ARTIGO – O fim do café e as mudanças na Pequena Produção Agrícola: o caso do Estreito do Norte (PERNAMBUCO)

O fim do café e as mudanças na Pequena Produção Agrícola:                                                         o caso do Estreito do Norte                                                                                            Antônio Luiz Ferreira [1]                    1. Introdução               Este artigo é oriundo da Dissertação de Mestrado em que analisamos as transformações ocorridas na Zona de Transição do município de Bonito, em Pernambuco. Foram estudadas […]

O fim do café e as mudanças na Pequena Produção Agrícola:


                                                        o caso do Estreito do Norte


         


                                                                                 Antônio Luiz Ferreira [1]


                   1. Introdução


 


            Este artigo é oriundo da Dissertação de Mestrado em que analisamos as transformações ocorridas na Zona de Transição do município de Bonito, em Pernambuco. Foram estudadas três localidades (Estreito do Norte, Alto Bonito e Rodeadouro) e suas respectivas alterações na paisagem. O presente texto discorrerá sobre a produção do espaço do Estreito do Norte.


            É importante mencionar, para melhor compreender as modificações vividas naquela localidade, que, até meados da década de 60, a maior parte dos produtores rurais da faixa intermediária tinha no café a principal exploração agrícola, o que proporcionava uma paisagem homogênea. Essa atividade, além de atender aos interesses dos grandes e médios, assim como dos pequenos produtores, permitiu a formação de um contigente de agregados, concentrados, basicamente, no primeiro segmento de proprietários, em razão da disponibilidade de terras. Eram esses agregados (principalmente os moradores) os fornecedores da força de trabalho para conduzir a lavoura comercial em troca da concessão de uma parcela para cultivar a própria roça de subsistência.


            Após a segunda metade da década de 60, as mudanças na prática agrícola começaram a acontecer com mais intensidade, pois a derrocada da lavoura cafeeira não só desestruturou as formas indiretas de acesso à terra, como também redefiniu a paisagem e os tipos de atividades nas três localidades já citadas.


            No caso do Estreito do Norte, essas alterações ocorreram em diversas frentes, como, por exemplo: intensificação da pecuária nas grandes e médias propriedades; consolidação da olericultura como principal exploração das unidades de menor porte; uso do trabalho assalariado em caráter permanente com maior intensidade; produção voltada ao mercado; arrendamento da terra em novas bases; adoção, por parte do pequeno produtor, de insumos mais sofisticados etc. É importante salientar que, nesse período, a agricultura nacional também passava por processos de transformação, e, por isso mesmo, não podemos dissociar uma realidade da outra.



                   2. A Redefinição das Atividades Após o Café


 


            Apesar de estar dentro dos limites do município de Bonito, o povoado do Estreito do Norte encontra-se muito próximo à sede de Camocim de São Félix, e isso faz com que Camocim exerça uma significativa influência sobre os moradores daquela localidade. Essa ascendência passou a ser mais acentuada após a perda de importância da cafeicultura e a consolidação da olericultura. Enquanto o café foi a exploração mais importante da faixa subúmida, o Estreito tinha uma maior vinculação com a cidade de Bonito, pois era aí que estavam concentrados os comerciantes da rubiácea e isso levava os produtores a se deslocarem até a sede,   com o    objetivo de comercializar o produto ou, então, apenas para manter contatos.


            O fim da atividade cafeeira no Estreito não trouxe como conseqüência somente a mudança da área de influência sobre o povoado. Ele resultou, também, numa alteração substancial da paisagem daquele espaço, que, atualmente, é caracterizada pela forte presença da pastagem plantada, uma vez que a maior parte das terras de agricultura foi  destinada ao criatório. Anteriormente, a área do Estreito caracterizava-se por ser uma linha divisória entre a Mata do Brejo e o Agreste. Embora possuísse elementos dos dois espaços, as feições da Mata se sobressaíam, motivadas pela forma de exploração da terra.


            Apesar de ainda contar com algumas marcas que lembram o brejo – por exemplo, o solo argilo-arenoso, a presença de fruteiras típicas das áreas úmidas junto às casas mais humildes, além de algumas espécies usadas para o sombreamento do café, como o cajueiro e o mulungu -, as características que dominam a atual paisagem do Estreito são mais próximas das agrestinas: cercas de avelós, extensas áreas de pasto e outras. A atividade pecuarista desenvolvida nas médias e grandes propriedades contribuiu muito para a formação dessa nova paisagem.


