Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves, do UOL
Há quem situe sua origem em iniciativas católicas dos anos 1940 e 50. E também quem a adiante para os 1960 e 70 ou, tal como se conhece hoje o comércio justo, até os 80. Seja como for, desde então muito mudou esta iniciativa que tenta fazer os pequenos produtores dos países pobres alcançarem condições de trabalho dignas e possibilidades de desenvolvimento, colocando no mercado seus artigos por um preço justo. Mesmo que seja só por seu crescimento exponencial.
Suas vendas em todo o mundo mais que triplicaram entre 2004 e 2008, de 832 milhões de euros para 2,9 bilhões (cerca de R$ 2,24 bilhões para 7,8 bilhões), segundo o número de produtos certificados pela Organização do Selo do Comércio Justo (Fairtrade Labelling Organizations, ou FLO). Esse número pode estar aquém da realidade, já que essa é a principal organização do mundo nesse setor, mas não a única. Em todo caso, ligados ao selo FLO há 1,5 milhão de trabalhadores nos países do sul, e com isso se calcula que melhoraram as condições de vida de 7,5 milhões de pessoas.
Eles vendem principalmente café, cacau, chá, açúcar, frutas ou algodão; nos últimos anos o artesanato se estagnou. As vendas precisam da cumplicidade de compradores conscientes em países ricos, já que esses produtos são mais caros que os “injustos”. Mais de dois terços de seus consumidores estão na Europa. Talvez não tenha deixado de ser um setor supérfluo dentro do volume do comércio internacional, mas alcançou tamanho suficiente para marcar um ponto de inflexão dentro do movimento, no qual alguns propõem que se detenha um pouco para não perder os valores originais de combate a estruturas injustas, e outros querem continuar aumentando as vendas ao máximo possível para ajudar o maior número de produtores, inserindo o comércio justo nos esquemas tradicionais dominantes, isto é, a venda em grandes supermercados, ou que as grandes companhias, pressionadas pelos consumidores, comecem a oferecer produtos justos.
Isto implica muitas vezes, também, que entrem nesse tipo de comércio grandes plantações, que são as que realmente podem responder a um grande aumento da demanda, deixando fora os pequenos. “O comércio justo nasceu para que os pequenos produtores do sul pudessem ter acesso ao mercado. E, é verdade, somos pequenos elementos, não temos uma reação rápida”, admite Jan Bernhard, diretor da Associação de Pequenos Produtores de Tongorrape, no Peru.
O comércio solidário marcou uma grande mudança ao introduzir critérios éticos no desalmado comércio internacional. Já não se trata mais de quanto custa, de quanto preciso ou quanto gosto de algo, mas de se alguém foi explorado para produzi-lo. Mas a ética e as posições solidárias costumam encontrar sempre um mesmo dilema, entre o ideal – como deveriam ser as coisas? – e o possível – o que podemos fazer com o que temos para melhorar a situação já? Um dilema no qual o comércio justo se encontra imerso hoje.
Na Espanha, embora com crescimento significativo (aumentou 50% entre 2004 e 2007, para 17,2 milhões de euros, segundo o anuário de comércio justo da ONG Setem, os números ainda são modestos se comparados com outros países, como Reino Unido (880 milhões), EUA (757) ou França (255). No contexto atual de crise econômica, Rafael Sanchís, da Intermon Oxfam, se felicita porque as vendas não baixaram, mas reconhece que na Espanha ainda não se sabe exatamente o que é o comércio justo (28% da população sabem, contra 90% no Reino Unido).
No entanto, o debate já está muito presente. Ninguém questiona os princípios básicos: ao preço razoável some-se o respeito ao meio ambiente, o apoio preferencial a comunidades marginalizadas, a melhora das condições de trabalho – é claro, que as crianças vão à escola em vez de trabalhar -, definitivamente que o comércio internacional seja um pouco mais justo e que os que estão pior vivam um pouco melhor.
