Quando a diferenciação é feita na prateleira
O ambiente é bastante aconchegante. Em meio a confortáveis poltronas, pessoas conversam alegremente, ao som de música agradável. No canto, uma prateleira concentra um grande número de pacotes, provenientes dos mais distintos cantos do mundo, cada qual ofertado como uma especial maravilha. Os preços chamam a atenção de qualquer consumidor, bem como a enorme variedade de produtos oferecidos.
Uma rápida visita a nova loja da Starbucks em São Paulo é capaz de trazer uma série de sensações aos agentes envolvidos com a cadeia do café. A chegada dessa gigante ao país que é o maior produtor mundial de café é apenas mais uma evidência dos novos rumos do setor. O consumo de café sofistica-se cada vez mais, e esse movimento se globaliza a passos largos.
De certa maneira, a abertura de uma loja da Starbucks no Brasil é bem mais impactante que os planos anunciados pela rede de invadir o mercado asiático nas próximas décadas. Aqui, o mais importante não são os valores envolvidos, ou as perspectivas de expansão, mas sim, as contradições que esse ato simbólico revela. Em um país no qual milhares de famílias lidam diariamente com o cultivo do café, é interessante observarmos o quanto a produção se distancia do consumo, abrindo espaço para que os intermediários dessa cadeia se apropriem de fatias cada vez maiores do total gerado na cafeicultura.
Dados mostram que a participação dos produtores no total de ganhos gerados na cadeia do café, que em meados da década de 80 chegou a atingir 12 bilhões de dólares, caiu até atingir modestos cinco bilhões de dólares nos primeiros anos do atual século. E isso que estamos falando de uma commodity que costuma figurar entre as três mais comercializadas do mundo! Apenas para ilustrar de forma mais apropriada este quadro, o primeiro lugar nesse ranking é ocupado pelo petróleo.
De fato, em discurso proferido na conferência da Unctad realizada em São Paulo há três anos, o embaixador Rubens Ricupero apresentou diversos dados confirmadores desse quadro. Nos últimos 20 anos, a participação dos produtores na receita gerada pelo café caiu de 36,7% para cerca de 7,86%. Isso em um cenário global marcado pela explosão do consumo de cafés especiais no Primeiro Mundo, principalmente a partir de meados dos anos 90.
A distância entre o produtor e o consumidor é notável. Quando observamos o caso do vinho, por exemplo, é interessante salientarmos a importância que é dada à localização das vinícolas, à qualidade da uva cultivada, à tradição dos produtores etc. Nesse setor, os incentivos para o investimento em qualidade são bem mais claros, afinal, as recompensas por tal estratégia são também mais previsíveis.
Já no caso do café, essa realidade segue pouco explorada. Na verdade, seguia até bem pouco tempo atrás, já que hoje é possível comprar café de qualquer região do mundo em qualquer loja da Starbucks, por exemplo. Infelizmente, nesse caso os produtores têm pouco a comemorar, já que poderiam estar abocanhando uma fatia muito maior desse enorme bolo que é o comércio mundial de café.
Por isso, não é de se estranhar notícias como as veiculadas recentemente, e que mostravam a luta de produtores da Etiópia pela valorização de seu produto no mercado internacional. De acordo com os cafeicultores etíopes, a Starbucks vinha obtendo lucros desproporcionais com a venda do café do país, sendo então necessária a constituição de uma parceria que concedesse aos produtores uma fatia maior dos ganhos originados da venda desse café na rede. Essa disputa, que nos últimos tempos vem sendo acompanhada de perto pela Oxfam, aparentemente é de mais difícil solução que se imaginava.
Isso posto, algumas considerações são fundamentais. O que mais chama a atenção é o rumo que as estratégias na comercialização do café vêm tomando. O principal trunfo de empresas como a Starbucks é justamente criar valor em atributos que em muitos casos não possuem qualquer relação com o café. Paga-se pela bebida, mas também pela música, o conforto da poltrona, o atendimento, o copo com design especial etc.
Indo além, é possível observar no interior dessas empresas um plano de educação do consumidor, sendo notável a existência de placas indicativas na entrada da loja apontando a procedência do café utilizado naquele dia, bem como dicas de consumo relacionadas aos atributos do café cultivado em cada região do mundo. Tal estratégia é aproveitada principalmente pelas próprias redes, responsáveis pelos planos de marketing e também pela distribuição do produto, comprado em muitos casos sem a devida valorização.
Iniciativas como a CAFE, comandada pela Starbucks, ou programas semelhantes idealizados por multinacionais como a Nestlé, não garantem maiores incentivos aos produtores. Na verdade, as empresas vêm se aproveitando da ferrenha competição no mercado cafeeiro atual para tornar a adoção de determinados padrões de qualidade uma constante, sem que isso traga uma contrapartida adequada aos cafeicultores envolvidos. Sistemas preocupados com essa realidade, como o Fairtrade, são ainda bastante pequenos em importância, e possuem diversas limitações uma vez que a demanda por produtos com atributos sociais embutidos é ainda tímida.
Aos poucos, mesmo as empresas tradicionais vêm buscando amenizar esse quadro. Em alguns casos, a imagem das multinacionais pode sair arranhada, conforme se observou após as manifestações organizadas nos Estados Unidos em 1999, quando a Organização Mundial do Comércio se reuniu em Seattle. Ali, as demandas de manifestantes por um tratamento mais justo aos cafeicultores do Terceiro Mundo fez com que a Starbucks passasse a buscar a associação com o selo Fairtrade, por meio da compra de café certificado. No entanto, estamos ainda falando de uma tendência limitada, e que, mais do que nada, se destina a limpar a imagem das empresas, uma vez que não lida com questões sistêmicas, mais relevantes para o estado global da cafeicultura.
A desregulamentação do mercado, ocorrida no início dos anos 90, contribuiu para um crescente processo de concentração entre os agentes envolvidos na torrefação e distribuição do café. Atualmente, são cada vez mais poderosos os atores nesses elos da cadeia. Por exemplo, não mais de cinco torrefadoras são hoje responsáveis por quase 70% do mercado mundial do café, ao passo que as 3 principais comercializadoras do produto controlam praticamente 50% do mercado.
A falta de competitividade entre os intermediários, algo que em alguns países, como os da América Central, é algo sentido já no processo de venda do produtor ao atravessador, faz com que em muitos casos os cafeicultores não possuam opções de venda para seu produto. Soma-se a isso outras questões, como a falta de crédito, a pequena escala, entre outros. No final das contas, milhões de produtores em todo o mundo estão vendendo sua produção sem a devida valorização, como uma mera commodity. Na outra ponta da cadeia, grandes redes se utilizam desse mesmo café, e por meio de investimentos em marketing, são capazes de obter valores exorbitantes pela venda dos mesmos.
A valorização das denominações de origem, bem como outros aspectos relacionados à produção cafeeira, emergem como principais alternativas para contornarmos esse quadro. Disso depende o trabalho coordenado de cafeicultores em cada região produtora, em torno de um interesse que certamente é comum a todos. Enquanto a cafeicultura não se unir pela valorização de atributos como estes, sempre haverá um empresário com uma estratégia efetiva para garantir a captura dos lucros. Assim, a bonança seguirá concentrada cada vez mais longe dos cafezais.