            Juntamente com o declínio da rubiácea, veio abaixo, também, o modelo de exploração da terra calcado na relação proprietário-agregados. Esses agregados eram moradores e foreiros, que, na condição de agricultores despossuídos, fixavam-se à terra de forma indireta, ou seja, sem ter a propriedade desse meio de produção. Essa concessão de uma parcela de terra por parte dos proprietários de maior porte aos agregados era um mecanismo que os primeiros tinham para formar um contingente de trabalhadores que levasse adiante as tarefas da cafeicultura, sem que houvesse o pagamento de salários.


            No entanto, havia uma diferença entre moradores e foreiros quanto ao tipo de trato com o dono da terra. Enquanto aqueles eram obrigados a ceder alguns dias da semana na lavoura do patrão, (no caso, o café), como forma de pagamento pelo uso da terra, e, nos dias restantes, cuidavam do próprio roçado (subsistência), estes, eventualmente, trabalhavam nos cafezais, e sua forma de pagamento pelo uso da parcela era o foro, pago anualmente, o que poderia ocorrer tanto em dinheiro quanto em produto.


            Nesse cenário, havia, também, os pequenos proprietários que se dedicavam ao cultivo da rubiácea combinado com as culturas básicas, usando a força de trabalho da própria família para executar as tarefas existentes na unidade. Desse modo, tínhamos: os grandes e médios proprietários que se dedicavam apenas ao café; a lavoura comercial; os pequenos proprietários que combinavam a rubiácea com a cultura tradicional; e, por fim, os agregados, que serviam de mão-de-obra aos primeiros.


            A partir das mudanças na base da economia local, novos papéis foram atribuídos aos três segmentos principais que compunham o cenário (grandes e médios, pequenos proprietários e agregados).Os grandes e médios proprietários passaram a destinar suas terras à pecuária, intensificando a plantação de capim nas áreas ocupadas anteriormente com agricultura, seja a comercial, seja a dos agregados. Os pequenos proprietários, que atuavam nas duas frentes (comercial e branca), não dispunham nem de terra e nem de capital  suficientes que pudessem, da mesma forma que os primeiros, investir na pecuária; então, voltaram-se à produção de olerícolas. Por fim, os agregados, que tinham o acesso à terra de forma indireta e, com as mudanças, ficaram sem muitas alternativas, atualmente vendem sua força de trabalho aos criadores (em menor escala), ou aos olericultores, ou, vez por outra, atuam como arrendatários nessa atividade.


            O processo de pecuarização presente na  zona intermediária de Bonito foi um movimento uniforme entre os grandes e médios proprietários, e aconteceu mais ou menos de maneira semelhante dentro daquela área (alcançando outros povoados), no que diz respeito ao tipo de pastagem, aos meios usados na formação das mesmas, além do manejo do rebanho. Já as atividades desenvolvidas entre os pequenos agricultores da faixa de transição eram diferentes. Os caminhos seguidos pelos produtores de menor porte, os tipos de atividades que surgiram ao longo do tempo, juntamente com os novos padrões agrícolas adotados, demonstram que a dinâmica da produção do espaço é um processo permanente, além de evidenciar a capacidade de adaptação das  pequenas unidades a uma outra realidade.


            A nova exploração desenvolvida pelos pequenos produtores do Estreito – a olericultura – não foi de todo estranha a eles, no que diz respeito ao domínio da prática. Conforme explicação de um agricultor que vivenciou essa fase, a horticultura chegou na área do Estreito mais ou menos por volta de 1960 (com uma produção muito tímida de tomate e de repolho), ou seja, aconteceu paralelamente à cafeicultura, embora numa escala bastante inferior, em comparação com a realidade atual. Outro dado importante é o baixo nível técnico a que estava sujeito o plantio daquelas duas olerícolas, em que a adoção de recursos primários, como o uso da vara para apoiar  o tomateiro,  e do leirão para o repolho, nem sequer era cogitada.


            Mello e Andrade (1961) chamam a atenção para a presença da horticultura em Camocim de São Félix, evidenciando o atendimento das demandas do mercado recifense em termos da produção de tomate e outras hortaliças, além de laranja, abacate e banana. Diante desse estudo, podemos compreender a influência que Camocim de São Félix passou exercer sobre o povoado do Estreito, após a decadência da cafeicultura (principalmente em se tratando de pequenos proprietários) quanto ao incentivo à exploração da olericultura e, ao mesmo tempo, à facilidade com que os produtores absorveram a nova exploração.


