O actual momento europeu é tema saturado em
múltiplos ensaios, onde se tecem considerações sobre o futuro do continente e se
questiona a identidade – alegadamente ameaçada – de uma Europa a braços com o
alargamento. Poucos, no entanto, reúnem o brilhantismo teórico e literário deste
pequeno volume agora editado pela Gradiva. As questões são recorrentes Como
definir a ideia de Europa? Que significado tem falar de identidade europeia
quando o caminho aponta no sentido da globalização de valores e mercados? Ou,
como interroga Rob Reiner, “a Europa continua a ser uma boa ideia?”. “Qual é
realmente a importância e relevância política do ideal europeu de civilização?”
Por fim – e este é o desafio -, como dar respostas, recorrendo o menos possível
à abstracção? Começando, por exemplo, pelos cafés.
É isso que George
Steiner faz em A Ideia de Europa, livro que recupera o texto – e o título
– de uma palestra que o escritor proferiu no Nexus Institut de Amesterdão,
durante a presidência holandesa da União Europeia, em 2004. “Enquanto existirem
cafetarias, a ‘ideia de Europa’ terá conteúdo”, escreve um dos homens que mais
têm reflectido sobre a cultura europeia e que aponta o café como o primeiro
substantivo a associar à ideia de Europa.
O café com todo o seu peso
literário é início de um ensaio que faz a exaltação da cultura e da memória
enquanto legado. “A Europa é feita de cafetarias, de cafés. Estes vão da
cafetaria de Pessoa, em Lisboa, aos cafés de Odessa frequentados pelos
gangsters de Isaac Babel. Vão dos cafés de Copenhaga, onde Kierkegaard
passava nos seus passeios concentrados, aos balcões de Palermo (…). Desenhe-se o
mapa das cafetarias e obter-se-á um dos marcadores essenciais da ‘Ideia de
Europa'”.
É o primeiro dos cinco axiomas apresentados por Steiner para
definir a “ideia de Europa”. “Na Milão de Stendhal, na Veneza de Casanova, na
Paris de Baudelaire, o café albergava o que existia de oposição política, de
liberalismo clandestino”. O segundo é a relação entre os europeus e a geografia
que habitam, uma relação que encontra nas figuras do pedinte ou do peregrino a
sua materialização, metáforas da caminhada que confere uma cadência propícia à
teorização. “A Europa foi e é percorrida a pé”, escreve Steiner, aludindo às
longas marchas de que é feita a História da Europa e acrescentando “As belezas
da Europa são inextricavelmente inseparáveis da pátina do tempo humanizado”. Um
“tempo” que remete para a lembrança, terceiro axioma europeu. O passado tornado
sempre presente e gravado nas pedras que dão nomes de pessoas a ruas e
praças.
Mas é na síntese de duas culturas, a de Atenas e a de Jerusalém,
que Steiner encontra a singularidade da cultura europeia. “Muito frequentemente,
o humanismo europeu, de Erasmo a Hegel, procura diversas formas de compromisso
entre ideais áticos e hebraicos.” E conclui “A ‘ideia de Europa’ é (…) um
‘conto de duas cidades’.”
Há, por fim, a “consciência escatológica” – o
“pânico do ano mil” -, que, no entender de Steiner, é exclusiva do modo de ser
europeu, “como se a Europa (..) tivesse intuído que um dia ruiria sob o peso
paradoxal dos seus feitos e da riqueza e complexidade sem par da sua
História”.
Doseando um desencanto actual com algum optimismo futuro,
George Steiner – judeu nascido em Paris em 1938- revela, por vezes, algum
ressentimento face ao cristianismo. Um azedume pontual, antes de indicar um
caminho para a Europa o do “humanismo secular”. Como escreve Durão Barroso no
prefácio da edição portuguesa (em Espanha o livro foi prefaciado por Mário
Vargas Llosa), “a Europa tem na liberdade e na diferença (…) condição e garantia
da sua diversidade”.
MATERIA ORIGINAL :http://dn.sapo.pt/2005/10/25/artes/cafes_e_memoria_para_o_futuro_europa.html