Reduto do café orgânico

Na cooperativa, a escalada do orgânico teve início em meados de 2015, a partir do nível de R$ 700/saca.

21/12/2016 – O agricultor Carlos Henrique Nogueira, mineiro de Poço Fundo, gosta de conversar com seus cafeeiros. Nada a estranhar. Trata-se de hábito cultivado por muita gente amante das plantas. Dos “interlocutores”, desde sempre imóveis e silenciosos, Nogueira costuma “ouvir” pedidos eventuais de mais nutrientes e podas, entre outros cuidados. Em troca, recebe “promessas” de boa produção.


Ele também lhes conta as novidades. Foi o que fez no mês passado, quando trouxe para a lavoura a notícia de que a saca do café orgânico alcançara o preço inédito de mil reais na Coopfam – Cooperativa dos Produtores Familiares de Poço Fundo e Região Ltda. Por essa época, o arábica convencional, de bebida dura para melhor, era cotado pouco acima dos R$ 500/saca.


Na cooperativa, a escalada do orgânico teve início em meados de 2015, a partir do nível de R$ 700/saca. Uma combinação de demanda firme com a desvalorização do real guindou os preços. A procura se deve ao interesse crescente por alimentos saudáveis, uma tendência mundial bem conhecida. Mas, para deslanchar, o orgânico provavelmente também entrou no vácuo das campanhas pró cafés sustentáveis, bancadas por entidades internacionais, admite o presidente da Coopfam, Clemilson José Pereira.


O orgânico ocupa apenas um nicho no mercado mundial. Ainda assim, a oferta está longe de suprir a demanda. Inclusive a doméstica. A produção nacional se mantém ao redor de 70 mil sacas anuais há mais ou menos uma década, segundo Cássio Franco Moreira, diretor-executivo da Acob – Associação de Cafeicultura Orgânica do Brasil. Parte é exportada, sendo uma fração já pronta para o consumo.


O segmento é carente em matéria de estatísticas. Mesmo a Coopfam só terá um quadro atualizado do que se passa em sua área de atuação em meados do ano. Pesquisa com essa finalidade está em curso.


No momento, a entidade reúne 418 cooperados ativos, cidadãos de 15 municípios, que dispõem de 4.244 hectares, sendo 2.178 hectares de café. É sabido que pouco mais de 100 dos associados cultivam o café orgânico, em cerca de 500 hectares, informa o agrônomo Daniel Penha Silva, gerente-geral da entidade. As colheitas são modestas, de até 3 mil sacas por ano, pois a renovação dos cafezais tem sido intensa e grande parte das lavouras ainda não dá frutos.



O volume de orgânico disponível na Coopfam não basta para estufar um despropósito de contêineres. Mas insufla otimismo, assim como o bom desempenho do café convencional, que tem a certificação Fair Trade. Isso porque a produção total da cooperativa, da ordem de 30 mil sacas por ano, vai aumentar, pois a renovação das lavouras também é intensa nas áreas de plantio tradicionais.


O processo envolve o adensamento, com novas cultivares resistentes às doenças, principalmente à ferrugem. Depois, no caso do orgânico, o movimento recente das cotações pode ser indício de uma virada definitiva na história curta, mas acidentada, dessa modalidade de cafeicultura na região.


No Brasil, a cafeicultura orgânica ganhou alento na última década do século passado, impulsionada pela demanda mundial por alimentos saudáveis. O entusiasmo inicial pela conversão de lavouras convencionais levou a produção brasileira a um pico, estimado em 200 mil sacas por ano pela Acob. Mas a onda logo refluiu. Faltavam experiência e informações aos agricultores para trilhar a nova rota, promissora em princípio. São necessários três anos para “desintoxicar” os ambientes de cultivo, onde muitas vezes não existe fartura de microrganismos capazes de assimilar os adubos orgânicos.


A produtividade despenca invariavelmente com a introdução dos métodos alternativos. Foi o que aconteceu anos atrás. Alguns produtores quebraram e perderam terras. Para complicar, nem sempre os preços do orgânico se descolaram o suficiente das cotações do café comum para serem compensadores, relata Giuliano Carlos Ferreira, sócio e funcionário da Coopfam. Assim, muitos cooperados engataram a ré, de volta à cafeicultura tradicional.


Agora o cenário parece bem mais favorável. As técnicas de manejo foram aperfeiçoadas, graças aos esforços de alguns pesquisadores e à tenacidade de veteranos como Luiz Carlos Paiva, diretor-secretário da Coopfam. Autodidata, incansável na busca de novos métodos de cultivo e insumos, Paiva explica que no princípio, além de faltar apoio técnico, as fontes de nutrientes eram escassas. Ele diz: “Hoje há farta disponibilidade de fertilizantes. Mesmo assim, trabalhamos no sentido de reduzir as compras de insumos para diminuir despesas e aumentar o grau de independência das propriedades”.