Mas o relatório da Setem de 2008 divide as importadoras espanholas em duas categorias. A primeira, que corresponde à maioria, é a que vê o comércio justo de uma maneira “conciliatória com o modelo econômico em que vivemos”, os que querem vender quanto mais melhor, que costuma levar à necessidade de certificação, de se concentrar em produtos com boa saída nos países ricos e chegar à grande distribuição. A segunda seria a dos que entendem esse comércio “como uma ferramenta de transformação social”, com um componente mais político e combativo com as atuais estruturas e que, sob o lema da soberania alimentar, não importam produtos do sul que existam no norte e tentam reforçar os mercados do sul para que não precisem depender da demanda dos países ricos.
Pode-se dizer que a Intermon, uma das principais importadoras, está na primeira, e a Sodepaz, muito mais modesta, na segunda. Rafael Sanchís, da Intermon, aposta que serão as empresas privadas que acabarão se encarregando da distribuição desses artigos, assumindo, é claro, seus princípios. “No futuro não será uma coisa de ONGs, mas da empresa privada”, diz. Segundo os cálculos da Intermon, “se a África, a Ásia oriental, a Ásia meridional e a América Latina aumentarem sua cota de exportações mundiais em 1%, os lucros gerados representariam cinco vezes a quantia que recebem como ajuda e tirariam da pobreza 128 milhões de pessoas”.
“Devemos execrar a ideia de que vender mais é melhor”, diz, é claro, no outro lado do debate, Federica Carraro, da Sodepaz. Ela se queixa de que estão sendo aplicadas ao comércio justo “as regras do mercado neoliberal”. Não quer ouvir falar de comércio justo em grandes superfícies, as mesmas que “promovem a deslocalização da produção, destroem a atividade econômica e o tecido comercial local, criam empregos temporários e de baixa qualidade”.
“Começa-se cedendo um pouco, e acabou. Muitos de nós questionamos se é válido que as grandes transnacionais estejam dentro do comércio justo, se a Starbucks deve tê-lo, quando na verdade o que oferece é mínimo”, indica o professor de economia Pablo Pérez Akaki, da Universidade Nacional Autônoma do México. Assim, grandes supermercados, empresas de comércio internacional, plantações agrícolas, autoridades públicas ou multinacionais da alimentação entraram em cena. Tanto Carraro como Pérez Akaki se queixam da confusão que pode criar no consumidor essa enorme variedade sob o mesmo guarda-chuva, quando algumas das grandes empresas só estão “lavando sua imagem”.
No centro desse guarda-chuva está o principal selo que certifica o cumprimento de alguns padrões, a Organização do Selo do Comércio Justo (FLO), embora o cenário das certificações esteja crescendo. Junto dela, a principal é a Associação Internacional de Organizações de Comércio Justo, que certifica organizações, e não produtos. Pablo Cabrera, diretor do selo FLO na Espanha, explica que estão presentes em 22 países e representam 600 organizações. Ele refuta as críticas.
Por exemplo, diz que nos últimos anos a organização foi aberta aos produtores, que antes eram apenas representados. Defende que o selo garante que parte dos lucros sejam reinvestidos em melhoras sociais para as comunidades e que se mantêm alguns critérios para os pequenos e outros para melhorar as condições de trabalhadores assalariados em grandes plantações – as grandes áreas de café têm o selo vetado, afirma.
Admite que talvez o sistema que propõe não seja “perfeito”, mas que é o melhor dos possíveis, embora haja coisas a melhorar. Ele também reconhece que, pelo volume, seria extremamente complexo negociar com os produtores um preço sobre os custos de produção, como propõem muitas vozes, em vez de garantir um preço mínimo. Segundo um estudo de 2007 do instituto americano Food First, apesar de que esse preço mínimo “foi um salva-vidas durante a crise do café, como nunca foi vinculado aos custos de produção ou de vida, hoje é cada vez menos eficaz para garantir as prestações sociais”, embora seja verdade que com o cultivo convencional “perderiam mais dinheiro”.
Exatamente, uma das questões pendentes indicadas no relatório da Setem é o acompanhamento do impacto real que o comércio solidário tem nas comunidades do sul. O Instituto Adam Smith, um grupo conservador de pensadores britânicos, publicou no ano passado um estudo em que acusava esse modelo de comércio de distorcer o mercado para ajudar alguns e deixar a maioria em situação ainda pior. Além disso, afirmava que só 10% do sobrepreço que os consumidores pagam por esses artigos chegam ao produtor.
