06/09/2011
O jeitinho brasileiro para comer sem agrotóxico
Há cerca de um ano, a economista Luciana Amadeo flagrou a filha, Anete, de 7 anos, olhando fixamente para cenouras embaladas num saco de supermercado, na cozinha de casa. Ela se aproximou e perguntou o que havia. A menina lhe devolveu uma pergunta:
— Mãe, é dentro dessa embalagem que eles põem a fumaça junto com a semente, para fazer crescer rápido? É aí que faz “boom” e a cenoura nasce?
A menina tinha ouvido falar sobre agrotóxicos na escola. A mãe, assustada com a pergunta, resolveu contar de onde vinha o alimento, que ele era plantado, colhido e que nem
sempre tinha agrotóxicos. Mas, e aquele, tinha? Isso ela não sabia responder. Foi aí que decidiu pesquisar na internet e se preocupou ela mesma, pela primeira vez, em saber a origem do alimento que chegava à mesa. Agora, mãe e filha estão numa lista de espera para uma excursão a uma produção rural na Região Serrana (ver box). Importada da Europa, a tendência tem levado cada vez mais cariocas a fazer visitas com o mesmo objetivo: saber como são cultivados os alimentos que consomem.
No Brasil, a prática tem sido impulsionada por consumidores que buscam alternativas aos alimentos cultivados com agrotóxicos (herbicidas, fungicidas e inseticidas), além de adubos químicos. Tarefa difícil, já que cerca de 95% da agricultura brasileira são convencionais, segundo a Sociedade Nacional da Agricul tura (SNA). No topo da lista das vendas de agrotóxicos no mundo, o Brasil é, inclusive, uma das apostas das empresas produtoras desses insumos para manter o mercado em alta nos próximos anos.
A Associação Nacional de Defesa Vegetal (Andef) — representante das produtoras de agrotóxicos — apontou, em entrevistas recentes, os Estados Unidos como líder no mercado do setor, negando que o Brasil assuma essa posição. A estimativa da instituição era de que os norte-americanos haviam liderado os gastos com o insumo em 2010. Mas, de acordo com dados do site da Associação internacional Crop Life, da qual a própria Andef faz parte, os Estados Unidos registraram US$ 6,6 bilhões em 2010, o que faz do Brasil, já atualmente, o maior mercado do insumo
no mundo. No ano passado, o país gastou US$ 7,3 bilhões no setor. Ainda assim, a Andef rechaça o título, já que, por hectare, a agricultura americana gasta mais agrotóxicos do que a brasileira, segundo o gerente de Regulamentação da instituição, Luis Carlos Ribeiro:
— Se pensarmos por hectare, o Brasil é o quarto ou quinto no consumo dos defensivos — disse, afirmando em seguida: — Mas somos, em volume, o maior mercado mundial. A agricultura do país está em franca expansão e é uma das apostas para alimentar a população mundial, que terá sete bilhões de habitantes até o fim do ano. Por isso, o Brasil é aposta também das produtoras de defensivos, claro. Cada empresa gasta cerca de US$ 250 a 300 milhões para colocar um novo defensivo no mercado.
A necessidade de alimentar a população mundial é um argumento repetido exaustivamente pelo setor. Mas, para especialistas da área de saúde e para a própria Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), usados indiscriminadamente osagrotóxicos significam intoxicação e aumento de incidência de doenças, entre elas o cân-
cer. Para eles, é preciso investir em formas de agricultura alternativas. A discussão fica expressa até na linguagem. Enquanto o nome oficial pela constituição brasileira é “agrotóxicos”, a indústria os chama de “defensivos agrícolas” ou “remédios para planta”.
A sugestão é que cada consumidor saiba de onde vêm os alimentos, para fazer sua própria escolha. Essa é a
principal dica da Anvisa, já que, usados acima das concentrações permitidas por lei, os agrotóxicos podem fazer mal à
saúde. As duas principais formas de fugir do problema são: comprar produtos orgânicos ou tentar descobrir a ori-
gem do alimento, mesmo no supermercado.
