1º CADERNO
04/08/2008
Duas idéias vicejaram com o fracasso da chamada Rodada Doha, promovida para reduzir barreiras e subsídios indevidos ao comércio: 1) o Brasil deveria ter apostado com força nos acordos comerciais bilaterais; e 2) o país deverá apostar com força nos acordos bilaterais de comércio. A primeira idéia não leva em conta as múltiplas tentativas de negociação bilateral nos últimos anos, pelo menos uma delas abortada devido ao temor do setor privado brasileiro com a concorrência estrangeira. A segunda traz complicações, para além do protecionismo argentino – que alguns parecem apontar como único obstáculo aos esforços negociadores do Brasil.
Por pertencer ao Mercosul, o Brasil tem uma tarifa de importação comum e não pode mudá-la sem aval dos sócios. A crise econômica e política argentina, temperada por forte protecionismo, dificulta acordos para facilitar importações industriais. Mas, mesmo que Brasil rompesse a união aduaneira do Mercosul, são cinzentos os cenários para que tenha êxito nas negociações, no futuro próximo. Negociações passadas mostram isso.
É um equívoco comparar a situação do Brasil com Chile e México, que, nos últimos tempos, firmaram uma coleção de acordos comerciais. “Brasil e Chile têm histórias e situações distintas”, esclarece um especialista, o experiente embaixador do Chile no Brasil, Alvaro Díaz, um dos negociadores do acordo de livre comércio entre Chile e EUA. O Chile, antes de começar sua série de negociações comerciais, já havia concentrado a base produtiva em poucos bens, vinculados a seus recursos naturais. Suas tarifas de importação já eram baixas, e suas exportações não concorrem com os produtores nos EUA ou na Ásia; eram, ao contrário, complementares.
Curiosamente, analistas ligados à indústria no Brasil citam os acordos chilenos, como se ignorassem que, diferentemente do Brasil, com diversificada base industrial, o Chile fez uma bem-sucedida especialização em cobre, produtos florestais, frutas, pescado e manufaturas ligadas a esses setores. A proteção média dos bens industrializados no país era de 6%, metade da brasileira, ao negociarem com os EUA. Poucos produtos, como açúcar, mantém tarifas maiores.
O Chile não tem, como o Brasil, exportações que concorrem diretamente com os americanos, como etanol, aço, suco de laranja. Esses produtos enfrentam barreiras sérias, que não sumiriam com um acordo, como avisaram autoridades americanas na negociação da finada Área de Livre Comércio das Américas, a Alca. O México também tem suas peculiaridades, a começar pela gigantesca fronteira com os EUA, que tornam seu exemplo irreproduzível por outro país.
Análises pós-fiasco de Doha são simplistas
Outro equívoco é afirmar que o país deixou de lado as negociações bilaterais de comércio para concentrar-se exclusivamente na negociação da OMC conhecida como Rodada Doha. O Brasil fechou acordos com os países andinos, que reduziram tarifas e prevêem livre comércio daqui a cinco anos. O Itamaraty, aliás, não firmou acordo com os ricos países árabes do Conselho de Cooperação do Golfo, em 2007, porque a indústria petroquímica, apavorada com a concorrência, brecou a negociação. Tipicamente, enquanto os críticos acusam o governo de ser tímido, setores contrários às negociações ficam nas sombras. Se o acordo se aproxima, correm, então, para abortar o resultado.
Logo após o fracasso das negociações da Alca, o Uruguai, na presidência do Mercosul, enviou carta formal, nunca respondida, propondo uma negociação 4+1 com os Estados Unidos. Em um café da manhã, pouco tempo depois, o então negociador americano Robert Zoellick afirmou – como repetiria a jornalistas, e seria imitado pela sucessora, Susan Schwab – que essa negociação não interessava aos EUA.
Se interessasse, os acordos, para os EUA, seguem um modelo quase único, com regras obrigatórias, por exemplo para leis de propriedade intelectual. Mudanças que inviabilizariam a indústria brasileira de genéricos e o programa brasileiro anti-aids, por exemplo, e criariam problemas para os plantadores de sementes transgênicas.
Os EUA têm um musculoso ator, nem sempre presente nas negociações comerciais dos outros países: o Congresso, hoje de maioria democrata, tradicionalmente mais sensível aos lobbies agrícola e industrial e às organizações da sociedade civil. Esses lobbies barram até hoje, por exemplo, a entrada em vigor do acordo firmado com a Colômbia, aliado estratégico dos EUA. Imaginar que o Congresso americano aprovaria sem resistência – ou sem exigir concessões profundas – um acordo com um competidor e potência agrícola como Brasil é o que chamam por lá de “wishful thinking”.
No caso da União Européia, o acordo que não houve foi dificultado por resistências no Mercosul, mas também pelos europeus. Alegando não ter mais de um bolso para fazer ofertas, negociadores da Europa diziam não poder oferecer grande abertura de seu cobiçado mercado agrícola enquanto não houvesse maior definição… na Rodada Doha da OMC. Não foi opção brasileira esperar essa definição para engatar conversas mais sérias com os europeus. Diplomatas europeus em Brasília prevêem, ainda, grande dificuldade para avançar num acordo, com o fortalecimento de posições protecionistas, como a da França, após o colapso da rodada.
Experientes operadores de comércio exterior murmuram que o Brasil deveria rebaixar o Mercosul, de união aduaneira para área de livre comércio, o que permitirá ao país vender e comprar sem pagar tarifas aos vizinhos e ter tarifas diferentes para terceiros países. Essa proposta não leva em conta que, em muitos casos, Argentina, Uruguai e Paraguai mantêm tarifas altas para produtos industrializados a pedido do Brasil, para garantir uma preferência aos produtos brasileiros. Acabar com a união aduaneira seria permitir aos vizinhos baixar barreiras para concorrentes do Brasil, como os asiáticos, nesses mercados cada vez mais importantes para a indústria brasileira.
A discussão é mais rica do que insinuam análises simplistas feitas no pós-fiasco da OMC. Volto ao assunto na semana que vem.
Sergio Leo é repórter especial em Brasília e escreve às segundas-feiras
sergio.leo@valor.com.br