Paiva exemplifica com o preparo do bokashi, composto tradicional da agricultura orgânica. “A receita do bokashi prevê a adição de 70% de farelos de diversos grãos. Aqui baixamos essa proporção para 30%, graças ao uso de esterco e de cascas do café. Completamos a mistura com farinha de carne e de ossos, pós de rocha que contêm macronutrientes de solubilização lenta, terra, e vários outros ingredientes”.


A solução de microrganismos efetivos, aceleradora do processo de compostagem, também pode ser preparada na propriedade, a partir de fungos e bactérias coletadas no local. A multiplicação é feita em meio de cultura formado por leite, soro e caldo de cana. Diluída em água, a solução será adicionada ao bokashi e também pulverizada nas lavouras, como defensivo natural. Ao mesmo tempo, esse líquido agiliza a decomposição da matéria orgânica presente no solo.


A derrubada dos custos de produção é imperativa. Levantamento efetuado há tempos na esfera da Coopfam apresentou valores díspares, entre os extremos de R$ 250 e R$ 600/saca. Mas é óbvio que os custos se tornam cada vez mais desencorajadores à medida que se aproximam do limite superior.


A pesquisa abrangente que está sendo realizada pela cooperativa atualizará os dados. Enquanto isso, Paiva se antecipa e arrisca um palpite: “O custo deve estar entre R$ 350 e R$ 400, para uma produtividade de 40 sacas/ha”. Mas não são muitos os produtores que conseguem rendimentos dessa ordem de grandeza. A produtividade média das lavouras em produção está ao redor de 26 sacas/ha/ano, segundo o agrônomo Silva.


Diferenciais de produção


Segundo o diretor-secretário da Coopfam, cerca de 90% das lavouras orgânicas apresentam melhores condições fitossanitárias que as convencionais, cujo rendimento médio é de 31 sacas/ha/ano. Essa particularidade, muito estimulante, está atraindo mais interessados para os domínios do orgânico. Mas a passagem de um sistema de produção a outro tem de ser cuidadosa.


Como o salto principia pelo corte abrupto do fornecimento de adubos comuns e agrotóxicos, as plantas precisam estar sadias para suportar a mudança. A transição será tanto mais suave e eficaz quanto mais vida houver na terra. Minhocas e seres microscópicos, entre outros, irão digerir o adubo orgânico e liberar nutrientes para as plantas. “O objetivo primordial é equilibrar o solo. Fora as adubações, inclusive as foliares, usamos o mato em cobertura verde. Alguns cafeicultores também plantam feijão de porco, feijão guandu e crotalária nas entrelinhas, leguminosas que incorporam nitrogênio ao terreno. Essa cobertura é roçada de tempos em tempos”.


As lavouras podem ser adensadas, desde que não se criem condições favoráveis à propagação de doenças fúngicas. A ferrugem, a inimiga mais temida, está sempre à espreita. “Contra ela, além do ambiente equilibrado, o produtor deve manter o nível de cobre acima de 2ppm no chão, por meio da aplicação desse elemento químico na forma de sulfato ou hidróxido. Também é recomendável a pulverização das plantas com silicatos solúveis”, diz Paiva. Nos cultivos orgânicos bem conduzidos, os níveis de infestação permanecem baixos, segundo ele.


Em áreas convencionais tem sido diferente. Em 2015, os ataques da ferrugem tardia foram intensos. Os produtos químicos disponíveis não deram conta de segurar a doença. De qualquer maneira, todos os envolvidos se põem de acordo em um ponto: a melhor defesa contra fungos e outros patógenos são as variedades resistentes.


Na esfera da Coopfam, as cultivares catucaí e paraíso têm sido as preferidas para a renovação dos cafezais de catuaí e outras. Contra as pragas, os predadores naturais destacam-se enquanto principais aliados. Como as propriedades dos cooperados são pequenas e cercadas de matas, os predadores ali encontram abrigo e comida à vontade.


Em outra frente, a Cooperativa estimula a produção com qualidade, o que envolve a adoção de práticas usuais no meio cafeeiro, recomendadas para todas as fases do ciclo da cultura. Em todo caso, os cuidados devem ser redobrados quando se trata do orgânico: difícil de produzir, esse café tem de ser bom para garantir preço compatível. Se der bebida fraca, será apenas café ruim, cotado como tal. “Sob esse aspecto estamos bem, com 85% de bebida boa”, diz o agrônomo Silva.A altitude ajuda.


Os cafeeiros de Carlos Henrique Nogueira vicejam em cota superior a 1.000 metros, ideal para o café, mas desafiadora para músculos e pulmões. Mais abaixo, na sede da propriedade familiar, sua esposa, Maria Regina, atua em outra vertente da agricultura orgânica: o cultivo de rosas, sob estufa.


O experimento, idealizado por pesquisadora do Instituto Federal, unidade de Machado, se destina a oferecer uma alternativa de renda às associadas à Coopfam, integrantes do grupo Mobi – Mulheres Organizadas Buscando Independência. Na estufa rústica de 120 metros quadrados, Maria Regina plantou 300 roseiras. Ela sabe que a produção em regime estritamente orgânico não é trivial. As pragas são de tirar o sono. Lagartas, principalmente, se insinuam o tempo todo, com apetite voraz pelos botões de rosa.


A despeito das dificuldades, Maria Regina já sonha em ter várias estufas. Uma de suas colegas, Izabel Ferreira, planta flores tropicais a céu aberto. E mesmo enfrentando as tarefas domésticas, ambas se dedicam à cultura do café orgânico, com ajuda dos familiares. Izabel conta com o marido, Luiz Gonzaga, e o filho, Giuliano.



Diversificação oportuna


A diversificação na área da Coopfam não se resume ao projeto das flores: muitos associados são produtores tarimbados de hortícolas, colocados em vários pontos do comércio regional de orgânicos.


De todo modo, a produção do Mobi está alimentando a linha mais charmosa de café torrado e moído da Coopfam para o mercado interno: o “orgânico feminino”. E, naturalmente, cumpre a meta de trazer mais recursos para os produtores familiares.


Assim, ao fechar um balanço sucinto de suas atividades com Maria Regina, Carlos Henrique Nogueira, que também é conselheiro da cooperativa, se declara muito satisfeito com o café. “Temos três hectares próprios e também cultivamos uma gleba na propriedade de meu pai. Parte da lavoura é orgânica e parte está em conversão. Havíamos deixado a produção de orgânico em 2003. Retornamos alguns anos atrás e estamos obtendo boa produtividade, que já supera a dos plantios convencionais.


A renda tem sido suficiente para nos dar bom padrão de vida. Em nossa casa, temos todos os utensílios e comodidades típicas do meio urbano, como a telefonia e internet. No entanto, acima de tudo, com o orgânico descobri que a gente precisa se sentir bem onde trabalha. Gosto de andar descalço, em terreno sadio, cheio de vida e livre de contaminantes. Ao mesmo tempo, como produtor, também descobri a satisfação de ter um compromisso ético com o consumidor. Trabalho primeiro para mim, e minha família. Depois, para os outros. É bom saber que estão consumindo o mesmo produto que usamos em casa”.


A agricultura sai do fundo do poço


Lavouras de fumo sustentaram a economia de Poço Fundo por muitas décadas. Produto artesanal, o fumo de rolo poço-fundense era muito procurado em todo o Brasil. Mas os lucros do negócio se esfumavam, tragados pelos intermediários. O mesmo acontecia em relação aos parcos excedentes de arroz, milho e feijão da produção familiar, relata Clemilson Pereira, presidente da Coopfam. Inspirado por padres católicos, em 1983 um grupo de produtores concluiu que a solução dos problemas exigia ações conjuntas.


O embrião da Coopfam começou a se formar ali. Por essa época também se iniciavam os plantios de café nas pequenas propriedades. A opção pela cafeicultura orgânica ocorreria em 1994, quando o grupo de pioneiros já se reunia em associação. A essa altura, as amarras do fumo estavam prestes a ser rompidas para sempre. Mas quase dez anos se passariam até que fosse constituída a cooperativa – na prática, uma exigência legal. Durante esse tempo, a produção familiar local se desenvolveu com o apoio da igreja e entidades como o Instituto Federal do Sul de Minas. Em 1998, a Coopfam se tornou a primeira organização brasileira a receber a certificação Fair Trade.


Desde então tem prosperado. Suas exportações deram um salto de 7 mil para 11 mil sacas de café entre 2014 e 2015. No ano passado, começaram as vendas efetivas do produto torrado e moído no mercado interno, com a marca “Familiar da Terra”.


Durante 2014, a cooperativa havia se ocupado em testar sua torrefação e promover a marca. Agora oferece três tipos de café: sustentável (convencional), orgânico e o orgânico feminino, de indiscutível apelo mercadológico. Clemilson Pereira considera bastantesatisfatórios os resultados das operações no primeiro ano: “Colocamos 20 toneladas de produtos no mercado.


O café orgânico responde por 90% das vendas. O restante é de café sustentável. A dupla certificação de nosso café, orgânico e sob o selo Fair Trade, melhora muito as condições de comercialização no Brasil e no exterior. E novas portas se abrem. Estamos entregando café em Brasília para dois ministérios, hospitais e outros órgãos. Esperamos avançar nesse mercado institucional”.


“Com o orgânico, descobri que a gente precisa se sentir bem onde trabalha. Gosto de andar descalço, em terreno sadio, cheio de vida”.


O manejo é fundamental. O café orgânico tem que ser bom para ganhar preço e se descolar das cotações do produto convencional.


*Matéria originalmente publicada na Edição 74 da Revista Agro DBO, em fevereiro de 2016.


Revista Agro DBO

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