Leite Derramado Por Celso Vegro

12 de abril de 2011 | Sem comentários Mais Café Opinião

Empresto o título do último livro do escritor e compositor Chico Buarque (premiado com o Jabuti em 2010) para, igualmente, nomear esta análise do mercado de café. O escritor, em seu livro, discorre sobre a evolução de uma família ao longo de dois séculos, enfatizando sua decadência e seu futuro pessimista. A metáfora é evidente, o autor sugere por meio da saga familiar a própria trajetória do esforço em construir a nação brasileira. Por acaso, também, temos nosso leite derramado no agronegócio café e por essa razão faço proveito desse título.


Derramar leite no café é o hábito rotineiro de milhões de brasileiros logo pela manhã. Sem um quente pingado muitos se recusam em começar seu dia. Mas a derrama da qual pretendo tratar é de outra natureza, mais séria e menos humorada.


Um dos maiores dilemas do crescimento econômico brasileiro consiste na dificuldade em construir uma indústria com relevância global. Dos anos 30 ao final dos 70, nossas elites políticas e intelectuais imaginaram que se havia alcançado essa etapa do desenvolvimento, pois o país crescia, ano a ano, a dois dígitos ou muito próximo desse patamar. Ao início dos anos 80 o Brasil era a décima primeira potência mundial! Todavia, a autarquia sob a qual se erigia o setor industrial criava gigantes conglomerados com pés de barro e a pequena abertura que se iniciou nos anos 90 mostrou suas patentes deficiências.


Os anos 80 até meados dos 90, assinalaram o período hiperinflacionário na economia brasileira e foram marcados pelas inúmeras tentativas em se debelar as causas desse processo. A chamada inércia inflacionária fazia parte do cálculo empresarial e financeiro, criando uma espécie de ciranda em que havia pouquíssimos ganhadores. Naturalmente o país parou de crescer economicamente. A indústria dita: “complexa e integrada”, substitui a insubstituível melhoria contínua pelas facilidades do resultado financeiro, oriundo da aplicação desbragada de seus ativos no atrativo mercado dos títulos.


A implantação do Plano Real foi um marco divisório na trajetória recente da economia brasileira. Naquele momento a autoridade econômica conseguiu colocar a inflação em posição de xeque mate. Recupera-se o horizonte para o investimento e a indústria passa a apostar em perspectivas de um crescimento vigoroso nas décadas vindouras. Foi o que de fato ocorreu, sendo o caso da indústria automobilística um paradigma dessa transformação (das carroças dos anos Collor para veículos de classe internacional na atualidade).


Adentrando nos anos 2000, a política econômica passa a se sujeitar a uma espécie de sinuca cambial incontornável. O patamar de juros referenciais exigidos para frear o crescimento e segurar a inflação associado ao acúmulo monumental de reservas internacionais, passa a pressionar de tal modo o real que não se tem escapatória, seu destino é ganhar mais e mais valor frente ao combalido dólar.


Se o fim da inflação crônica permitiu um salto no patamar da produção e da produtividade da indústria brasileira, a apreciação da moeda está, na contramão, sufocando o êxito anterior. A trilha para o desastre somente não é mais direta devido ao vigor com que o mercado interno se expande, inclusive, a taxas que sinalizam prováveis bolhas de ativos (financiamento de veículos e imóveis) em futuro próximo.


Sob a sinuca cambial cria-se situação em que não há como se inserir no mercado internacional por perda de competitividade em preços. Algumas raras exceções podem ser relacionadas, como: Vale; Petrobras; Embraer; BR Foods; JBS; empreiteiras e mais poucas outras que não cobrem sequer os dedos das mãos, faz da indústria brasileira algo descartável no panorama internacional. Essa tese formulada pelo brilhante professor Antônio Barros de Castro é sem dúvida uma constatação legítima e verificável empiricamente1. Matérias primas básicas e de baixo valor agregado ou de reduzido conteúdo tecnológico compõe a fatia majoritária de nossas exportações.


Para exemplificar o atraso de nossa indústria tomo o exemplo da Coréia. Nos anos 80, recém saída de uma brutal guerra, tinha em sua Hunday uma das suas empresas mais relevantes, porém, comparativamente a brasileira Votorantim, sequer alcançava à época metade do faturamento dessa última. Em 2010, a coreana vendeu US$112,6 bilhões e a brasileira apenas US$17,5 bilhões2, ou seja, em 20 anos ocorre uma dramática inversão com a coreana já negociando 6,5 vezes mais que a brasileira. Essa é a dificuldade brasileira, grupos empresariais anêmicos e sem expressão global.


Sem a robustez necessária para se posicionar na teatro internacional, os grupos empresariais industriais brasileiros não conferirão o suporte para que a economia nacional seja verdadeiramente pujante. Porém há um segmento em que essa possibilidade se concretizou: o agronegócio. A liderança mundial em suco de laranja; complexo soja e carnes; café; sucroalcooleiro e celulose, por exemplo, faz do Brasil referência sem igual no competitivo mercado mundial das commodities e suas congêneres.