            Após a redefinição das atividades desenvolvidas no Estreito, que proporcionou a divisão das explorações em dois campos – a pecuária na grande propriedade e a olericultura na pequena -, as formas de acesso indireto à terra, como no caso dos moradores, foreiros etc., não couberam mais dentro desse novo modelo de agricultura. Esses personagens não desapareceram, muito menos suas necessidades por terra para garantir a própria manutenção. Eles saíram da terra do patrão como moradores e foreiros e, nas atuais circunstâncias, voltam na condição de assalariados ou de arrendatários, inclusive nas pequenas propriedades. O mecanismo que ocupou o lugar da renda em trabalho, da renda em produto ou do foro foi o arrendamento da terra, que acontece nos dois tipos de estabelecimento. A prática do arrendamento é facilitada em função da natureza da lavoura presente na área, caracterizada pela forma intensiva de produção, e por ser de ciclo curto.


            Comparando-se a área destinada à pecuária e aquela voltada à olericultura (tomate, pimentão, pepino, repolho etc.) em termos absolutos, a primeira mostra-se infinitamente superior, pois sua prática exige amplas extensões de terra ocupadas com pastagem; enquanto a outra, de menor tamanho físico, apresenta-se muito mais dinâmica no que tange à diversidade de relações estabelecidas em seu interior, além dos recursos técnicos utilizados para viabilizar a produção.


 


                   3. A Olericultura na Pequena Produção


                             3.1. A mão-de-obra e o uso de insumos   


 


            A exploração da olericultura, levada adiante em maior parte pelos pequenos proprietários, torna-se viável em termos de ocupação de área física, por se tratar de uma prática agrícola altamente intensiva, tanto em capital quanto em  mão-de-obra, pois, utilizando uma pequena área, apresenta grande volume de produção. O tamanho das unidades produtoras voltadas à olericultura é considerado pequeno em termos absolutos, se compararmos com aquelas do criatório, mas, quando nos detemos no aspecto relativo, podemos observar o potencial dessas unidades no que se refere à movimentação de capital para desenvolver as culturas  (haja vista o circuito comercial que foi formado ao seu redor). Vale salientar que, muitas vezes, os pequenos proprietários não fazem  uso total da área disponível com plantios próprios, ou por falta de recursos ou por receio de ter prejuízo. Nesse caso, a sobra de terra pode ser arrendada, constituindo mais uma fonte de ganho.


            O uso da terra no Estreito do Norte, no âmbito da pequena propriedade, apresenta-se de forma variada. Há casos em que somente o dono da área a explora, sem a presença de arrendatários, denominados no povoado de “porcenteiros”. Outro cenário vivido nesse povoado é aquele onde o dono da terra arrenda parcelas de sua propriedade a terceiros, convivendo, às vezes, numa mesma área, o plantio do proprietário e de mais dois ou três “porcenteiros”. É particularmente nessa situação que ocorrem diferentes formas de acerto entre os proprietários e os arrendatários, quanto ao pagamento da renda.


            O arrendamento nessa área, conforme mencionamos acima, surgiu como conseqüência de uma mudança na estrutura produtiva que separou, definitivamente, os detentores da propriedade da terra de um lado (grandes e pequenos) e os sem-terra de outro, sendo que o acesso desses últimos, nessa conjuntura, se dá com base no pagamento da renda em dinheiro. Os desprovidos daquele meio de produção (terra) são divididos em dois grupos: os que possuem algum recurso financeiro e, por isso, têm condição de arrendar a terra, e os outros, que apenas vendem a força de trabalho ou para os “porcenteiros” ou para os proprietários.


            Essa realidade pode ser considerada como sendo resultante de um processo de transformação no campo – cujo pano de fundo foi o fim da lavoura cafeeira -, que culminou com a nítida separação entre os que tinham e os que não tinham a terra. Podemos compreender esse processo como sendo o fechamento de um ciclo em que a propriedade da terra e sua importância para o pequeno produtor sempre foram encobertas por mecanismos de acesso indireto àquele meio de produção, como no caso dos agregados. Estes, que sempre constituíram um segmento flutuante, passam a ser, definitivamente, trabalhadores livres.


