Publicada em julho de 1987
Alcides Carvalho
A vida acadêmica de Alcides Carvalho foi inteiramente dedicada ao estudo do café. De 1948 a 1981, ele foi pesquisador chefe da seção de Genética do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), que deu origem a praticamente todos os tipos de café cultivados atualmente no Brasil e a um dos bancos de variedades e espécies de café mais completos do mundo.
Quando Alcides se integrou ao IAC, em 1935, a seção de Genética estava sendo organizada e começava-se a estudar métodos de melhoramento que pudessem ser utilizados no cafeeiro. A base do trabalho era pesquisar a citologia, a genética, a reprodução e a evolução das variedades para possibilitar que o Brasil produzisse linhagens mais competitivas no mercado internacional.
Dos 80 anos de sua vida (1913-1993), Alcides dedicou mais de 50 ao trabalho no IAC, uma atividade que ele considerava, acima de tudo, empolgante. O reconhecimento veio em forma de prêmios. Doutor honoris causa pela Esalq, Alcides também recebeu o Prêmio Nacional de Ciência e Tecnologia em 1982 e foi considerado ” servidor emérito” pelo governo de São Paulo.
Alcides Carvalho
(1913-1993)
Entrevista concedida a Vera Rita da Costa (Ciência Hoje).
Publicada em julho de 1987.
Há 52 anos Alcides Carvalho se dedica ao estudo da genética, da evolução e do melhoramento do café. Em 1935, recém-formado pela Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz (Esalq), em Piracicaba (SP), foi convidado para trabalhar no Instituto Agronômico de Campinas (IAC), onde Carlos Arnaldo Krug organizava a Seção de Genética, concentrando esforços no estudo do cafeeiro e do milheiro. Alcides começou então a colaborar no “Plano geral de estudos do cafeeiro”, que previa o estudo das populações dessa planta e dos seus mecanismos de reprodução, análises genéticas e citológicas e pesquisas relacionadas à fisiologia, à química e à tecnologia do produto. Praticamente todos os cultivares plantados atualmente no Brasil tiveram origem na Seção de Genética do IAC, de que esse pesquisador foi chefe de 1948 a 1981. Doutor honoris causa pela Esalq, agraciado com o Prêmio Nacional de Ciência e Tecnologia em 1982, Alcides Carvalho recebeu, em 1983, quando de sua aposentadoria compulsória, aos 70 anos, uma homenagem especial: o Estado de São Paulo considerou-o “servidor emérito”, o que lhe permite continuar pesquisando e formando pesquisadores.
Gostaríamos, inicialmente, que nos falasse sobre sua origem e contasse como nasceu sua vocação científica.
Na minha família ninguém trabalhava com pesquisa. Meu pai foi administrador de uma fazenda de café e posteriormente trabalhou num cartório de paz e registro civil, em São Pedro do Turvo (SP). Quando tinha seis anos fui morar em São Pedro e de lá voltei, aos doze anos, para Piracicaba, para trabalhar e estudar à noite. Como naquele tempo eram poucos os cursos secundários, o estudante fazia escola de comércio. Formado na Escola de Comércio Moraes Barros, resolvi entrar para a Esalq. Quando me graduei, o dr. Krug, que era chefe da Seção de Genética do IAC, me convidou para vir a Campinas, conhecer o Instituto e ver se me interessava em trabalhar com café. Vim, gostei e aqui permaneci. Tive a rara oportunidade de trabalhar com café a vida toda. Achei que era extremamente importante trabalhar com uma planta que tanta riqueza trouxe a São Paulo. Não tive uma vocação especial. Gostei da idéia, da planta, e continuei trabalhando até agora.
Como era o IAC quando o senhor começou a trabalhar? A Seção de Genética já existia?
A Seção de Genética estava sendo organizada. O dr. Krug fizera o curso secundário na Alemanha, a graduação na Esalq e a pós-graduação nos Estados Unidos. Ele organizou pessoalmente os planos de estudo de várias culturas de interesse para São Paulo, principalmente o café e o milho. Naquela ocasião, em 1932, estava-se começando a produzir milho híbrido, e o dr. Krug deu início aos estudos voltados para sua produção aqui. É interessante saber que São Paulo foi a primeira região, fora dos Estados Unidos, a produzir milho híbrido com linhagens selecionadas em instituições locais. Quando vim para cá, no início de 1935, os trabalhos com café estavam começando e, como não se conheciam as variedades de Coffea arabica, iniciou-se um estudo sobre taxonomia e sobre a biologia da reprodução do café, com o objetivo de ter informações sobre o modo como os cultivares dessa espécie se multiplicavam na natureza.