O caso é que, além das críticas de posições mais neoliberais, os importadores de comércio justo também se preocupam em reduzir ao mínimo os intermediários entre o produtor e o consumidor, mas dificilmente será possível levar o algodão do Mali até a Espanha, por exemplo, sem um barco. Duas questões aqui são fundamentais para Federica Carraro. A primeira, não importar coisas que já existam no país de destino e fomentar o autoconsumo e o comércio justo dentro dos países pobres, se necessário com acordos entre produtores através de permuta.
A concentração do grosso dos produtos de comércio justo no mercado de matérias-primas – da alimentação e este, por sua vez, no café – que depois são elaboradas no norte contribui para manter o modelo agroexportador e de monocultura, e dificulta sua segurança alimentar, afirma. Sobre o estudo do Instituto Adam Smith, Rafael Sanchís lembra que, embora crescente, o volume do comércio justo ainda não dá para desestabilizar nenhum mercado. E, quanto à diversificação e ao desenvolvimento de fábricas que deem valor agregado, está de acordo, mas diz que não se pode obrigar os produtores a fazer o que as organizações do norte querem.
O professor Pérez Akaki, da UNAM, afirma que até o momento o comércio justo é a melhor solução que foi encontrada para os pequenos produtores dos países pobres. No entanto, acredita que se devem “buscar canais solidários, manter valores firmes e buscar os nichos específicos”, isto é, em vez de crescer buscando os consumidores nos grandes canais de distribuição, aumentar a base de consumidores conscientes, o que terá um impacto mais válido e duradouro. “Eu entendo a pressão que podem ter dos próprios produtores para chegar pelo outro caminho”, acrescenta. Mas a verdade é que qualquer pequeno produtor de um país do sul pode estar pensando neste momento que o que ele precisa é melhorar sua vida hoje, e não em longo prazo.
“Quando você fala com os produtores, eles querem é acesso ao mercado de uma maneira maior; veem isso muito claro”, diz Sanchís. Mas nem todos veem tão claro. Jan Bernhard, co-fundador e diretor durante quatro anos da Coordenadoria Latino-Americana e do Caribe de Pequenos Produtores de Comércio Justo (Clac, a mais importante, junto com a africana AFN e a asiática NAP), é um firme defensor “da visão e missão original do comércio justo, sob os princípios de transparência, solidariedade e equidade”. Bernhard se queixa da aterrissagem no movimento “dos grandes tubarões”, isto é, os grandes provedores. E da entrada de grandes plantações do Brasil ou da África do Sul. “O que isso tem a ver com o comércio justo?”, indaga-se.
Ele afirma que, para que o modelo funcione para os pequenos, a oferta tem de se manter abaixo da demanda. Melhorar as condições de trabalho dos assalariados de grandes plantações “é muito bom, mas não é o comércio justo, que foi criado para dar acesso ao mercado aos pequenos produtores que não podiam chegar de outra maneira”, afirma.
Do ponto de vista do consumidor, e não do atacadista desavisado, mas do que está mais ou menos consciente, a pergunta seria se está disposto a renunciar aos esquemas de privilégios do norte, que, no fundo, são os que lhe permitem comprar um pouco mais caros os produtos do comércio justo e o fazem sentir-se um pouco melhor, lembra Carraro.
Como em todo movimento solidário, há muitos níveis de compromisso, há contradições e cada pessoa, afinal, é quem escolhe dentro de uma escala de matizes. Carraro, em seu livro “El Rompecabezas de la Equidad” [O quebra-cabeça da equidade], assinado com Rodrigo Fernández e José Verdú, define o comércio justo como um oximoro. Um oximoro é uma figura de retórica que ocorre quando se unem duas palavras de significado oposto, como em “um silêncio estrondoso”, portanto, uma contradição. Mas ao unir as duas palavras, diz o dicionário, pode-se criar um novo significado.