            No Estreito do Norte, no âmbito da pequena produção, a olericultura passou a ocupar o posto de mais importante exploração agrícola e trouxe consigo novas relações de produção, baseadas no assalariamento. O volume de trabalho existente nas plantações, seja do tomate, do pimentão, do repolho ou do pepino, leva os produtores a manterem um contingente de mão-de-obra em caráter permanente, com vistas a vencer todas as etapas do plantio e, também, para não interromper o ciclo de produção ao longo do ano. Essa mão-de-obra é originária daqueles trabalhadores despossuídos de terra que têm apenas a venda de sua força de trabalho para garantir, de forma precária, sua sobrevivência. Essa é uma relação capitalista de produção (Martins, 1990), cujos personagens estão bem definidos( de um lado o patrão e, do outro, o trabalhador ) e é  construída a partir da exploração do trabalho alheio (Oliveira, 1991),  intermediada pelo salário.


            O tipo de atividade que passou a ser desenvolvido no Estreito, além de ter introduzido outras  relações de produção, motivou, também, crescente uso de recursos técnicos, vinculação mais acentuada com o mercado, enfim uma série de mudanças, sobretudo na pequena produção, cujo objetivo maior era a adaptação a uma nova realidade, vivida após o café. Entretanto, as transformações ocorridas naquele povoado e na faixa de transição como um todo não aconteceram somente em função da derrocada da cafeicultura ou, então, motivadas por uma simples substituição de um modelo de exploração da terra por outro. Elas são reflexo das alterações gradativas que a agricultura brasileira vem sofrendo, desde o período em que o setor industrial começou a se solidificar. Silva (1989) faz um breve histórico desse processo, que culminou, na década de 60, com a instalação, no país, de fábricas de tratores, insumos, produtos veterinários etc. Para o autor, o mercado consumidor desse ramo emergente da indústria nacional é o campo; entretanto, para se concretizar esse objetivo, algumas mudanças deveriam ser feitas para se adequar o modelo de exploração “velho” à nova realidade da agricultura nacional.


            Outro autor que reforça esse pensamento acerca da viabilização do setor rural como mercado do segmento da indústria nacional voltado à agricultura é Sorj (1986). Ele diz que a ação do Estado foi direcionada, então, com o propósito de modernizar o campo brasileiro, através de sua integração ao novo circuito produtivo liderado pela agroindústria de insumos e processamento de matéria-prima. Essa alteração implicaria mudanças nos tipos de culturas exploradas, bem como nas relações de produção.


            A  redefinição do modelo agrícola brasileiro teve como objetivo justamente acabar com  o “atraso” no campo, pondo fim à exploração tradicional, tida como antieconômica e arcaica. O interesse central da nova agricultura era aumentar a produtividade do campo e estabelecer vínculos diretos com o mercado.  A ênfase à  “modernização” pode ser identificada a partir da política de financiamentos implementada nos idos da década de 70. No seio dessa política, estava embutido o estímulo ao uso dos equipamentos sofisticados, dos famosos pacotes agrícolas (sementes selecionadas, adubos etc.) e de outros elementos que compunham o redirecionamento da agricultura brasileira. Porém, a tal  “modernização” não estava reduzida a esse conjunto de medidas e ações, porque, para sua concretização, era necessário que uma parcela da população rural fosse excluída, não tendo acesso nem à terra e nem aos recursos usados. Essa parcela ficaria flutuando no meio rural como mão-de-obra temporária e parte dela seguiria o caminho da cidade, uma vez que as condições de sobrevivência no campo tornaram-se difíceis.


            A “modernização” não ocorreu de forma homogênea em todas as regiões do Brasil. Aquelas que mais se destacaram na absorção do “desenvolvimento” são a Sul e a Sudeste, onde a produção é, em sua maior parte, voltada para o mercado, com elevado nível de tecnificação e vinculação mais estreita com o capital financeiro. Embora aquelas duas regiões se destaquem no cenário nacional, é válido salientar que outras não ficaram imunes aos ventos do progresso agrícola, pois a difusão de tecnologia, através da rede de técnicos das EMATER, foi um instrumento de grande força, além do crédito rural, que também era um mecanismo utilizado com essa finalidade.


            Em meio à evolução tecnológica da agricultura brasileira, redefine-se o tipo de produção a ser desenvolvido, priorizam-se as explorações que servem de matéria-prima às indústrias beneficiadoras (soja, p. ex.), e, logicamente, ocupam-se áreas razoavelmente extensas para justificar e viabilizar o uso de equipamentos desenvolvidos para esse fim. Diante dessa realidade, caberia interrogar qual seria o destino da pequena exploração,  porque, ocupando áreas diminutas, ela não teria o necessário suporte (escassez de terra) para entrar no novo circuito da agricultura. Mas, de outra parte, a permanência desse segmento agrícola é de interesse do capital.


