+(L)ivros
O cafeicultor e o modernista
Cartas entre Mário de Andrade e Pio Lourenço Corrêa revelam as opiniões e o processo criativo do autor de “Macunaíma”
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA
Mais uma vez Ana Luisa Escorel, da Ouro Sobre Azul, brinda-nos com uma joia editorial: a correspondência entre Mário de Andrade e Pio Lourenço Corrêa. Traz introdução de Gilda de Mello e Souza [1919-2005] -a quem devemos a concepção do projeto, para o qual há tempos vinha colhendo material- e nota biográfica assinada por Antonio Candido.
Ambos privaram da intimidade tanto de Mário quanto de Pio, e por isso o livro não poderia ter melhores títulos intelectuais. Como se não bastasse, a parte iconográfica é extraordinária, o que é de praxe nas realizações dessa editora duplicada de designer.
Deleitamo-nos com o luxo do papel cuchê fosco, da capa cartonada e das minuciosas notas de rodapé. A apresentação material, que concorre para tornar o volume um item bibliográfico incontornável, muito deve à munificência do Sesc.
Conhecida é a casa da chácara da Sapucaia, hoje no perímetro urbano de Araraquara (SP), residência de Pio Corrêa, dono da fazenda São Francisco, onde plantava o café que era seu ganha-pão. Foi na chácara que Mário escreveu “Macunaíma”.
A cidade tem em alta conta o tesouro que é esse lugar de memória, de que é ciosa.
Quem a recebeu em herança foi Renato Rocha, irmão de Gilda e afilhado de Pio Corrêa, que não tinha filhos; além disso, laços de parentesco uniam a fratria de Renato e Gilda à segunda mulher de Pio Corrêa e ao próprio Mário.
Adquirida do herdeiro por um casal de professores da faculdade de filosofia local (Unesp), Waldemar e Heleieth Saffioti, seria depois doada à própria faculdade, com o requisito de que fosse transformada numa casa de cultura.
A instituição está se dedicando à restauração do prédio e aproveitando o ensejo para fazer várias benfeitorias, como um teatro de arena e uma nova ala, destinada a receber futuramente bibliotecas particulares, para a qual já começou uma campanha de doações.
Figura singular
A curiosidade do leitor é espicaçada sobretudo pelo esquivo perfil do interlocutor.
Em contraste com outros missivistas mais bafejados pelos holofotes, Pio Corrêa é uma figura singular, um cafeicultor que é também um amante de livros perdido no interior.
É o renomado autor de uma plaquete de filologia tupi sobre a origem da palavra “Araraquara”, que decifrou com requintes de sábio e que ganharia várias edições.
As circunstâncias dessa peculiar amizade têm antecedentes, pois Pio já fora amigo do pai de Mário.
Separados pelo intervalo de uma geração, Pio é mais da idade do pai do que do filho. Discutiam muito, disputavam fidelidades: Mário era modernista, Pio era tradicionalista. Por isso detestou “Macunaíma”, que para ele era vazado em péssimo português, além de lhe soar sem pé nem cabeça.
Mas ambos conseguiram chegar a uma trégua devido a “Amar, Verbo Intransitivo”, quando Pio se divertiu com o caso das funções paradidáticas da governanta alemã -mas só, paradoxalmente, depois que leu a tradução para o inglês.
Temporadas no campo
Mário costumava passar temporadas na chácara e, se não podia deslocar-se até lá, dava notícia de sua nostalgia dos recantos, dos odores, dos sabores. Foi numa delas que escreveu “Macunaíma”.
Graças à opulência iconográfica, vemos Pio sempre de cenho enfarruscado, o que orna com seu temperamento autoritário, amiúde temperado pelo senso de humor que vem à tona em sua pena.
As imagens são na maioria retratos de família, mas há igualmente paisagens urbanas e rurais, grupos e casas: todas as sucessivas três da chácara Sapucaia estão documentadas.
Conforme a época, o que se passava por seu lado na vida de Mário também aparece, em fotos de sua viagem à Amazônia, por exemplo.
Sobre o que versavam pessoas tão diversas? Alguns temas eram preferenciais, e em primeiro lugar a filologia. Mário comprava livros especializados em São Paulo a pedido de Pio, que não dispunha deles em sua cidade.
Repassavam questões vernáculas, de etimologia, de ortografia, em que quase sempre dissentiam. Mas também assuntos de folclore, que interessavam a Mário, de bichos e de plantas, das pescarias e das caçadas de macuco de Pio.
Nesse capítulo há uma revelação notável, a respeito de como originais de Rugendas vieram parar no Brasil. E justamente porque o museu alemão em que se encontravam decidiu vendê-los por absoluta ausência de consulentes.
Mário comprou dois, que lá estão em seu acervo no Instituto de Estudos Brasileiros da USP, e reservou outro para Pio, que delicadamente alegou não dispor de dinheiro no momento, por estar economizando para uma viagem à Europa.
Final da vida
Tampouco é de somenos o vislumbre que estas missivas nos dão do período mais obscuro e mais infeliz da vida de Mário, que é sua fase final, antecedendo de pouco a morte prematura. A troca epistolar entre ambos é discreta e pouco dada a efusões, mas nessa fase Mário fala um pouco mais de si.
Fora obrigado a deixar o Departamento de Cultura de SP, o que o fez desiludir-se não só da política, mas da possibilidade de qualquer intelectual ocupar um cargo público, abrindo mão de sua privacidade e da produção pessoal que ela lhe faculta, tão forte no seu caso.
Arranjando emprego no Rio, ficaria arranchado longe de seus livros, arquivos, discos e piano, que eram toda a sua vida, mas também longe do aconchego que lhe trazia um abnegado pequeno círculo doméstico.
Seu equilíbrio emocional viu-se ameaçado, e isso afetaria sua saúde. Declarou que sempre fora feliz e mesmo um militante da felicidade, mas por esse tempo viu tudo negro e até pensou em suicídio.
Logo faria no Rio aquela famosa conferência desencantada, onde se entregou a feroz autocrítica, que se estendeu aos companheiros de lutas modernistas. Embora afinal conseguisse voltar ao reduto do lar em São Paulo, morreria inesperadamente.
Por tudo isso, é inestimável a revelação de mais este conjunto completo e coerente de um epistolário que cobre perto de 30 anos, de 1917 a 1945, e vai até os últimos dias de Mário.
WALNICE NOGUEIRA GALVÃO é professora de teoria literária na USP. Recebeu o Prêmio Mário de Andrade da Biblioteca Nacional por “Mínima Mímica” (Companhia das Letras).
PIO E MÁRIO
Autores: Mário de Andrade e Pio Lourenço Corrêa
Editoras: Sesc SP/Ouro sobre Azul (tel. 0/xx/ 21/ 2286-4874)
Quanto: R$ 96 (424 págs.)