Tecnologia no campo – O cardápio dos próximos anos

13/08/2012 
  
 
Está ocorrendo uma articulação entre especialistas para prever os possíveis efeitos das mudanças do clima sobre o agronegócio, responsável por um terço da economia brasileira. Há indicações de que a produção de soja, trigo e outros cultivos possa cair de modo dramático e a incidência de pragas e doenças possa aumentar, em resposta à provável elevação da temperatura e mudanças na distribuição das chuvas pelo país. O temor é que, num primeiro momento, os preços possam subir e a variedade de cereais, hortaliças e frutas à mesa sofra uma redução.


Antecipando-se aos cenários que preveem tempos difíceis pela frente, centros de pesquisa e empresas estão desenvolvendo – e já apresentando – variedades de cereais e hortaliças mais resistentes a temperaturas mais elevadas e ao ataque de microrganismos causadores de doenças e pragas. A tendência é que, mais adiante, plantas, pragas, consumidores e a própria economia se reacomodem e encontrem novos estados de equilíbrio.


Em um estudo financiado pelo Banco Mundial, pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Embrapa Informática Agropecuária, usando 23 modelos computacionais de simulação climática global e três regionais, detectaram uma clara tendência de queda na produção de algodão, arroz, feijão, soja, milho e trigo, como efeito da provável elevação da temperatura, em 2020 e 2030. A redução da produção pode chegar a 64% no caso do feijão e 41% do trigo, mesmo no cenário mais otimista, com um pequeno aumento na temperatura média anual. No cenário pessimista, a produção de feijão pode cair 70% e a de soja, 24%. De acordo com esse trabalho, só a produção de cana-de-açúcar e de pastagens é que deve se beneficiar com o clima mais quente.


Em paralelo, os especialistas do Climapest, um projeto de pesquisas coordenado pela Embrapa Meio Ambiente, de Jaguariúna (SP), estão vendo que algumas doenças – principalmente as causadas por fungos – e as pragas podem se agravar em muitas das 19 culturas analisadas – entre as quais soja, milho, café, arroz, feijão, banana, manga e uva -, em decorrência da elevação dos níveis de CO² do ar, da temperatura e da radiação ultravioleta B, como previsto nos cenários de mudanças do clima (ver tabela ao lado).


Outra possibilidade é a migração de doenças como a sigatoka negra, a mais preocupante da bananeira, causada por um fungo, que deve perder intensidade em algumas regiões produtoras, mas avançar para o sul, emergindo onde ainda não se manifestou. “A luta contra as doenças não tem fim”, diz Wagner Bettiol, da Embrapa Meio Ambiente. “As plantas e as pragas das próximas décadas poderão ser diferentes das de hoje.”


Como se prevê que a incidência de algumas doenças deve aumentar e a de outras diminuir, “não é possível generalizar o que vai acontecer”, diz Raquel Ghini, pesquisadora da Embrapa de Jaguariúna e coordenadora do Climapest. Criado há três anos com um investimento de R$ 5 milhões da Embrapa e R$ 2 milhões de outras instituições públicas e empresas, o projeto reúne 134 pesquisadores de 17 unidades da Embrapa e 22 institutos de pesquisa e universidades. O trabalho deve tomar a forma, até o final do ano, de um livro com mapas indicando a provável distribuição das doenças e pragas agrícolas no país nas próximas décadas.


“O clima mais quente favorece o crescimento e a reprodução de insetos”, reconhece José Roberto Postali Parra, professor da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq) da Universidade de São Paulo (USP) e coordenador de um Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Semioquímicos na Agricultura, para controle biológico de pragas, “mas o prejuízo depende de interação com outros insetos e com o ambiente, das respostas da planta e da oferta de água”.


Segundo Parra, os próprios inimigos naturais poderão se desenvolver mais rapidamente e combater as pragas. “Se houver alteração da geografia das culturas, como poderá acontecer com os citrus”, diz ele, “as pragas poderão mudar, e vão prevalecer as mais resistentes a altas temperaturas”.


Efeitos visíveis


“Vimos claramente que a área plantada de café caiu bastante ou até mesmo desapareceu no noroeste paulista e no sul de Minas Gerais, que sofreram um aumento de temperatura nas últimas décadas”, diz Hilton Silveira Pinto, pesquisador da Unicamp e um dos coordenadores do estudo financiado pelo Banco Mundial. Seus estudos anteriores haviam indicado uma redução próxima a 90% nas áreas favoráveis ao plantio em Goiás, Minas e São Paulo e de 75% no Paraná até 2020, em resposta ao aumento de temperatura.