            Conforme Figueiredo (1984), para que haja a reprodução do próprio sistema capitalista, algumas políticas voltadas à pequena produção são necessárias. Os interesses são variados, porém pelo menos dois podem ser destacados: a reserva de mão-de-obra a ser usada, em momentos de necessidade, pela grande produção; e o fornecimento de produtos rurais a preços baixos, possibilitando remunerar os trabalhadores urbanos com baixos salários.


            Com o intuito de se ampliar ainda mais o alcance da política modernizadora, esta não ficou restrita somente às grandes e médias propriedades, chegando, também, à pequena produção.  Aí ela promoveu uma divisão: de um lado, ficou aquela unidade que tem como principal exploração a lavoura tradicional (milho, feijão e mandioca); do outro, há aquela que se diferencia da primeira por ter, como atividade mais importante, uma cultura intensiva, de alta rotatividade tanto da(s) lavoura(s) quanto de capital. No interior dessa última, podemos encontrar, ainda,  um tipo de unidade produtiva que se encaixa nas características citadas, mas que difere quanto ao uso da mão-de-obra, baseada no trabalho familiar.


            A pequena exploração modernizada passou a incorporar novos conceitos de produção e a estabelecer outros vínculos externos, que, até então, não faziam parte de seu cotidiano. As relações com o mercado tornaram-se freqüentes, uma vez que a produção daquelas  unidades ficou totalmente voltada para esse fim, e no caminho de volta também,  na compra dos insumos; outra característica que marca a nova face da pequena produção são as relações com os bancos comerciais, através do crédito rural, além do uso de mão-de-obra assalariada permanente, em alguns casos. Esses são traços que  diferenciam bastante o modelo de exploração encontrado atualmente daquele existente na  prática tradicional.


            As alterações sofridas pela pequena produção, dentro desse amplo processo de modernização  da agricultura nacional, têm como objetivo dotá-la de recursos que proporcionem ganho de produtividade, principalmente nas propriedades familiares, ampliando-se a apropriação do sobretrabalho pela sociedade. Para Silva (1982),  a “recriação” da pequena produção não está simplesmente na reprodução dos produtores mercantis, mas na reprodução do capital em si mesmo, na forma de implementos e  insumos, e na expropriação do lucro do pequeno produtor.


            No caso específico do Estreito, a exploração que passou a dominar o cenário levou os agricultores a  optarem, principalmente os de menor porte, por uma cultura completamente diferente da anterior em todos os aspectos. As principais diferenças estão no tipo de atividade, com exploração de culturas de ciclo curto e voltadas para o mercado; adoção de trabalho assalariado; uso do arrendamento da terra para terceiros; e adoção de recursos técnicos mais sofisticados com vistas a garantir maior produção e qualidade. Assim, os pequenos produtores tiveram que se adaptar a uma nova realidade, porque passaram a ter sua reprodução vinculada diretamente ao mercado. Como conseqüência, não podiam correr o risco de comprometer sua safra com produtos de qualidade inferior.


            O gasto com insumos, sobretudo os agrotóxicos, pesa muito nos custos dos agricultores, uma vez que sua aplicação não ocorre de forma curativa, e sim preventiva. O tipo de produto usado  também não se  limita a um só fim, porque a variedade de doenças às quais o tomateiro e as outras olerícolas estão sujeitos abre amplamente o espectro de produtos usados pelos agricultores. Caso o estado fitossanitário do plantio seja satisfatório, o número de pulverizações varia de 2 a 3 por semana, sendo que cada uma delas é com um produto diferente para prevenir o aparecimento de determinada doença ou praga.


            Apesar de o processo de transformação da agricultura do Estreito não ter sido resultado da interferência direta da ação governamental visando à modernização, podemos compreendê-lo como conseqüência, numa área periférica, das mudanças acontecidas no Sul e Centro-Sul do país. Mesmo não contando com o aparato tecnológico e o apoio financeiro existentes nessas regiões, o pequeno agricultor da área em análise redefiniu sua produção, adotando novas técnicas e insumos, uma vez que passou a ser regido pelas forças de mercado. De outro lado, esse ganho em qualidade proporcionou um incremento na quantidade produzida; entretanto, também, ampliou a transferência de renda para diferentes segmentos da economia.     