23/08/2009 07:08:07 – UOL
Há quem situe sua origem em iniciativas católicas dos anos 1940 e 50. E também quem a adiante para os 1960 e 70 ou, tal como se conhece hoje o comércio justo, até os 80. Seja como for, desde então muito mudou esta iniciativa que tenta fazer os pequenos produtores dos países pobres alcançarem condições de trabalho dignas e possibilidades de desenvolvimento, colocando no mercado seus artigos por um preço justo. Mesmo que seja só por seu crescimento exponencial. Suas vendas em todo o mundo mais que triplicaram entre 2004 e 2008, de 832 milhões de euros para 2,9 bilhões (cerca de R$ 2,24 bilhões para 7,8 bilhões), segundo o número de produtos certificados pela Organização do Selo do Comércio Justo (Fairtrade Labelling Organizations, ou FLO).
Esse número pode estar aquém da realidade, já que essa é a principal organização do mundo nesse setor, mas não a única. Em todo caso, ligados ao selo FLO há 1,5 milhão de trabalhadores nos países do sul, e com isso se calcula que melhoraram as condições de vida de 7,5 milhões de pessoas.
Eles vendem principalmente café, cacau, chá, açúcar, frutas ou algodão; nos últimos anos o artesanato se estagnou. As vendas precisam da cumplicidade de compradores conscientes em países ricos, já que esses produtos são mais caros que os “injustos”. Mais de dois terços de seus consumidores estão na Europa. Talvez não tenha deixado de ser um setor supérfluo dentro do volume do comércio internacional, mas alcançou tamanho suficiente para marcar um ponto de inflexão dentro do movimento, no qual alguns propõem que se detenha um pouco para não perder os valores originais de combate a estruturas injustas, e outros querem continuar aumentando as vendas ao máximo possível para ajudar o maior número de produtores, inserindo o comércio justo nos esquemas tradicionais dominantes, isto é, a venda em grandes supermercados, ou que as grandes companhias, pressionadas pelos consumidores, comecem a oferecer produtos justos.
Isto implica muitas vezes, também, que entrem nesse tipo de comércio grandes plantações, que são as que realmente podem responder a um grande aumento da demanda, deixando fora os pequenos. “O comércio justo nasceu para que os pequenos produtores do sul pudéssemos ter acesso ao mercado. E, é verdade, somos pequenos elementos, não temos uma reação rápida”, admite Jan Bernhard, diretor da Associação de Pequenos Produtores de Tongorrape, no Peru.
O comércio solidário marcou uma grande mudança ao introduzir critérios éticos no desalmado comércio internacional. Já não se trata mais de quanto custa, de quanto preciso ou quanto gosto de algo, mas de se alguém foi explorado para produzi-lo. Mas a ética e as posições solidárias costumam encontrar sempre um mesmo dilema, entre o ideal – como deveriam ser as coisas? – e o possível – o que podemos fazer com o que temos para melhorar a situação já? Um dilema no qual o comércio justo se encontra imerso hoje.
Na Espanha, embora com crescimento significativo (aumentou 50% entre 2004 e 2007, para 17,2 milhões de euros, segundo o anuário de comércio justo da ONG Setem, os números ainda são modestos se comparados com outros países, como Reino Unido (880 milhões), EUA (757) ou França (255). No contexto atual de crise econômica, Rafael Sanchís, da Intermon Oxfam, se felicita porque as vendas não baixaram, mas reconhece que na Espanha ainda não se sabe exatamente o que é o comércio justo (28% da população sabem, contra 90% no Reino Unido). No entanto, o debate já está muito presente. Ninguém questiona os princípios básicos: ao preço razoável some-se o respeito ao meio ambiente, o apoio preferencial a comunidades marginalizadas, a melhora das condições de trabalho – é claro, que as crianças vão à escola em vez de trabalhar -, definitivamente que o comércio internacional seja um pouco mais justo e que os que estão pior vivam um pouco melhor.