O café deve continuar a ser cultivado apenas nas terras mais altas do Sudeste ou mais ao sul do país, inclusive no Rio Grande do Sul, onde hoje é apenas consumido. “As alterações do clima já estão mudando as redes de transporte e distribuição e organização rural, na medida em que implicam o desemprego ou a migração de mão de obra especializada.”


O aumento da concentração de gás carbônico (CO²) do ar pode ter um efeito favorável, ao aumentar a produtividade agrícola e fazer as plantas crescerem mais rapidamente. Em um dos experimentos de campo da Embrapa de Jaguariúna, chamado Face, sigla de free air carbon dioxide enrichment, os cafeeiros que receberam doses extras de CO² cresceram mais e estão do mesmo tamanho que os pés de café plantados um ano antes, que se nutrem com o CO² fornecido pela atmosfera normal.


Em funcionamento desde agosto de 2011, o Face ocupa uma área de 6,5 hectares cultivada com cafeeiros. Doze octógonos com 10 metros de diâmetro se destacam em meio aos cafeeiros. Em seis octógonos, as plantas recebem CO² em uma concentração de 550 partes por milhão (ppm), simulando a atmosfera do final do século. Por dia, sensores acionados automaticamente de acordo com a direção e intensidade do vento liberam sobre as plantas 600 kg do gás que sai de um tanque de 10 metros. Em outros seis octógonos os cafeeiros contam apenas com o CO² da atmosfera, em uma concentração de 400 ppm — já é mais do que os 350 ppm que Raquel usava há 10 anos para prever o comportamento das plantas. “Há 10 anos, ninguém acreditava quando se falava em mudanças climáticas”, diz ela.


O crescimento acelerado das plantas também pode ser um problema. Nos últimos dois anos, os produtores de flores de Holambra verificaram que as plantas floresceram antes do esperado, provavelmente por causa da elevação da temperatura média na região. Nesse caso, o crescimento acelerado é uma tragédia para quem tem de entregar suas encomendas viçosas nas mãos dos consumidores em datas certas, como a véspera do Dia das Mães ou em Finados.


Na Embrapa Semiárido, de Petrolina, Pernambuco, por meio de uma série de testes em estufas de topo aberto, Francislene Angelotti verificou que as principais doenças causadas por fungos que prejudicam a produção de uvas — o míldio, o oídio e a ferrugem — poderão responder de maneira diferenciada ao aumento da concentração de CO². Há diferenças também de acordo com a variedade de uva. A variedade Sugraone se mostrou mais sensível à ferrugem e a Crimson ao fungo causador do oídio da videira, mas em contrapartida o míldio foi considerado menos agressivo na variedade Itália. De modo similar, o fungo causador do oídio em tomate, alface, pimentão e melão deve se tornar mais comum, beneficiado pela temperatura mais alta e umidade mais intensa. Já o fungo que causa míldio em alface e atualmente se desenvolve bem apenas com frio e umidade deve ter dificuldade para crescer em clima mais quente e seco.


Os especialistas alertam, porém, que os agentes causadores de doenças podem se adaptar ou sair da sombra, aproveitando o espaço deixado por outros. Um microrganismo causador de míldio em abóbora, melão, alface e abobrinha, o Pseudoperonospora cubensis, deveria morrer em temperaturas mais altas, mas aparentemente já se adaptou a um clima mais quente e seco.


“O míldio se tornou uma doença comum no norte de Minas, porque o fungo já se adaptou a um clima mais quente”, diz Kátia Regiane Brunelli, pesquisadora da Sakata Seed Sudamerica Ltda., empresa multinacional japonesa que desenvolve e produz sementes de hortaliças, por meio de melhoramento genético. “Com um clima tendendo para mais quente e seco”, diz Romulo Fujito Kobori, diretor de pesquisa e desenvolvimento da empresa, “algumas doenças causadas por vírus devem se tornar mais importantes do que hoje”.


