10/01/10
por JANIO DE FREITAS (Folha de S. Paulo)
O governo contra o governo
O NINHO DE COBRAS a que o governo deu o nome de Programa Nacional de Direitos Humanos, decretado por Lula em meio às festas de fim de ano, é um dos atos de governo mais tresloucados do pós-ditadura, senão o mais. Não pela variedade de temas e alvos que liga aos direitos humanos, mas por reunir tamanha variedade em um só decreto, que assim funciona como um disparador de ataques simultâneos, com o próprio governo como alvo, a partir de tudo o que é força e poder entre (ou sobre?) nós.
É suficiente notar dois dos muitos propósitos que o decreto junta à pretendida comissão da verdade -causa de imediata e extremada reação dos comandos militares-, para captar o desatino masoquista do governo: modificação das regras de renovação dos canais de TV, para dissolver as atuais concentrações e impedir novas, e criação de imposto específico sobre a grande riqueza pessoal.
Excetuadas as tolices como a classificação permanente dos meios de comunicação, segundo sua adesão aos direitos humanos, grande parte do decreto é uma antecipação do futuro, menos ou mais remoto. Hoje impraticável, considerada a força dos poderes que se confrontariam, a desconcentração de meios de comunicação é uma quase certeza aqui reservada ao futuro. As legislações dos Estados Unidos e de vários países europeus preveniram-se logo aos primeiros sinais do poder identificado nas concentrações. O endeusamento do “mercado”, ou vale tudo, nos anos 90 atenuou as restrições nos EUA, mas as limitações já estão outra vez em discussão. Na América Latina, território prioritário da concentração, o assunto está esquentando em diversas capitais.
Um exemplo interessante da importância desse tema foi deixado por Roberto Marinho. As divergências políticas levaram ao erro de obscurecer as qualidades de Marinho como condutor da empresa jornalística herdada dos pais. Alcançar o domínio do jornalismo impresso no Rio foi por muito tempo, claro, um dos seus sonhos, e agiu para isso com todas armas do capitalismo. Mas quando o “Jornal do Brasil”, conduzido por qualidades inversas, deu sinais de derrocada, Roberto Marinho preocupou-se talvez mais do que os donos do “JB”: não queria ficar sozinho na “grande imprensa” carioca, porque via nesse predomínio um estímulo a ideias antimonopolísticas nos meios de comunicação. Pelo mesmo motivo, ajudou Adolpho Bloch a fazer a TV Manchete, até que a nova TV entrou na seara das novelas e tornou-se concorrente direta.
Aumentar os serviços e diminuir o custo abusivo dos planos de saúde, restrições verdadeiras à influência do dinheiro nas eleições, a manifestação pública em questões polêmicas e de interesse da população são, entre outros, casos em que o teor do decreto antecipa o que virá, por certo, menos ou mais tarde. Mas, com a associação de intenções problemáticas feita pelo governo, o decreto não ultrapassa as barreiras conhecidas. E, se ficar por aí só para poupar Lula de recuos vexaminosos, será um fantasma inócuo, porque não se desdobrará nas leis que fariam do plano uma realidade.
Inovações
Deve ser um novo estilo de política. Com todos as desgraças por aí afora, Lula não foi capaz de abalar-se sequer em um gesto mínimo de solidariedade formal às vítimas. Nos soterramentos e desabamentos iniciais em São Paulo, José Serra não se mostrou nem falou, e quando falou foi para responsabilizar os paulistanos por entupirem os bueiros com lixo. Sérgio Cabral não foi a Angra e Ilha Grande, em seguida aos desastres, porque “não é demagogo”, mas depois cedeu às críticas e foi “fazer demagogia”. A secretária fluminense de Ação Social, Benedita da Silva, levou seis dias para mostrar algum interesse pelo que aconteceu em Angra.
Nem mesmo o ministro Gilmar Mendes, presidente do Supremo Tribunal Federal, emitiu considerações sobre as tragédias. Deve ser uma novidade constatável mas, por ora, inexplicável.
Fonte: Folha de S. Paulo