Mas o relatório da Setem de 2008 divide as importadoras espanholas em duas categorias. A primeira, que corresponde à maioria, é a que vê o comércio justo de uma maneira “conciliatória com o modelo econômico em que vivemos”, os que querem vender quanto mais melhor, que costuma levar à necessidade de certificação, de se concentrar em produtos com boa saída nos países ricos e chegar à grande distribuição. A segunda seria a dos que entendem esse comércio “como uma ferramenta de transformação social”, com um componente mais político e combativo com as atuais estruturas e que, sob o lema da soberania alimentar, não importam produtos do sul que existam no norte e tentam reforçar os mercados do sul para que não precisem depender da demanda dos países ricos.
Pode-se dizer que a Intermon, uma das principais importadoras, está na primeira, e a Sodepaz, muito mais modesta, na segunda. Rafael Sanchís, da Intermon, aposta que serão as empresas privadas que acabarão se encarregando da distribuição desses artigos, assumindo, é claro, seus princípios. “No futuro não será uma coisa de ONGs, mas da empresa privada”, diz. Segundo os cálculos da Intermon, “se a África, a Ásia oriental, a Ásia meridional e a América Latina aumentarem sua cota de exportações mundiais em 1%, os lucros gerados representariam cinco vezes a quantia que recebem como ajuda e tirariam da pobreza 128 milhões de pessoas”.
“Devemos execrar a ideia de que vender mais é melhor”, diz, é claro, no outro lado do debate, Federica Carraro, da Sodepaz. Ela se queixa de que estão sendo aplicadas ao comércio justo “as regras do mercado neoliberal”. Não quer ouvir falar de comércio justo em grandes superfícies, as mesmas que “promovem a deslocalização da produção, destroem a atividade econômica e o tecido comercial local, criam empregos temporários e de baixa qualidade”. “Começa-se cedendo um pouco, e acabou. Muitos de nós questionamos se é válido que as grandes transnacionais estejam dentro do comércio justo, se a Starbucks deve tê-lo, quando na verdade o que oferece é mínimo”, indica o professor de economia Pablo Pérez Akaki, da Universidade Nacional Autônoma do México. Assim, grandes supermercados, empresas de comércio internacional, plantações agrícolas, autoridades públicas ou multinacionais da alimentação entraram em cena. Tanto Carraro como Pérez Akaki se queixam da confusão que pode criar no consumidor essa enorme variedade sob o mesmo guarda-chuva, quando algumas das grandes empresas só estão “lavando sua imagem”.
No centro desse guarda-chuva está o principal selo que certifica o cumprimento de alguns padrões, a Organização do Selo do Comércio Justo (FLO), embora o cenário das certificações esteja crescendo. Junto dela, a principal é a Associação Internacional de Organizações de Comércio Justo, que certifica organizações, e não produtos. Pablo Cabrera, diretor do selo FLO na Espanha, explica que estão presentes em 22 países e representam 600 organizações. Ele refuta as críticas. Por exemplo, diz que nos últimos anos a organização foi aberta aos produtores, que antes eram apenas representados. Defende que o selo garante que parte dos lucros sejam reinvestidos em melhoras sociais para as comunidades e que se mantêm alguns critérios para os pequenos e outros para melhorar as condições de trabalhadores assalariados em grandes plantações – as grandes áreas de café têm o selo vetado, afirma.
Admite que talvez o sistema que propõe não seja “perfeito”, mas que é o melhor dos possíveis, embora haja coisas a melhorar. Ele também reconhece que, pelo volume, seria extremamente complexo negociar com os produtores um preço sobre os custos de produção, como propõem muitas vozes, em vez de garantir um preço mínimo. Segundo um estudo de 2007 do instituto americano Food First, apesar de que esse preço mínimo “foi um salva-vidas durante a crise do café, como nunca foi vinculado aos custos de produção ou de vida, hoje é cada vez menos eficaz para garantir as prestações sociais”, embora seja verdade que com o cultivo convencional “perderiam mais dinheiro”.
Exatamente, uma das questões pendentes indicadas no relatório da Setem é o acompanhamento do impacto real que o comércio solidário tem nas comunidades do sul. O Instituto Adam Smith, um grupo conservador de pensadores britânicos, publicou no ano passado um estudo em que acusava esse modelo de comércio de distorcer o mercado para ajudar alguns e deixar a maioria em situação ainda pior. Além disso, afirmava que só 10% do sobrepreço que os consumidores pagam por esses artigos chegam ao produtor.