Substitutos em campo


Kobori, com sua equipe de geneticistas, intensificou a busca por variedades mais resistentes aos efeitos das mudanças do clima logo depois das primeiras conversas com a equipe do Climapest, há sete anos, sobre as doenças mais prováveis daqui a alguns anos. Uma caminhada pelas estufas e pelos canteiros da estação experimental da empresa, em Bragança Paulista, indica que o trabalho amadureceu para a maioria das hortaliças trabalhadas: “Em 20 anos, se o clima mudar muito, esta é uma variedade de brócolis que não vai servir, mas esta outra vai”, diz ele, indicando para os canteiros à sua frente, tomados por brócolis e alface com sutis, mas decisivas, diferenças no porte, formato e espessura das folhas e, claro, na capacidade de sobreviver a doenças.


A Sakata começou há alguns anos a vender variedades de tomate, alface, pimentão, melão, cenoura, cebola, abóbora, abobrinha e pepino geneticamente resistentes a fungos, vírus e bactérias que devem se tornar mais expressivos nos próximos anos nas regiões tropicais. É um trabalho demorado: cada nova variedade toma de 10 a 15 anos de trabalho até se tornar comercial. Ele espera que as técnicas de biologia molecular possam reduzir esse tempo à metade ao identificar as plantas que apresentam os genes que lhes conferem características de interesse como qualidade, produtividade e resistência a doenças.


A seleção genética de novas variedades de árvores frutíferas é ainda mais demorada. “As variedades que usamos são de 60 anos atrás”, diz Renato Beozzo Bassanezi, pesquisador do Fundo de Defesa da Citricultura (Fundecitrus), centro de pesquisa financiado pelos produtores em Araraquara. Laranjeiras mais resistentes às incertezas do tempo seriam bem-vindas porque as mudanças do clima já estão interferindo na citricultura, uma das principais atividades econômicas do estado de São Paulo, o principal produtor nacional e um dos maiores do mundo, com 230 milhões de pés de laranja em produção.


Em 2009, o inesperado excesso de chuva nas plantações de laranja atrapalhou a floração e favoreceu o crescimento de fungos e a produção caiu 10%. Segundo Bassanezi, os produtores compraram fungicidas, que não foram necessários porque no ano seguinte o clima foi seco. Os quase 20 dias de chuva contínua no início de junho deste ano devem antecipar a florada e, outra vez, prejudicar a floração e favorecer o crescimento de ervas daninhas, fungos e insetos transmissores de doenças.


O cancro cítrico, doença de origem bacteriana bastante disseminada, pode se espalhar mais facilmente e se apresentar sob formas mais severas em um clima marcado por temperaturas médias anuais mais elevadas e chuvas mais intensas e concentradas. “Confirmando-se as previsões de mudanças climáticas”, diz Bassanezi, “as regiões do norte e do sul do país ficarão mais favoráveis para epidemias de cancro”.


Bancos de Germoplasma


Se as pragas e doenças avançarem ainda mais, os bancos de germoplasma – coleções de genótipos de arroz, feijão, soja, milho e muitas outras plantas de interesse econômico, mantidas em câmaras resfriadas ou em campo – devem ganhar mais atenção. A situação atual dos bancos de germoplasma é inquietante, porque não há um inventário atualizado das coleções, dispersas em centros de pesquisas, universidades, jardins botânicos e empresas.


“As coleções dos bancos de germoplasma não estão adequadamente caracterizadas”, diz José Baldin Pinheiro, professor da Esalq e presidente da Rede Paulista de Recursos Genéticos, criada em março de 2012. Em um encontro marcado para o mês de dezembro em Piracicaba, os integrantes da rede devem apresentar uma visão atualizada do acervo e do estado de conservação dos bancos paulistas de germoplasma.


Talvez muitas plantas da agricultura do futuro já estejam crescendo no Nordeste. Em novembro de 2006, ao se mudar do interior do Paraná para Petrolina, Francislene admirou-se com a resistência à seca e o poder de regeneração das plantas da região, que pareciam queimadas por fogo, e duas semanas depois de uma chuva começavam a brotar outra vez.


Outra surpresa, há poucos meses, foi saborear as maçãs, peras e caquis irrigados e cultivados no campo experimental da Embrapa. “As variedades de pera do Instituto Agronômico (IAC) de Campinas e de maçãs do Instituto Agronômico do Paraná (Iapar) se adaptaram muito bem”, diz Paulo Roberto Coelho Lopes, coordenador do projeto de diversificação de culturas da Embrapa Semiárido. “Nunca se imaginava que frutas de clima temperado pudessem crescer aqui.”


FONTE


Revista Pesquisa Fapesp
Carlos Fioravanti

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