Deu-se início, também, à pesquisa sobre os métodos de melhoramento aplicáveis ao cafeeiro. Estudos básicos relativos à citologia, genética, biologia da reprodução, e mesmo os de sistemática e evolução, eram realizados tendo-se em vista sua aplicação ao melhoramento. A finalidade precípua era conseguir linhagens mais produtivas, para que o Brasil pudesse posteriormente melhor competir no mercado internacional. Todo o material coletado, tanto de variedades como de espécies de café, foi sendo conservado em coleção, no “banco de germoplasma”, mantido até hoje em Campinas, um dos mais completos do mundo.
Como era encarada essa busca de aumento de produção numa época de superprodução de café?
Na época parecia utópico, porque justamente em 1932/33 o Brasil não sabia o que fazer com o enorme volume de café armazenado. Milhares e milhares de sacas estavam sendo queimadas e só a cinza era aproveitada, usada como adubo nas lavouras. Falar em iniciar um trabalho de melhoramento para aumentar a produção parecia um absurdo. Mas o dr. Krug previa que, após a eliminação de tantos cafezais, chegaria o momento de implantar novas lavouras.
Os lavradores, por essa ocasião, deveriam poder dispor de sementes de linhagens selecionadas, altamente produtivas e de boa qualidade. Valia a pena, então, começar a trabalhar, para que pudéssemos, dali a quinze ou vinte anos, dispor dessas linhagens. Tive a rara oportunidade de participar, com o dr. Krug, dos primeiros trabalhos de melhoramento genético do cafeeiro e desenvolvê-los até agora. O dr. Krug teve grande influência na formação técnica de todos os que trabalharam com ele no IAC. Além dos conhecimentos científicos, tinha rara capacidade de organização, orientando todas as pesquisas em andamento na Seção de Genética.
A partir de que momento as pesquisas sobre melhoramento de café começaram a ser reconhecidas, valorizadas?
As pesquisas foram iniciadas em 1934. Uns dez anos depois começaram a aparecer os primeiros resultados de interesse para os cafeicultores. As primeiras seleções foram feitas com o café burbom-vermelho, porque era a variedade mais cultivada em São Paulo e diferente daquela que se plantava anteriormente, a arábica ou nacional. O burbom-vermelho era bem mais produtivo e as seleções realizadas chegaram a dar 100% a mais que as da variedade arábica. Em 1936, a Seção de Genética começou a estudar o café caturra, que veio do Espírito Santo. Era um café de porte baixo e muito produtivo. O porte baixo é valioso – facilita a colheita e os tratos fitossanitários. O caturra, por falta de vigor, não se adaptou bem às condições de São Paulo, mas foi aproveitado para agrupamento com o mundo-novo, dando origem ao catuaí, que é de excepcional valor. Tem porte pequeno, alta produtividade e rusticidade. Aliás, o aparecimento do caturra, de pequeno porte e produtivo, provocou verdadeira revolução na cafeicultura. Tanto assim que vem sendo usado até hoje em todos os centros experimentais de melhoramento cafeeiro para a obtenção de cultivares de porte reduzido.
Como foi feita a introdução dessas variedades na cafeicultura? Qual era a receptividade dos cafeicultores?
A introdução de novas variedades é sempre gradual, a cafeicultura vai sendo transformada aos poucos. O IAC tem estações experimentais em vários locais do estado, onde as linhagens de café em estudo são avaliadas. Quando se verifica que uma dada linhagem vai indo bem simultaneamente nessas diferentes estações, inicia-se a distribuição de pequenas quantidades de semente a lavradores de diversas regiões do Estado.
As melhores linhagens são multiplicadas pela Seção de Café do IAC e também por agricultores interessados em estabelecer campos de multiplicação de sementes. Esses campos são orientados por técnicos da Coordenadoria de Assistência Técnica Integral (Cati), que fiscalizam também a venda direta de sementes aos lavradores. Em pouco tempo as linhagens mais promissoras chegam até eles.
Como é feita a seleção de variedades? Quais são as etapas do trabalho?
