EXAME
Um dos mais espantosos fenômenos de marketing dos últimos anos vem sendo protagonizado pelos produtos orgânicos, cultivados sem uso de agrotóxicos, insumos químicos e fertilizantes. Com o duplo apelo do modo de vida saudável e do respeito à natureza, esses produtos, especialmente os alimentos, deixaram a antiga aura de “naturebas”, consumidos quase exclusivamente por hippies e simpatizantes, para conquistar as prateleiras de supermercados, as linhas de produção das grandes empresas e uma legião cada vez maior de consumidores. O sucesso do mercado orgânico e seu potencial de crescimento futuro fizeram com que ele ganhasse a escolta de corporações como Unilever, Danone, Coca-Cola e Cargill, que passaram a ver na marca uma nova fonte de lucros bem nutridos. O leque de oferta dos produtos também se abriu — além dos tradicionais legumes, verduras e frutas, já se vende vinho, café, cacau, carne, leite e até cosméticos orgânicos. Seu conjunto de propaladas virtudes fez com que os analistas de marketing os incluíssem entre as tendências mais fortes de evolução da área de consumo. A enorme visibilidade que inevitavelmente acompanha o sucesso, porém, tem produzido os primeiros arranhões numa imagem até então imaculada. Neste momento, em plena efervescência do fenômeno — traduzido numa movimentação mundial de 30 bilhões de dólares, que se expande à taxa de 25% ao ano –, surgem os primeiros questionamentos sobre os pilares de sustentação do apelo orgânico.
A PRIMEIRA DUVIDA ATINGE a imagem de produtos ambientalmente amigáveis. Com produtividade menor que a convencional — afinal, sem agrotóxicos, o controle de pragas e ervas daninhas e a adubação têm de ser feitos praticamente de planta em planta –, as lavouras orgânicas teriam de ocupar uma área cerca de três vezes maior para produzir a mesma quantidade de alimento. É o que estima Norman Borlaug, prêmio Nobel da Paz de 1970 e pai da “revolução verde”, processo que levou ao aumento da produção agrícola no mundo com o uso intensivo de tecnologia. Há quem calcule que a diferença de rendimento entre o cultivo orgânico e o tradicional seja menor, mas o fato é que mais terra usada na agricultura se traduz em menos áreas virgens. Não existem dados definitivos sobre a produtividade de todas as lavouras orgânicas, mas supõe-se que, se a humanidade inteira resolvesse se alimentar apenas com esse tipo de produto, a área plantada teria de crescer a ponto de invadir manchas ainda intocadas de florestas — por isso mesmo, especialistas em agricultura consideram a hipótese um devaneio. Nos últimos 20 anos, enquanto a produção anual de alimentos cresceu 1,1% ao ano — utilizando métodos convencionais e biotecnologia, como ocorre com os execrados transgênicos –, o consumo global subiu 1,5%, o que vem reduzindo os estoques existentes. “Não há como retroceder no processo de aumento de produção agrícola no mundo, principalmente agora que a geração de bioenergia vai disputar áreas cultiváveis com os alimentos”, diz Leonardo Sologuren, diretor da consultoria agrícola Céleres. “Teremos de usar mais, e não menos, tecnologia.”
Os dois lados Os orgânicos crescem com base na percepção positiva por parte dos consumidores e na promessa de bons lucros para as empresas. Agora, a evidência de alguns problemas pode atrapalhar seu sucesso Os apelos Natural e lucrativo
O principal apelo dos orgânicos é o fato de ser plantados sem o uso de produtos químicos. Consumidores se dispõem a pagar até 50% mais por seus benefícios
Demanda aquecida
O mercado mundial de orgânicos movimenta 30 bilhões de dólares e cresce ao ritmo de 25% ao ano As críticas Produtividade baixa
Os métodos artesanais de cultivo comprometem a produtividade — uma plantação de soja orgânica rende 35% menos que a baseada em agrotóxicos
Ocupação extensiva
Acultura de orgânicos requer área três vezes maior que a convencional.Uma
grande ampliação da produção poderia ameaçar florestas, como a Amazônica
Risco de doenças
Sem controle rigoroso da produção, da armazenagem e do processamento, as plantas orgânicas podem ser contaminadas por fungos e bactérias
O segundo questionamento diz respeito à reputação que acompanha os orgânicos desde seu início, na década de 30: a de que eles, por definição, fazem bem à saúde. “Os orgânicos são bons, mas não representam a eliminação dos riscos que todo alimento tem, seja ele tradicional ou não”, afirma a agrônoma Luciana Di Ciero, pesquisadora da Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo. Desde setembro, um produto orgânico está sob investigação na FDA, a agência americana de controle de alimentos e remédios, depois que centenas de pessoas foram intoxicadas pela bactéria E. coli, presente em lotes de espinafre livre de agroquímicos. Ainda não há provas de que a contaminação tenha sido causada pelo descuido na produção, mas uma morte e dezenas de internações serviram de alerta para as autoridades sobre a necessidade de informar melhor os consumidores quanto aos riscos que envolvem tais alimentos.
Um artigo publicado na edição de setembro de 2006 da revista americana Nature Biotechnology também apontou a maior presença de toxinas — fungos e bactérias — nas plantas orgânicas, o que aumenta o risco de infecções e outras doenças. A razão é óbvia: sem uso de fungicidas e inseticidas não há como evitar sua proliferação se a produção não seguir critérios rígidos de adubação e rotatividade de culturas, por exemplo. “Quando o produto é orgânico, o consumidor deve aumentar ainda mais os cuidados, lavando-o de cinco a seis vezes com água sanitária, porque se a planta tiver algum tipo de furo ela sempre terá fungos”, diz o médico José Alves Lara Neto, vice-presidente da Associação Brasileira de Nutrologia. “Um orgânico mal lavado pode contaminar outros alimentos.” Em 2003, a Agência de Segurança Alimentar do Reino Unido fez um teste com seis tipos de milho orgânico e com 20 convencionais, e constatou que todos os produzidos sem agrotóxico apresentavam elevados níveis de contaminação por fumosina, toxina que pode causar má-formação de fetos. Eles foram retirados do mercado.
Os defensores dos alimentos orgânicos consideram que as críticas surgem em razão do crescimento do setor. “O orgânico é um grande negócio e começa a incomodar”, diz Alexandre Harkaly, diretor do Instituto Biodinâmico, única entidade brasileira de certificação desses produtos reconhecida no exterior. “Resume o conceito do alimento saudável associado ao da sustentabilidade do meio ambiente e a um sistema produtivo que respeita o pequeno produtor”, afirma Ming Liu, gerente da Organics Brasil, entidade que divulga os orgânicos brasileiros no mundo. Manter os consumidores convencidos desses atributos é fundamental para evitar a erosão do mito — e preservar um fenomenal sucesso de mercado.