Não se pode desprezar o papel dos bancos públicos na estruturação das empresas bem sucedidas do agronegócio. Recentemente ocorreu o investimento direto do BNDES no frigorífico JBS, financiando suas aquisições nacionais e internacionais. Por meio desse maciço investimento público o grupo empresarial assumiu a liderança mundial no abate e processamento de carne bovina.


Análise sobre os benefícios dessa concentração de capital sustentada pelo apoio governamental foi recentemente delineada pelo economista José Mendonça de Barros3. O consultor destacou o pífio resultado da vultosa injeção de recursos públicos nessa estratégia, perguntando-se sobre a validade de tal política. O crescimento em tamanho não repercutiu nos esperados ganhos de escala, sinalizando, ao contrário, deseconomias com unidades inclusive sendo paralisadas. O resultado mais expressivo do portentoso grupo foi à falência de outros médios e pequenos frigoríficos menos capitalizados.


O aparente fracasso na constituição desse musculoso grupo empresarial brasileiro em carnes, não descarta que em outros segmentos o esforço não deveria ser tentado. A intenção de desmembramento da Sara Lee, com a venda de seus ativos em café no Brasil, deveria ter sido aproveitada. Algum apoio do BNDES deveria ser oferecido a grupo empresarial que fosse capaz de assumir esses ativos, com o compromisso de exportar pelo menos 30% de seu processamento anual e, ainda, promover de forma engajada a melhoria do café oferecido aos brasileiros, traria resultados formidáveis para o agronegócio. A dificuldade maior se centraria em selecionar esse grupo empresarial5 com ímpeto necessário para tomar conta do negócio e fazê-lo crescer exatamente nos moldes do atual ícone mundial do segmento: a NESPRESSO.


Sem empresas globais no mercado de café as chances do Brasil se converter numa plataforma de negócios do produto são muito reduzidas, senão inexistentes. Continuaremos a nos chatear ao constatar que a Alemanha continua ganhando mais que o Brasil, atuando exatamente com o nosso café. As exportações de torrado e moído (T&M), por exemplo, após longos dez anos de apoio público por meio da Agência de Promoção das Exportações (APEX)6, se reduziram de US$40 milhões em 2009 para metade disso em 2010. Pior ainda, por miopia de lideranças da lavoura, fortalece-se a proibição do drawback café, regulamento demandado pela indústria do solúvel, atuando assim como carrasco do segmento incumbindo em puxar a alavanca do cadafalso que dela dará cabo.


A concentração do capital na indústria de T&M no mercado doméstico segue em ritmo forte, mas ainda incapaz de constituir grupos empresariais que façam alguma diferença no cenário internacional. A escalada das cotações tratará de colocar inúmeras delas à venda, pois o oligopólio competitivo do varejo resistirá duramente à remarcação dos preços. O contexto é ainda piorado pelo falta de tradição dos torrefadores em não se proteger das oscilações nas cotações e não transferir seus riscos por meio de títulos adquiridos em bolsa, pois a qualidade oferecida nos contratos daquele mercado encontra-se muito acima de suas aquisições usuais.


Leite derramado! Agora já é tarde para lastimar a oportunidade perdida. Arrependimento, nem pensar. A chance de sermos grandes no segmento de T&M esteve em nossos colos. Daqui em diante como desde sempre tem sido, veremos um salve-se quem puder, com a tradicional indústria tecnologicamente atrasada piorando seu blend de forma escandalosa; o governo se omitindo em fazer valer imediatamente a Instrução Normativa 16; os órgãos de defesa do consumidor totalmente alheios à desfaçatez empresarial em encharcar bastante o café e a população subjugada a um produto, majoritariamente, além de caro, vil e miserável.


1 – LEO, S. Desenvolvimento asiático pode ajudar a indústria brasileira. Jornal Valor Econômico, 03/04/2011, pg. A3.


2 – Consultar os respectivos balanços  disponíveis em: worldwide.hyundai.com  e www.votorantim.com.br


3 – BARROS, J.R.M. de. JBS: vale a pena um campeão nacional. Jornal o Estado de São Paulo, 07/11/2010.


4 –  Disponível no sítio: www.agricultura.gov.br


5 – Torrefadoras como Café Maratá e Oderbrecht certamente não devem sequer ser cogitadas para essa parceria por motivos que todo os concorrentes desse mercado conhecem.


6 – Mais um caso daqueles em quem decide como aplicar os recursos públicos não se submete aos interesses da sociedade, privilegiando castas burocráticas e suas viagens internacionais, recheadas pelas polpudas diárias, estandes luxuosos rodeados por pares de modelos selecionadas nas mais destacadas agências mundiais.



Celso Luis Rodrigues Vegro
Eng. Agr., MS Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade
Pesquisador Científico do IEA
celvegro@iea.sp.gov.br

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