Mônica Scaramuzzo, de Poços de Caldas (MG), Botelhos (MG), São Sebastião da Grama (SP) e Espírito Santo do Pinhal (SP)
Quando a bisavó do cafeicultor Gabriel de Carvalho Dias adquiriu, em 1890, terras na região de Poços de Caldas, no sul de Minas Gerais, não imaginava que suas propriedades estavam bem em cima de um vulcão. E esse é um detalhe que fez muita diferença. Primeiro, porque colocou Poços de Caldas na rota nacional do turismo por suas águas quentes e mineralizadas, com poder de cura. Mas também porque é nessa região circundada por montanhas, que faz divisa com a pequena Botelhos e a cidade paulista de São Sebastião da Grama, que é plantado um dos melhores cafés do mundo.
A “culpa” toda é do vulcão, que nunca entrou em erupção e provavelmente nunca entrará, mas que conferiu àquela região o que os produtores de vinho chamam de “terroir”, termo de origem francesa que significa extensão de terra com aptidões agrícolas.
São nessas áreas entre Poços de Caldas, Botelhos e São Sebastião da Grama, com clima naturalmente frio e terras mais férteis, em consequência do maior teor de potássio no solo, a uma altitude entre 950 metros e 1.500 metros, que também é cultivada a chamada princesinha dos grãos, o bourbon amarelo – café arábica top de linha, que confere à bebida sabor e aroma típicos e qualidade superior.
“Minha bisavó [Matilde Carvalho Dias] teve 11 filhos e dividiu suas propriedades [cerca de 6 mil hectares] entre eles. Boa parte se desfez de suas propriedades. Dois deles se associaram à CBA (Companhia Brasileira do Alumínio) [do grupo Votorantim] para exploração de minérios [bauxita] e outra parte foi para pecuária em áreas menos férteis. Mas foi no café que a família se consolidou”, diz Carvalho Dias.
Carvalho Dias é um dos maiores produtores de bourbon amarelo do Brasil e também preside a Bourbon Specialty Coffees, trading exportadora de café verde e de torrado e moído para expresso, com sede em Poços de Caldas. Na fazenda Cachoeira da Grama, em São Sebastião da Grama (SP), a família de Carvalho Dias cultiva café em 140 hectares, de uma área total de 417 hectares, e possui uma torrefadora na mesma propriedade. É dessa fazenda que saem os cafés com a marca Spress Café, vendidos nas redes de restaurantes Galetos e em supermercados de luxo do país.
São Sebastião da Grama é uma cidade de apenas 13 mil habitantes e 13 torrefadoras. Parece exagero, mas os melhores cafés da cidade não ficam por lá: atravessam o Atlântico para os mercados mais exigentes do Japão e Europa. Todos os anos os cafeicultores dessa cidade são premiados pela qualidade de seus grãos. “A cidade vive da agricultura, sobretudo café”, afirma o prefeito Emílio Bizon (PPS-SP). São 15 milhões de pés de café e 450 propriedades, de pequenos e médios cafeicultores.
Toda essa região, chamada de Vale da Grama, cujo microclima típico e propício para o plantio de café, concentra fazendas produtoras de grãos especiais. A Sertãozinho, em Botelhos, está expandindo seus negócios, com a aquisição de duas propriedades vizinhas. Essa propriedade é administrada pelo engenheiro agrônomo José Renato Gonçalves Dias e sua esposa, Ana Cecília Carvalho Dias, de tradicionais famílias de cafeicultores da região, mas que representam uma nova geração de agricultores que não olham o café apenas como uma commodity. Ana Cecília é prima de Gabriel, ambos bisnetos de dona Matilde.
A fazenda Sertãozinho, que pertence ao empresário Roberto Irineu Marinho, presidente das Organizações Globo, também abriga uma torrefadora, que comercializa o Café Orfeu, também vendido em restaurantes, hotéis e supermercados de luxo do país. Em uma área de quase 900 hectares, Ana Cecília e José Renato “cuidam” de 2,25 milhões de pés de café. Nesta safra 2008 vão colher cerca de 26 mil sacas de 60 quilos, dos quais 40% são grãos especiais. Entre 2007 e este ano, adquiriram duas propriedades vizinhas para aumentar a oferta de café especial. Ana Cecília e seu marido são sócios minoritários da Café Orfeu.
