Em minha casa sofro admoestações por causa das gotas de café que deixo cair na toalha sobre a mesa. Isso acontece quando vou servir minha xícara. Tenho uma xícara pequena, de louça marrom, que uso com exclusividade.
Eu tinha caneca de ágata, peça antiga, já um tanto descascada. Era marrom também, esmaltada. Está desaparecida. Muita gente critica minha preferência pela xícara roceira.
Na velhice me torno submisso às ordens dos familiares, a fim de que minha conduta dentro de casa seja aprovada e aceita. Dizem que sou espaçoso.
O adjetivo “espaçoso”, no caso, quer dizer que ocupo lugar sem necessidade, prejudicando meu semelhante. De acordo com a física quântica, posso estar ao mesmo tempo em dois lugares opostos, mesmo sem ter o dom da ubiquidade.
Para quem não sabe ler, a cedilha não faz falta na letra C, cuja obra não suja o vaso sanitário. A prisão de ventre da letra evita que o excremento saia embaixo.
Escreve-se “cujo” com C e “sujo” com S e não cê-cedilha. Divago devagar e sempre. Há vagas no vácuo. Aprendo a servir café sem deixar cair uma gota sequer.
Vou ensinar a técnica a quem possa ter interesse em progredir nessa arte milenar. Pega-se a xícara com a mão direita, caso o discípulo não seja canhoto.
Leva-se a xícara para a pia, porque – se não der certo – a gota de café cairá na pia e não na toalha sobre a mesa. Não haverá mácula, nódoa, mancha, vestígio ou rastro. Pega-se a garrafa térmica. Retira- se a tampa de fora que é de enroscar.
A outra tapa não deve ser retirada e, sim, deverá apenas ser afrouxada, a fim de dar passagem ao café. O ato de tombar a garrafa deve ser com jeito de quem não pretende nada, mas quer tudo. Há um pouco de velhacaria nisso.
Inclina-se a garrafa com rapidez. Se, no entanto, cair café fora da xícara, não haverá nenhum motivo de queixas alheias. As gotas de café que caírem na pia podem ser neutralizadas com água. Pega-se outra xícara e nela se põe água da torneira.
Em seguida, lava-se cada gota de café. Lavase o local em que estiver a gota. Está claro? Não é difícil. Qualquer pessoas acima de sete anos poderá aprender.
Os menores dessa idade também podem exercitar no início da aprendizagem. Vou excluir gente sem pecado, por enquanto. Minhas aulas teóricas são para velhos em geral. Nós, pessoas idosas, pecamos demais.
Uso a palavra “pecado” no sentido latino. O verbo “peccare” quer dizer tropeçar, perder o pé, pisar em falso. Tenho cometido inúmeros pecados por causa de minha deficiência visual. Caio nas ruas, tropeço dentro de casa, piso em falso.
O peso da idade embodoca meu espinhaço. Aprendo, entretanto, a pôr café na xícara, mesmo que caia alguma gota fora do recipiente. Usa-se a pia porque não haverá deslize. Se houver, será removido sem dificuldade, porque a gota cairá na pia e não na toalha sobre a mesa.
Estou pensando em redigir um manual prático, destacando os itens mais complexos sobre gota de café em toalha na mesa de jantar, na mesa de cozinha ou em todas as mesas do mundo.
Há tantos livros sobre boas maneiras que até me sinto em desânimo diante da gota de café na toalha. Espero que minhas lições de hoje encham o vácuo.
Ou como disse o Lula em relação à TV de chapa branca: “isso enche o saco”. Os líricos diriam: isso vem preencher uma lacuna.
A delícia expressional no preenchimento de lacunas equivale à beleza de um “beijo no coração”. Faço aspas imaginárias com dois dedos de ambas as mãos, indicador e médio.