No caso dos orgânicos, eles passam por uma certificação federal do Ministério da Agricultura, SisOrg, obtido por meio de auditoria ou por um sistema participativo de garantia.
Os produtores precisam provar que não usam agrotóxicos nem adubos químicos. Esses alimentos podem ser comprados em feiras orgânicas de rua ou em supermercados. Já no caso dos produtos convencionais, o jeito é tentar, ao menos, saber se o supermercado conhece a origem do produto. Pode-se perguntar quais são os fornecedores e como a rede pode comprovar que os alimentos estão sendo cultivados sem ultrapassar as concentrações de agrotóxicos permitidas por lei.
Segundo o diretor-geral de Toxicologia da Anvisa, Luiz Cláudio Meirelles, ingeridos dentro das concentrações permitidas, não há risco à saúde. O problema é que o Brasil não tem estrutura suficiente de fiscalização, o que compromete a segurança alimentar, no caso dos não or gânicos. De acordo com a Anvisa, o país tem um décimo do número de fiscais em relação aos Estados Unidos.
— Nós orientamos os órgãos locais a fazerem a fiscalização in loco. Mas alguns passos do produtor rural não têm sido
observados. Há lacunas, porque falta gente, falta estrutura. Caminhamos com dificuldade. E, na hora de fiscalizar nos su- permercados, às vezes eles nem sabem a origem de alguns produtos.
A lentidão também ocorre após a fiscalização, na hora da punição. Desde 2008, a Anvisa apontou o nome de 14 substâncias presentes em agrotóxicos potencialmente nocivas à saúde para serem retiradas do mercado. Seis pro-
cessos já foram concluídos, mas, desses, quatro ainda estão em definição na Justiça, devido a liminares conseguidas pelas produtoras dos insumos. Esse é o tema do documentário “O veneno está na mesa”, lançado mês passado pe-
lo cineasta brasileiro Sílvio Tendler. A produção, disponível na internet, lembra a batalha em relação ao metamidofós, componente ativo de agrotóxicos usados em cultivos de batata e feijão. Em janeiro deste ano, a Anvisa baniu o uso do metamidofós no país, alegando que ele pode causar danos à saúde. Mas, por meio de liminares, o processo ainda está na Justiça. Ocomponente já é proibido na União Europeia, Estados Unidos e China.
A Anvisa fiscaliza se as substâncias químicas presentes nos agrotóxicos estão dentro dos níveis permitidos, se estão dentro da validade, entre outras coisas. Mês passado, a instituição autuou a Basf, uma das cinco maiores produtoras de agrotóxicos no mundo, por falta de informação no rótulo do produto “Opera”, cujo lote, fora da validade, teria sido reprocessado para venda. A empresa reconheceu o problema, e disse que prestará esclarecimentos técnicos à Anvisa.
A Basf tem no Brasil o segundo maior mercado consumidor, segundo Leandro Martins, diretor de Pesquisa e Desenvolvimento da Unidade de Proteção de Cultivos para a América Latina da empresa. O país faz parte da estratégia de crescimento da empresa:
— Por causa do clima no Brasil, a praga avança. O jeito é usar os defensivos. Estamos desenvolvendo também produtos biológicos, à base de enxofre, cobre e com bactérias. Eles são considerados orgânicos. Mas tem que equilibrar biológicos, com menor eficácia, e agrotóxicos.
Outras empresas procuradas pela reportagem foram a Syngenta e Monsanto, que estão entre as cinco maiores produtoras de agrotóxicos e sementes do país. Por meio de nota, a Syngenta afirmou que o Brasil é um de seus principais mercados, pelo potencial que o país tem para se consolidar como um dos grandes fornecedores mundiais de alimentos. Para a empresa, uma agricultura sustentável, que atenda a demanda mundial, só pode ser feita com tecnologias agrícolas que aumentem a produtividade. Além dos defensivos agrícolas, a Syngenta vende sementes geneticamente modificadas e biotecnologia. A Monsanto enviou uma nota dando conta de seu faturamento e de suas metas para 2011. Mas não respondeu às perguntas sobre a produção de agrotóxicos.
