Parcerias com ex-escravizados permitiram exportação de café no interior paulista

Novas relações de trabalho entre fazendeiros e ex-escravizados permitiram que município do Vale do Paraíba resistisse à crise e se tornasse o único exportador de café no final do século 19

Por Jornal da Usp

Com a abolição da escravidão, principal fonte de mão de obra da indústria cafeicultora no Brasil, uma crise generalizada assolou as fazendas do Vale do Paraíba, localizado na região Sudeste. Um único município resistiu à crise: Guaratinguetá, que teve sua maior produção de café em 1898, dez anos após a abolição. 

Em sua dissertação de mestrado intitulada Garças nos céus, cafezais na terra: resiliência e crise da cafeicultura em Guaratinguetá no pós-abolição, o historiador João Luís Santos, da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, investigou as razões por trás da resistência de Guaratinguetá na indústria cafeicultora. Para o pesquisador, o principal motivo foi o surgimento de novas formas de trabalho entre os fazendeiros e os ex-escravizados, como o sistema de parceria e o trabalho sazonal.

Novas relações de trabalho

De acordo com dados do Núcleo Urbano de Guaratinguetá, o número de trabalhadores livres no final do século 19 no município era de 11 mil pessoas. Apesar de terem sido libertos, muitos ex-escravizados permaneciam na região, pois não tinham para onde ir e não encontravam trabalho em outros locais. “Essas pessoas enfrentaram muita dificuldade, então, para muitos, continuar talvez tenha sido a única opção”, explica o pesquisador.

No sistema de parceria implementado em Guaratinguetá, o trabalhador livre permanecia no território da fazenda e, em troca, continuava trabalhando nas grandes plantações de café, sem receber remuneração. “Além de ocupar uma parcela de terra, eles também podiam produzir suas hortas e ter criações”, conta Santos. Mesmo com o fim da escravidão, o pesquisador salienta que ainda houve uma linha de continuidade dessa experiência, uma vez que a abolição não trouxe nenhuma política reparatória para ajudar essas pessoas.

Outra forma de atrair a mão de obra dos trabalhadores pobres foi o trabalho sazonal. “Em épocas específicas como a seca, a cafeicultura demandava mais trabalho para a colheita e a carpa. Com isso, havia uma mobilização de trabalhadores pobres que saiam de outros lugares do Vale para trabalhar nas fazendas.” Santos também elucida que, diferentemente do sistema de parceria, o trabalho sazonal oferecia remuneração aos trabalhadores.

Falta de competição, ferrovias e preservação do plantio

Além das novas relações de trabalho, outros fatores contribuíram para Guaratinguetá continuar exportando café. Como o Brasil era o único mercado que vendia o produto e com a queda de produção das outras cidades, houve uma maior demanda pelo café da região. “Eles passaram a ser o único município a fornecer para o mundo”, explica Santos.

Outro ponto fundamental é a construção da ferrovia no Vale do Paraíba entre os anos de 1870 e 1877. “As três novas estações passavam no território de Guaratinguetá. Se antes os produtores tinham que levar o café no lombo ou transportar na mula até o porto, agora eles tinham a ferrovia que facilitava o transporte da mercadoria. Então o custo que tinha com a mobilização de mão de obra foi diminuído.”

Por último, Guaratinguetá preservou por mais tempo as áreas de plantio: “As técnicas de cultivo-condimentar que eles utilizavam permitiu que a cafeicultura tivesse uma resiliência um pouco maior do que as outras áreas do Vale do Paraíba”.

Fazenda de Café do Vale do Paraíba. Obra que integra o acervo do Museu Paulista da USP. Coleção Benedito Calixto de Jesus (CBCJ) – Imagem: Domínio Público

No século 19, com o crescimento da demanda mundial pelo café e a queda nas exportações de outros produtos que mantinham a economia brasileira, os agricultores enxergaram no grão a oportunidade de ascender economicamente. “O principal concorrente do café brasileiro era a ilha de Java, mas, na segunda metade do século 19, as fazendas de cafeicultura em Java entraram em declínio por causa de pragas nas plantações. A partir daí, o Brasil passou a liderar o mercado”, explica Santos.

O bom clima e a terra propícia para o plantio foram essenciais para que a região do Vale do Paraíba, entre Rio de Janeiro e São Paulo, se destacasse. Mas o que realmente fez diferença foi a grande concentração de trabalho escravo na região:  “É evidente que sem a exploração da mão de obra escravizada de africanos e seus descendentes a cafeicultura não teria sido possível”.

Com a abolição da escravatura em 1888, a produção diminuiu o ritmo por carência de trabalhadores: “O auge da produção de café no Vale do Paraíba foi em 1850. Depois, você vê as cidades entrando em crise, como Bananal e o Vale Fluminense, mas Guaratinguetá manteve o movimento ascendente”.

Fim da produção em Guaratinguetá

Apesar do sucesso no volume de exportações, a produção de café no município entra em crise a partir de 1899 pelos mesmos motivos que antes eram supridos: a falta de mão de obra e as áreas preservadas. “A cafeicultura não se mantinha se não conseguisse incorporar novas terras e já não havia mais lugares para expandir essa produção. Ao mesmo tempo, Guaratinguetá não conseguia manter uma reposição de mão de obra”, diz Santos.

A questão da crise dos preços do café que se instalou também levou ao fim do ciclo: “Na década de 1890, a produção brasileira de café era muito elevada, porém o mercado consumidor parou de crescer na mesma velocidade, especialmente os Estados Unidos. Houve uma oferta muito volumosa e os preços começaram a despencar, levando à crise dos preços do café”.

*Com texto de Lívia Lemos, da Assessoria de Comunicação da FFLCH

**Estagiária sob supervisão de Moisés Dorado

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