O café mundo-novo, por exemplo, começou a ser estudado quando se soube que, na região de Araraquara, uma plantação de café chamava a atenção pelo vigor e pela produtividade. Técnicos do IAC visitaram a fazenda, no município de Mundo Novo, hoje Urupês, e colheram sementes das melhores plantas, selecionadas como matrizes. Essas sementes foram plantadas nas estações experimentais do instituto onde, durante vários anos, suas produções individuais foram acompanhadas. Em geral, o período de avaliação das progênies se estende por vinte anos. No caso especifico do mundo-novo, depois de dez anos as sementes começaram a ser distribuídas, dado o imenso valor que o material apresentava.
O senhor se referiu às análises genéticas. Por que são feitas?
O objetivo primeiro de nossas análises genéticas do cafeeiro é determinar quais são os fatores genéticos responsáveis pela herança das principais características da espécie Coffea arabica. É um trabalho demorado, mas que, além do valor teórico, tem utilidade prática: quando se conhece o material do ponto de vista genético, tem-se a base para os trabalhos de melhoramento. É uma pesquisa empolgante, embora o cafeeiro não ofereça muitos fatores de fácil reconhecimento para essa análise. Talvez por ser uma espécie tetraplóide.
Como sente o fato de ter trabalhado, durante trinta anos, sem a certeza de chegar a resultados práticos? Como é fazer ciência básica?
Não se vê o tempo passar. Todos os anos fazemos numerosos cruzamentos, tentando conseguir combinações melhores. É evidente que, de todo o material analisado, apenas algumas combinações se mostram mais promissoras que as já existentes. Mas quando se consegue uma linhagem mais produtiva isso tem grande reflexo econômico, porque o café é uma planta perene.
Em 1970, quando a ferrugem chegou ao Brasil, não fomos pegos de surpresa, porque havia anos estávamos trabalhando com material portador de resistência genética ao fungo. Havíamos previsto que a ferrugem chegaria a Campinas, uma vez que temos aqui um aeroporto internacional. Desde 1953 vínhamos estudando material com resistência ao agente da ferrugem, proveniente da África e da Índia. Como não tínhamos a ferrugem no país, contávamos com a colaboração dos técnicos do Centro de Investigação das Ferrugens do Cafeeiro, em Oeiras, Portugal. Híbridos desse material resistente e dos nossos cultivares, bem como todas as principais seleções de C. arábica e de híbridos interespecíficos, foram para lá, para serem analisados. Quando a ferrugem chegou, já sabíamos qual era o material que melhor resistia a ela, que fatores genéticos poderiam ser transferidos para os nossos cultivares e o que deveria ser feito dali por diante.
Os trabalhos foram ampliados consideravelmente com a realização de numerosos experimentos e pesquisas sobre os tipos de resistência que se optem ao agente da ferrugem. O impacto da chegada da doença ao Brasil foi, assim, bastante atenuado, e os lavradores foram persuadidos de que a cafeicultura não iria desaparecer, como de fato não desapareceu. A colaboração com Portugal foi valiosa.
O senhor sempre esteve ligado ao IAC. Nunca pensou em ir para a universidade?
Tive oportunidade de ir para a universidade, mas achei preferível continuar fazendo aquilo que sei fazer, isto é, trabalhar com o cafeeiro. Gosto muito do trabalho que executo. Acho ótima a colaboração com todas as universidades, ela é extremamente benéfica. Às vezes dou aulas em alguns cursos. Prefiro dar palestras, mostrando as plantas no campo, para que os alunos conheçam as variedades e espécies de café e as dificuldades existentes no estudo de uma planta perene, que leva quatro anos de semente a semente.
Ao cabo de 52 anos de trabalho no IAC, como o senhor avaliaria o instituto?
O IAC tornou-se uma instituto de prestígio internacional. O importante é que o governo sempre forneça verba suficiente para o prosseguimento e a ampliação das pesquisas. Para festejar condignamente esse aniversário de cem anos, o governo poderia admitir mais pesquisadores e técnicos, o que permitiria ampliar os trabalhos com o cafeeiro, que julgamos ser de muito interesse para nossa economia. Embora o café esteja se deslocando para outros estados brasileiros, acreditamos que São Paulo – que tem tradição no cultivo do cafeeiro, clima e solos apropriados para esse cultivo e propriedades dotadas das instalações necessárias à produção de café de boa qualidade – deve continuar a participar da produção brasileira com pelo menos 30%, como vem fazendo nestes últimos quinze anos.