O mercado de cafés especiais ainda é pequeno, se comparado com o universo de grãos convencionais do país. A colheita dessa safra deve totalizar 45,8 milhões de sacas. Desse total, entre 500 mil sacas a 1 milhão de sacas são considerados cafés especiais, de acordo com levantamento da Associação Brasileira dos Produtores de Cafés Especiais (BSCA, na sigla em inglês). Essa entidade reúne 42 associados, que produzem cerca de 200 mil sacas de grãos com essas qualificações por ano.
O Brasil, maior produtor e exportador de café, embarca mais de 80% de sua produção de grãos especiais, sobretudo para o Japão e os EUA. “Esse mercado deslanchou a partir de 2000, com o crescimento da demanda no mercado internacional”, diz Carvalho Dias, que também preside a BSCA. Uma saca de café especial é, no mínimo, 30% mais caro que os grãos convencionais e pode custar o dobro, dependendo da região produtora. Com a crise global, a demanda no país pode até não avançar em um ritmo mais acelerado, mas vinha crescendo a uma média de 20% ao ano.
A produção de cafés especiais exige cuidados desde o momento da colheita até a industrialização do produto. Durante a colheita, os grãos não podem ter contato com a terra e em menos de duas horas têm de ser levados para as secadoras. “Nesse meio tempo, se os grãos fermentarem colocam todo um trabalho a perder”, explica José Renato Dias. Na fazenda Sertãozinho, o café colhido das árvores fica acomodado em um pano para não ter contato com a terra.
Boa parte das fazendas de cafés especiais também adota práticas socioambientais, uma exigência, sobretudo, dos importadores. Na fazenda Lambari, de Poços de Caldas, que pertence ao grupo Astro Café, e na Cachoeira da Grama, duas escolas de ensino fundamental construídas pelas prefeituras locais contam com parceria dos cafeicultores. Na fazenda Lambari, a Astro construiu uma biblioteca e colocou computadores à disposição da população. Os cafeicultores buscam certificações internacionais, que dão garantias que o produto não foi cultivado sobre áreas de reserva e que não explora mão-de-obra infantil.
A fiscalização em cafezais voltou a se intensificar nos últimos meses. O Valor flagrou uma batida dos fiscais do trabalho em cafezais da região de Poços. Segundo os fiscais, que não quiseram se identificar, as principais denúncias desse setor são de ausência de equipamentos de segurança e falta de banheiros improvisados nos locais de colheita de café. A mão-de-obra tem um forte peso nos custos de produção de café, representando quase 40% do total. E com as fortes oscilações da commodity nas bolsas internacionais muitos produtores começaram a diversificar as atividades.
Com 40 anos, dos quais mais da metade em lavouras de café, Amadeu Teixeira de Freitas, casado e pai de dois filhos, é considerado um craque na colheita, assim como seu pai. Ele ganha, em média, quase R$ 2 mil bruto durante a colheita (de julho a setembro), mas para garantir esse salário chega a coletar 20 sacas de 60 quilos por dia, ou 1,2 tonelada. Freitas não é regra. Boa parte de seus colegas ganha metade ou até um terço. O salário aumenta de acordo com a produtividade, assim como na cana.
Parte da colheita de café no país já é mecanizada, o que reduz drasticamente os custos, mas no sul de Minas, por conta das áreas acidentadas, a mão-de-obra não pode ser substituída por máquinas. A alta declividade também impediu que os canaviais invadissem os cafezais. Na região de Poços de Caldas, a cana é considerada uma forasteira, mas mesmo assim já margeia a região e é considerada inimiga dos cafeicultores. Cada agricultor defende a tradição da cultura no país. Mas hoje as duas atividades estão em lados opostos. Enquanto a cana avança a olhos vistos, os cafeicultores travam uma luta para evitar que a área plantada com grãos no país não mingüe cada vez mais.