O caso é que, além das críticas de posições mais neoliberais, os importadores de comércio justo também se preocupam em reduzir ao mínimo os intermediários entre o produtor e o consumidor, mas dificilmente será possível levar o algodão do Mali até a Espanha, por exemplo, sem um barco. Duas questões aqui são fundamentais para Federica Carraro. A primeira, não importar coisas que já existam no país de destino e fomentar o autoconsumo e o comércio justo dentro dos países pobres, se necessário com acordos entre produtores através de permuta.
A concentração do grosso dos produtos de comércio justo no mercado de matérias-primas – da alimentação e este, por sua vez, no café – que depois são elaboradas no norte contribui para manter o modelo agroexportador e de monocultura, e dificulta sua segurança alimentar, afirma. Sobre o estudo do Instituto Adam Smith, Rafael Sanchís lembra que, embora crescente, o volume do comércio justo ainda não dá para desestabilizar nenhum mercado. E, quanto à diversificação e ao desenvolvimento de fábricas que deem valor agregado, está de acordo, mas diz que não se pode obrigar os produtores a fazer o que as organizações do norte querem.
O professor Pérez Akaki, da UNAM, afirma que até o momento o comércio justo é a melhor solução que foi encontrada para os pequenos produtores dos países pobres. No entanto, acredita que se devem “buscar canais solidários, manter valores firmes e buscar os nichos específicos”, isto é, em vez de crescer buscando os consumidores nos grandes canais de distribuição, aumentar a base de consumidores conscientes, o que terá um impacto mais válido e duradouro. “Eu entendo a pressão que podem ter dos próprios produtores para chegar pelo outro caminho”, acrescenta. Mas a verdade é que qualquer pequeno produtor de um país do sul pode estar pensando neste momento que o que ele precisa é melhorar sua vida hoje, e não em longo prazo.
“Quando você fala com os produtores, eles querem é acesso ao mercado de uma maneira maior; veem isso muito claro”, diz Sanchís. Mas nem todos veem tão claro. Jan Bernhard, cofundador e diretor durante quatro anos da Coordenadoria Latino-Americana e do Caribe de Pequenos Produtores de Comércio Justo (Clac, a mais importante, junto com a africana AFN e a asiática NAP), é um firme defensor “da visão e missão original do comércio justo, sob os princípios de transparência, solidariedade e equidade”. Bernhard se queixa da aterrissagem no movimento “dos grandes tubarões”, isto é, os grandes provedores. E da entrada de grandes plantações do Brasil ou da África do Sul. “O que isso tem a ver com o comércio justo?”, indaga-se.
Ele afirma que para que o modelo funcione para os pequenos a oferta tem de se manter abaixo da demanda. Melhorar as condições de trabalho dos assalariados de grandes plantações “é muito bom, mas não é o comércio justo, que foi criado para dar acesso ao mercado aos pequenos produtores que não podiam chegar de outra maneira”, afirma.
Do ponto de vista do consumidor, e não do atacadista desavisado, mas do que está mais ou menos consciente, a pergunta seria se está disposto a renunciar aos esquemas de privilégios do norte, que, no fundo, são os que lhe permitem comprar um pouco mais caros os produtos do comércio justo e o fazem sentir-se um pouco melhor, lembra Carraro.
Como em todo movimento solidário, há muitos níveis de compromisso, há contradições e cada pessoa, afinal, é quem escolhe dentro de uma escala de matizes. Carraro, em seu livro “El Rompecabezas de la Equidad” [O quebra-cabeça da equidade], assinado com Rodrigo Fernández e José Verdú, define o comércio justo como um oximoro. Um oximoro é uma figura de retórica que ocorre quando se unem duas palavras de significado oposto, como em “um silêncio estrondoso”, portanto, uma contradição. Mas ao unir as duas palavras, diz o dicionário, pode-se criar um novo significado.
Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves