Desde os tempos áureos da Casa Inglesa e do Nacional, até à actualidade do Café Chocolate, uma viagem pela história de Portimão.
TEMAS: História e histórias do Algarve
Nos meus tempos de juventude, os cafés eram locais dinâmicos, por onde passava toda a vida cosmopolita.
Pontos de encontro privilegiados, centros de negócios, palcos de tertúlias, locais onde se praticavam os mais variados jogos lúdicos, salas de estudo, eis os cafés portimonenses da década de 60. «Tomar a bica», mais do que o acto de beber café, era um pretexto para o convívio social.
A Casa Inglesa, que ainda existe, era o estabelecimento mais famoso da cidade, um espaço enorme, mas dividido, tanto física, como psicologicamente, em zonas distintas, onde se agrupavam pessoas da mesma camada social, ou com interesses comuns.
O «aquário», ocupando cerca de um terço da área hoje destinada à venda ao balcão (a livraria/papelaria ocupava os outros dois terços), era uma área bem demarcada e reservada à «gente fina», onde pontificavam o corpo docente do liceu, o juiz de direito e os tenentes que comandavam a GNR e a GF.
E os empregados impediam a ocupação de mesas por quem não tivesse, ou aparentasse ter, o estatuto social adequado.
Já a zona reservada ao xadrez, o «poço das víboras», junto a uma porta que só se abria no Verão, acolhia gente de todas as camadas sociais e de todos os grupos etários, que tinham em comum o gosto pela modalidade e se misturavam na mais pura democracia.
Ali se podia ver, em plena época marcelista, homens do regime contra comunistas, médicos em idade provecta contra jovens quase imberbes, professores contra alunos, engenheiros contra pintores da construção civil, empresários contra assalariados, em partidas amigáveis, onde os ditos e chistes, tanto dos jogadores como da assistência, eram o prato forte.
Em frente da porta principal, assentavam arraiais os compradores de peixe, discutindo preços, quantidades e qualidades do pescado, enquanto esperavam que a sirene os avisasse de que estava a chegar um barco à lota.
A seu lado, marcavam presença os caçadores, com as suas histórias sem fim. Os últimos mudavam-se, na época do Verão, para a pequena esplanada montada junto à parede nascente, continuando aí as suas «caçadas».
E dizia-se, na brincadeira, que tinham sido os responsáveis pela retirada do coreto ali existente, pois tinham-no esburacado com os «tiros» que dali atiravam às perdizes, nas suas intermináveis narrativas.
A zona sul, conhecida como o «escarra e cospe», tinha uma porta de acesso directo ao Largo do Dique e era o local das classes menos polidas, especialistas em dominó e damas.
Havia uma zona de bilhares, muito frequentada pelos estudantes. Contudo, volta e meia, os mais reputados jogadores locais de três tabelas defrontavam-se numa das duas mesas existentes e assistia-se a algo muito interessante: a outra mesa «fechava» e toda a gente seguia atentamente e em silêncio o combate renhido entre os «mestres».
Mas a grande escola da modalidade, com três mesas de bilhar francês e duas de «snooker», era o Nacional, que, numa época posterior, virou restaurante, mas que acabou por voltar à sua função de café.
Casa ampla e sem barreiras naturais, a divisão dos clientes por classes era feita pelo seu proprietário, «mestre» João Borges, que dizia ser o café a sua traineira.
E que, na sua voz rouca, afirmava peremptoriamente: «Na minha casa, há lugar para toda a gente: ricos, pobres e remediados» e ia indicando aos utentes indecisos os lugares que deviam ocupar.
Assisti, algumas vezes, à entrada de pescadores vindos de outras paragens, vestidos com as tradicionais camisolas de quadrados e calçando botas de borracha.
Os empregados de mesa olhavam-nos de lado, os clientes habituais também, e os homens hesitavam entre ficar ou sair. Logo o «mestre» João Borges, seguindo o seu lema, se levantava e os abordava, indicando-lhes a zona onde se podiam sentar e ser servidos.
Era famoso o seu modo de mandar fechar um bilhar, quando os jogadores não se comportavam convenientemente: «Eh, pá! Desarma os remos, põe os remos na chata e salta para terra»! E era obedecido sem contestações.
Entre vários outros cafés, alguns vendidos para dar lugar a bancos, como o Império ou o Caravela, não posso deixar de referenciar o desaparecido Café Cine, entre o Cine Teatro e o Cine Parque.
Aí se juntavam os melhores jogadores de damas da cidade, em disputas renhidas e, muitas vezes, acaloradas. E uma casa que era o bastião dos estudantes na cidade: o Café Restaurante Piedade, hoje somente restaurante e sem estudantes.
Com o passar dos tempos e a mudança nos hábitos dos cidadãos, os cafés foram-se transformando em locais sensaborões, onde se toma a bica, muitas vezes ao balcão, e se sai. Só seguram a clientela, quando há futebol no canal pago da televisão.
Hoje, «tomar a bica» é isso mesmo: ir pela bebida e nada mais!
Bem sei que há locais com muita actividade, onde se joga principalmente «pool», o substituto americano do «snooker» inglês. Mas não são cafés. São casas de jogos com serviço de cafetaria.
Mas a vida das cidades e das sociedades parece ser cíclica e, aos poucos, uma parte cada vez mais lata da população começou a sentir necessidade dos velhos cafés, onde acontecessem «coisas» e pudessem conviver com os amigos.
Mas dar a «pedrada no charco» é sempre um risco financeiro e as pessoas hesitam.
Radicados em Portimão há cerca de cinco anos, o casal Maria João e Luís Bandeira, ela com experiência em gestão e ele arquitecto ligado ao ensino, sentia essa lacuna e decidiu arriscar.
No local onde, em tempos, funcionou o restaurante mais famoso de Portimão, o «7 Mares», abriram o «Café Chocolate», um espaço «cosmopolita e eclético», onde pretendem que as pessoas se sintam tão bem como se sentiriam em suas casas.
Ali, existem livros e revistas, acontecem exposições diversas, noites de fado, tertúlias, saraus de poesia, lançamento de livros, sessões de contos para crianças e adultos… e não há televisão a despejar imagens e a impedir as pessoas de comunicar.
A diferença está até nos menus, com uma carta de chás e outra de chocolates líquidos, além do serviço normal de cafetaria que se espera obter num café.
Quem lá vai, regressa e passa a palavra. E o «Café Chocolate» já faz parte da vida social portimonense, com uma clientela tão diversa a partilhar as mesas, que até me faz lembrar o «poço das víboras» da Casa Inglesa de antanho.
Parabéns, Maria João e Luís, pelo sucesso que estão a ter com o espaço que faltava na cidade!
9 de Outubro de 2007 | 09:15 josé garrancho |