Há onze anos, a Anvisa possui o Programa de Análise de Resíduos de Agrotóxicos em Alimentos (Para), no qual analisa os vestígios de agrotóxicos em verduras, frutas e legumes que chegam aos consumidores. No último relatório consolidado disponível, de 2009, muitas culturas tiveram resultados insatisfatórios. Entre as principais, a uva (com 56,4% de amostras com concentração acima do permitido), o pepino (54,8%), o morango (50,8%), e o abacaxi (44,1%).
As amostras são recolhidas pela An-visa em pontos de venda. É aí que começa o diálogo com a Associação Brasileira de Supermercados (Abras). A agência reguladora espera que a iniciativa privada invista mais no rastreamento da origem dos produtos. Ainda há muitas lacunas. Segundo o presidente da Abras, Sussumo Honda, a instituição está orientando as redes de supermercado a aderirem ao programa Qualidade Desde a Origem, que começou no Pão de Açúcar, e agora está aberto para adesões de outras redes:
— O consumidor poderá visitar o site (qualidadedesdeaorigem.com.br) e verificar quem são os produtores do alimento. Queremos que outros grandes supermercados virem membros do programa. Ali a ideia é dizer quem é o produtor, que agrotóxicos ele usa e etc. Mesmo para grandes redes, há uma dificuldade grande de rastrear a origem. São pequenos produtores espalhados no país.
Por enquanto, porém, só os produtores do Pão de Açúcar estão cadastrados no site, e não há informação sobre os agrotóxicos usados por eles.
Fora de supermercados, importante é evitar comprar alimentos nas ruas, em barracas ou caminhões. Muitas vezes, são vendidos produtos rejeitados por mercados. O melhor é buscar feiras ou sacolões regularizados pela prefeitura.
Em nota técnica oficial, a Anvisa dá algumas orientações aos consumidores para se protegerem dos riscos dos agro-tóxicos. Além de conhecer a origem do produto, devem-se priorizar alimentos da estação — cuja necessidade
de agrotóxicos é menor —, além de lavá-los antes do consumo.
As orientações da nu tricionista Valéria Paschoal, presidente do Congresso Internacional de Nutrição Clínica Funcional que acontecerá este mês no Rio de Janeiro, seguem a mesma linha. Segundo Valéria, o uso de agrotóxicos em grande escala está relacionado a sintomas como irritabilidade e nervo- sismos frequentes, insônia, perda de me- mória, problemas motores e dificuldade de concentração. De acordo com a nutricionista, devido a sua característica
química, os agrotóxicos têm afinidade com a gordura que temos no corpo, e, por isso, eles podem ficar armazenados
durante anos no nosso tecido adiposo. Valéria, que também é médica pedia- tra formada pela Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), disse que estudos apontam relações entre o aumento de doenças relacionadas à disfunção no sistema nervoso à exposição frequente a agrotóxicos, além de metais pesados, entre outros.
Mas, segundo ela, há formas de a população se proteger, reduzindo a exposição aos agrotóxicos, mesmo se não houver dinheiro suficiente ou acesso fácil aos orgânicos: — Consumir com moderação alimentos que, segundo a Anvisa, contêm mais agrotóxicos: como o pimentão, uva, pepino, morango, couve, abacaxi, mamão. E atenção: alface, tomate e beterraba também. Além disso, esses alimentos de vem ser consumidos em sua época de sa-
fra, pois a quantidade de agrotóxicos é menor — disse ela, ressaltando, por ou tro lado, a importância desses rodutos:
— por mais que contenham agrotóxicos, são fontes de vitaminas, minerais e fitoquímicos, que auxiliam na
desintoxicação no corpo e mantêm o equilíbrio do organismo. Uma coisa que pouca gente sabe é que o molho de tomate não orgânico, por exemplo, é mais benéfico do que a salada de tomate que consumimos no dia a dia. Valéria explicou que o cozimento diminui os resíduos de agrotóxicos, além de tornar o licopeno — substância antioxidante e anticancerígena, mais disponível.