                             3.2.  O arrendamento da terra


 


            O arrendamento da terra é, para Kautsky (1977), a forma clássica da agricultura capitalista, montado no tripé proprietários – capitalistas – agricultores expropriados (vendedores de força de trabalho). Esse mecanismo de acesso à terra, na sua essência, passou a ser praticado com mais intensidade no Estreito a partir do momento em que as áreas anteriormente destinadas ao café e à lavoura tradicional tiveram outra finalidade. Naquele período, havia uma prática de concessão de determinada área, por parte dos proprietários, a moradores e foreiros, e o pagamento da renda se dava na forma de trabalho ou produto, além do foro anual para os últimos. Com o fim da cafeicultura, houve uma ruptura nesse equilíbrio e, ao mesmo tempo, a terra passou a ter um significado diferente: ela não diminuiu e nem aumentou de tamanho, porém o acesso tornou-se mais restrito.


            A redefinição do cenário agrícola trouxe como conseqüência uma separação nítida entre as atividades das médias e grandes propriedades, e as desenvolvidas pela pequena produção, bem como ressaltou a existência de um terceiro segmento, formado pelos agricultores sem terra. Nessa parcela de excluídos, estão aqueles que vendem sua força de trabalho (na olericultura, sobretudo) e os que têm meios de arrendar uma parcela de terra para desenvolver um plantio próprio, conhecidos como “porcenteiros”.


            Os agricultores que recorrem ao arrendamento, sejam eles proprietários ou não, estão movidos por interesses dos mais variados tipos: necessidade de sobrevivência; complementação da renda familiar em áreas arrendadas (no caso de produtores que já possuem plantio próprio); escassez do meio de produção principal (terra); limitação de recursos para adquirir área própria; entre outras razões. Se, de um lado, há uma parcela da população que tem  necessidade de plantar para garantir a manutenção, de outro, há aquela que detém a propriedade de um fator de produção cada vez mais escasso e cada vez mais caro,  o que torna a terra uma mercadoria muito valorizada. Diante desses obstáculos, o acesso por parte dos excluídos só irá viabilizar-se mediante pagamento ao proprietário: é a chamada renda. Esta é uma decorrência da propriedade privada da terra, o que possibilita ao dono apropriar-se da renda em benefício próprio.


            A presença de “porcenteiros” é bastante freqüente na localidade do Estreito, e todos concentram suas atividades na exploração de olerícolas, pois, esta além de ser prática comum entre os agricultores da área, é o meio de se obter um ganho maior, por se tratar de cultura comercial. Os rendeiros atuam tanto nas propriedades maiores, que têm na pecuária a principal exploração, quanto naquelas de pequeno porte, onde o proprietário, muitas vezes, já tem a olericultura em suas terras.


            Nas duas situações, as taxas (renda) cobradas pelo uso da terra são mais ou menos semelhantes. Entretanto, há uma variação:  dependendo da disponibilidade ou não de insumos próprios a serem usados no plantio, o “porcenteiro” poderá pagar uma renda maior ou menor ao proprietário. No acerto entre as duas partes (proprietário e arrendatário), cabe ao dono da terra entrar com a água, os canos, as varas (para apoiar o tomateiro) e o arame para amarrar os pés de tomate. Sob a responsabilidade do “porcenteiro” ficam a mão-de-obra, a semente e os insumos necessários, que são os adubos orgânico e químico, além dos agrotóxicos.


            A outra forma que pode ser encontrada é aquela onde o arrendatário não tem recursos suficientes ou não tem nenhum para fazer frente às despesas iniciais com o preparo do solo, as adubações e os “venenos” usados no plantio. Nesse caso, o proprietário arca com os gastos, porém o “porcenteiro” deverá pagar uma renda maior.


            Na primeira situação, o valor da renda cobrado pelo dono da terra pode variar entre 20 e 25% dependendo do proprietário. Esse valor é determinado sobre o total apurado pelo agricultor. Na segunda, quando o “porcenteiro” entra apenas coma a mão-de-obra (muitas vezes  familiar), a renda cobrada sobe para um percentual que fica entre 25 e 30% do que foi apurado. É importante esclarecer que os produtores consideram o apurado como sendo o resultado da diferença entre a receita bruta e as despesas. Dessa diferença é retirado o valor das duas partes.


