construção de um espaço atraente.


Esta falta de caráter social nos projetos não é um pouco responsável pelo caos de hoje?


É que nossa política teve, do ponto de vista ideológico, um nível baixo. Em Viena, nos anos 20, a prefeitura dirigida por políticos socialistas teve a preocupação de construir moradias populares de muito boa arquitetura. Esta percepção de que moradia tem a ver com o Estado só veio aqui com os militares.


O Carvalho Pinto, que governou o Estado no final dos anos 50, deixou uma cultura de planejamento de ações públicas positiva. Muitas vezes o chefe do executivo não tem idéias claras sobre onde quer chegar. Se preocupa com os benefícios políticos. Uma obra de grande porte, além de ter percalços, de ser cara, dificilmente pode ser inaugurada em pouco tempo. Nosso estilo de administração as inibe. No caso da Calha do Tietê, revela um espírito público muito adequado. Não daria para terminar em pouco tempo mas tem que ser feito.


Então isto melhorou?


Por parte dos governos, sim. Mas há outras coisas importantes como as ações individuais. É importante que os outros façam mas, individualmente, ninguém contribui. Numa grande metrópole, o habitante pode se tornar anônimo, o comportamento anti-social não é coibido. Não há, no Brasil, uma civilidade que sirva de ligamento dos laços comunitários.


Como este individualismo pode se refletir?


Veja o processo de discussão do Vale do Anhangabaú. O projeto da prefeitura era a criação de um parque público, desde a Líbero Badaró até a rua Formosa. O Estado queria criar uma avenida com prédios dos dois lados. Para resolver a questão, chamou-se um urbanista francês, o Bouvard, que apresentou então um híbrido, parque no fundo e avenida.
A propriedade do solo no início do século 20 estava concentrada nas mãos de poucas famílias. O projeto do Bouvard resultou na valorização de terras do conde Prates. Em Paris, o plano de urbanização valorizou o solo público. Aqui, a mola para o desenvolvimento, não foi a construção de um espaço de qualidade e acabou levando à destruição de lugares. No próprio Anhangabaú, depois destruiu-se o parque.


O conde Sílvio Penteado construiu para ele a Vila Normanda, na rua São Luís. Era um conjunto de casas para aluguel e uma casa para ele que reconstituía um ambiente de vila francesa. Quando o centro mudou de configuração e a rua foi alargada, houve a possibilidade de vender para erguer prédios. Então vendeu e foi morar noutro canto. Ele não estava tão ligado àquele canto da cidade a ponto de preservar. Mesmo tendo uma relação mais próxima de afetividade com um lugar, em São Paulo esta afetividade desaparece quando existe a possibilidade de ganhar dinheiro.


A atividade econômica é fundamental para o desenvolvimento da sociedade, da economia, é o que gera empregos. Mas é também o que leva à exploração exacerbada do solo urbano. A um desapego ao lugar. Os moradores de Buenos Aires não querem sair de onde moram mesmo que ganhem em espaço. Então você tem uma qualidade urbana por causa do apego, porque eles cuidam. Em São Paulo, não.


Ultimamente aparecem pessoas que batalham para a preservação de certos bairros. Mas essa defesa não é isenta. É uma preservação econômica. Certos bairros têm valor porque têm uma qualidade ambiental.


Tem a riqueza cultural.


Sim, numa cidade com a população que tem São Paulo é possível movimentar economicamente nichos culturais. É possível montar um ciclo de cinema, temporadas de música. Aqui são cinco entidades que organizam uma programação diversificada com ópera, música de câmara, e há gente suficiente par manter a assiduidade. Então é evidente que não é só a necessidade de ganhar dinheiro que preside a cidade de São Paulo. Mas este é um componente muito forte. É aquilo que o Caetano fala: a “grana que ergue e destrói coisas belas”.


 
Fonte: http://txt.estado.com.br/suplementos/ali/2007/01/21/ali-1.93.19.20070121.10.1.xml

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