O grande sonho de especialistas na área é que a agricultura mundial seja toda convertida em orgânica. Mas, por enquanto, a realidade é bem diferente. Para a maior parte dos agricultores brasileiros, a retirada de adubos químicos e agrotóxicos de toda a lavoura ainda está num lugar distante, quase utópico.
É o caso do agricultor Arnaldo Bottrel, pequeno produtor de café e presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Varginha (MG). Se tivesse algum incentivo, ele afirma, teria um cultivo orgânico. Como não há, não tem como arcar com os custos da transição no momento.
— Até o gosto do orgânico é mesmo diferente. Mas não dá para mudar tudo de uma hora para outra. O jeito é usar os defensivos em pequena quantidade. Os pequenos produtores querem fazer tudo com segurança, porque somos os primeiros afetados. Quem adoece primeiro é quem trabalha na plantação com defensivos que fazem mal. E é a minha família que mora no meio da fazenda.
Arnaldo garante, no entanto, que o cenário já melhorou muito:
— Os produtos eram muito mais tóxicos, com dosagens mais altas. Está melhorando. Só acho que falta mesmo orientação para o pequeno produtor. Muita gente faz errado porque não conhece. Falta também fiscalização. Nós precisamos de ajuda de órgãos locais e precisamos da Anvisa.
Já o vice-presidente da Sociedade Nacional da Agricultura, Joel Naegele, é mais taxativo. Para ele, a agricultura brasileira tem sido alvo de uma campanha negativa exagerada, espécie de boicote, até de outras nações, frente ao crescimento do país no setor:
— Não é agrotóxico. Fica ofensivo, parece que vai intoxicar as pessoas. São defensivos, como os remédios que tomamos. É hora de o agrone gócio, que representa quase 40% do PIB (Produto In-terno Bruto) brasileiro,
sair para a luta. Ficamos calados até agora, mas somos a esperança de se alimentar a população mun-
dial, não somos vilões. E estamos orientando muito os produtores a cultivar com segurança para os funcionários do campo e os consumidores.
Para ele, a relação entre o uso exagerado de agrotóxicos e o aumento de in toxicação e de doenças no Brasil não é
real, já que não pode ser comprovada: — Me mostra alguém que tenha tido câncer por causa de agrotóxico. Você co-
nhece? Se mostrar alguém, eu aceito.
Segundo a Anvisa, é difícil provar o nexo causal, porque muitas doenças são desenvolvidas após anos de consumo dos alimentos. Mas muitos estudos já apontam esta relação, o que serve de alerta. Além disso, o Brasil possui subnotificações de casos de intoxicação por agrotóxicos, o que é mais comum entre os trabalhadores rurais.
É mesmo impossível pensar, no entanto, numa agricultura totalmente livre de agrotóxicos atualmente. É o que afirma o pesquisador da Embrapa Marcelo Morandi. Segundo ele, há alguns modelos de agricultura que estão ganhando força, como a orgânica e a agroecológica, mas há o problema da larga escala:
— Isso não dispensa saber se estamos usando muito. Nós estudamos como usar os defensivos de forma racional. O Brasil tem tido dificuldade de exportar certos produtos, porque usa agrotóxicos proibidos em outros países. Já os produtos biológicos substituem alguns agrotóxicos.
Mas tem que se ensinar como usar. Temos muito pouco investimento na área e muita dificuldade legislativa para registro desses produtos. Segundo o econo mista Victor Pelaez, pesquisador da Universidade Federal do Paraná e specialista no mercado de agrotóxicos, a questão central agora é a escolha política para o futuro: — Na Revolução Verde dos anos 1960, o mundo optou pelos agrotóxicos. É uma trajetória tecnológica. O que se coloca hoje é que não há outra possibilidade. Tudo é uma escolha. É uma decisão política. E, aí, é importante lembrar que o mercado é controlado por apenas 15 empresas. O Brasil é responsável por 84% do consumo de agrotóxicos na América Latina. É
hora de discutir, e pensar onde é que o país vai investir, se quer ter alternativas no futuro.