            Para os agricultores que exercem seu ofício em terras arrendadas, as dificuldades são sempre maiores, pois, muitas vezes, com o dinheiro que ganham, mal conseguem acumular algum capital que lhes permita comprar um pedaço de terra; em geral, é possível apenas garantir a  própria reprodução. Além do fato de terem um custo a mais em sua produção (a renda), ficam impossibilitados de ampliar o leque de produtos. Eles se limitam a plantar um ou dois tipos de produtos (por exemplo, tomate e pepino, ou tomate e pimentão) como forma de amealhar mais algum ganho.


            Os “porcenteiros”, dentro da área arrendada, procuram engrenar um ciclo de produção de modo a manter a terra sempre plantada. Nesse calendário agrícola próprio, que cada agricultor monta de acordo com sua conveniência, há a distribuição das culturas a serem usadas ao longo do ano. A programação tem como base a época de plantio do tomate,  que se inicia com o preparo do solo em julho e vai até dezembro ou janeiro; em seguida, durante os meses de janeiro/ fevereiro até março, será a vez do plantio do pepino; nos meses que vão de abril a junho, é o milho a cultura explorada, vindo, posteriormente, o tomate.


            A presença ou não dessa rotação de culturas ficará a cargo de cada um dos agricultores, pois há alguns que preferem entrar direto no plantio de milho, porque já contaram, em suas áreas de plantio, com o tomate e o pepino no ciclo anterior. A produção do milho, cultura mais próxima da lavoura tradicional, tanto pode atender ao mercado quanto ao consumo próprio do agricultor. Nesse caso, existe a possibilidade de venda da palha, como aconteceu em 1993, quando o inverno não foi bom, e ela serviu de alimento para o gado, havendo, ainda, sua troca por estrume de galinha (para ser usado como adubo orgânico).


            Como pudemos observar, a reprodução dos “porcenteiros” é bastante limitada, pois eles normalmente usam uma área pequena, por vezes não superando 2 ha, e não têm a possibilidade de ampliar o número de explorações, restringindo-se a uma ou duas, no máximo, em um mesmo período. Uma das formas de atenuar essas dificuldades é fazer uso  do ciclo contínuo de produção, em que uma cultura vai “segurando” a outra. A permanência do  “porcenteiro”  numa mesma parcela não dura muito tempo, pois o desgaste do solo é excessivo. Enquanto estão numa determinada área, eles procuram aproveitar ao máximo a capacidade de suporte da terra, alternando os leirões onde fazem o plantio, que são acompanhados de uma pequena barreira de proteção.  Num ano, esses leirões passam a ser barreiras e estas, por sua vez, passam a servir de leirões, alternando-se ano a ano. Porém, ao fim de 3 anos consecutivos, conforme palavras de um arrendatário, o solo já não tem mais condições de ser usado; isso leva o agricultor a outra área dentro da mesma unidade, ou, então, para uma  propriedade diferente.


            Mesmo  se contando com o uso freqüente da adubação química (sem muito critério) e orgânica (na fase de preparação), a exaustão do solo é um aspecto importante, porque a degradação vai evoluindo e, na mesma proporção, cresce a necessidade de usar mais adubo para cobrir as deficiências naturais;  por conseqüência, gasta-se mais dinheiro com esse insumo. Nesse caso, o desgaste excessivo do solo é resultante de uma prática agrícola intensa, que visa somente à produção, não sendo levados em consideração os riscos desse uso danoso para um aproveitamento futuro da área.


            A relação entre os “porcenteiros” e os proprietários fica restrita somente ao arrendamento, não sendo comum, na área, o retorno à velha prática que consistia na obrigação de o arrendatário vender sua produção ao dono da terra por um preço inferior àquele praticado no mercado. Na condição atual, o rendeiro pode vender o produto a quem desejar, pois, nesse sentido, ele goza de autonomia para decidir que destino dar à sua mercadoria. Isso demonstra que a relação comercial estabelecida entre ambas as partes está baseada única e exclusivamente no pagamento da renda ao proprietário por parte do “porcenteiro”.


            Como já foi salientado, a produção olerícola do Estreito do Norte está concentrada basicamente nas pequenas unidades, e, por vezes, estas não passam de 2 ou 3 ha. A limitação imposta pelo tamanho da propriedade pode levar o agricultor-proprietário a se transformar, também, em “porcenteiro”. A razão dessa mudança está na impossibilidade de expandir seu plantio, porque a área própria não é suficiente; por isso, ele tem que recorrer a uma parcela arrendada. Tal situação não ocorre todos os anos, ela varia conforme as condições do mercado: se estiverem favoráveis, com preço compensador, então passam a ser um estímulo para o agricultor ampliar sua plantação e tornar-se “porcenteiro”.


            Esse é o perfil da relação de arrendamento praticada no Estreito, com alguns detalhes que variam de acordo com a disponibilidade de recursos por parte do “porcenteiro”. O elo que liga as duas partes é o pagamento da renda em dinheiro, não existindo o pagamento da renda em trabalho ou em mercadoria.


 


                             3.3. A comercialização e a origem dos recursos


 


                        A principal marca da exploração olericultora do Estreito do Norte é seu vínculo com o mercado, caracterizando-se claramente como uma agricultura comercial. Ela é assim denominada porque ao mesmo tempo em que o objetivo da produção é atender à demanda de mercado, necessita, também, absorver insumos que assegurem a produção e a qualidade. Constitui, nesse caso, uma via de mão-dupla, fornecendo determinado tipo de mercadoria (verdura) e absorvendo outro (insumos modernos). É importante mencionar que essa troca é desvantajosa para o agricultor, pois seu produto está sujeito às oscilações de preços, normalmente com tendência de queda, enquanto os insumos têm seus preços acrescidos. Assim, configura-se mais um mecanismo de transferência de renda e de subordinação do pequeno produtor.


            Dentro da mão-dupla descrita acima, está a dependência cada vez maior do agricultor em relação ao processo de comercialização. Este vai se consolidando e aumentando de importância à medida em que o produtor agrícola se especializa numa determinada exploração, com um crescente grau de desenvolvimento técnico. Desse conjunto de fatores que passou a fazer parte da prática agrícola devemos lembrar que a ampliação da rede de comércio em escala – incluindo-se aí as Centrais de Abastecimento (CEASA)  e as grandes redes de supermercado – teve um significado importante na redefinição do tipo de exploração a ser conduzido pelos produtores.


            O destino dos produtos oriundos do Estreito do Norte é, principalmente, a CEASA do Recife. Essa venda pode ser feita diretamente pelos próprios produtores aos comerciantes atacadistas, ou então através de intermediários na unidade de produção. A relação entre o agricultor e o comerciante acontece em níveis diferentes, conforme as condições de mercado. Se os agricultores considerarem que os preços pagos pelos produtos na Central são compensadores, então levam sua mercadoria para ser vendida diretamente ao atacadista. Caso o mercado esteja ruim, com os preços baixos, a comercialização tende a ser feita com os atravessadores, que estão presentes com freqüência na unidade produtora.


            Segundo os produtores, a escolha entre as duas opções de venda – na CEASA ou ao intermediário – está diretamente relacionada com os preços pagos pela mercadoria na Central de Abastecimento. Para levar o produto até o Recife, os agricultores têm que arcar com alguns gastos imediatos, como, por exemplo: a caixa de madeira (R$ 1,00), frete (R$1,00/caixa) e pagamento de R$ 0,50/caixa ao atacadista a título de loja. Com isso, só para fazer o produto chegar ao ponto de distrubuição foram gastos R$ 2,50/caixa. Esse passa, então, a ser o valor de referência para iniciar a comercialização na Central. Para o agricultor, qualquer preço acima desse valor torna-se compensador; não  se levam em consideração, portanto, os gastos anteriores e a remuneração de seu trabalho. Se o preço pago pela caixa do tomate (13 a 15 kg) na CEASA estiver abaixo daqueles R$2,50, o agricultor vende ao atravessador na unidade[2].


            O produtor, diante desse quadro, não tem muitas alternativas, porque ele está preso aos “donos” do mercado, que são o intermediário, numa escala menor, e o atacadista, na ponta da comercialização. Quando não vende a um, vende ao outro, pois conta com o risco de perder a produção e levar prejuízo. Durante o período da safra de qualquer uma das olerícolas, os agricultores convivem com as freqüentes oscilações de preço dos produtos, reguladas pela lei da oferta e da procura. Alguns agricultores conseguem preços melhores em dois momentos da safra:  no início ou no fim, quando a oferta do produto é pequena; no meio, pico da produção, os preços tendem a cair. Para agravar ainda mais a condição dos olericultores, os comerciantes (intermediários e atacadistas), quando adquirem a colheita, seja na propriedade, seja na CEASA, não efetuam o pagamento no ato da compra. O acerto é que paguem com oito dias, mas há casos de pagamentos com quinze ou vinte dias; isso traz problemas aos agricultores, pois é com esse dinheiro que sobrevivem e, também, fazem investimentos na formação de novos plantios.

Mais Notícias

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.