Literatura em lata

Manda a sensatez que se leia bem as instruções de utilização dos produtos antes de os usar. Foi o que fizemos.

11 de novembro de 2005 | Sem comentários Cafeteria Consumo
Por: Diario Economico por Ricardo Salvo

Manda a
sensatez que se leia bem as instruções de utilização dos produtos antes de os
usar. Foi o que fizemos.

Há uma história que se tornou bem conhecida, quanto mais não seja
pelo método do “ouvi dizer que” e que, no mínimo, ilustra bem como funcionam os
hábitos do mundo moderno do consumo. Diz-se que nos Estados Unidos, numa bem
conhecida cadeia de ‘fast-food’, uma cliente terá entornado por cima de si o
café que tinha acabado de pedir. Queimou-se, naturalmente, e processou a cadeia
porque o recipiente não fazia qualquer alusão à temperatura do líquido. Mesmo
tratando-se de café, mesmo sabendo-se que em lado algum se serve café frio por
defeito, o que já por si suscitaria a devida reclamação, a senhora ganhou nos
tribunais e conquistou o direito a uma indemnização. Desde então, as embalagens
de café dessa conhecida cadeia fazem a advertência de que é preciso ter cuidado
“porque pode conter líquido muito quente”.
Esta pode ser apenas uma das
razões que estão na origem dos inúmeros “dizeres” que hoje vemos em rótulos
entre os países onde o lema “o cliente tem sempre razão” é, por norma, levado ao
mais puro dos extremos. Ainda assim, Portugal é um país comedido nessas
questões, até porque parece ser apanágio do português reclamar muito, mas apenas
em casa. Porém, o Dinheiro&Ócio não quis deixar de fazer uma experiência que
resultou, no mínimo, curiosa: entrar na pele de um consumidor comum, com os
conhecimentos médios, e olhar de perto para o maravilhoso mundo dos rótulos.
Quanto mais não seja para homenagear quem os escreve, porque, apesar da sua
função legal e obrigatória, são muitas vezes belos pedaços de prosa, com muita
arte, e que acabam por ser escritos “para o boneco” ou injustiçados como
substitutos de melhor leitura de casa de banho. A questão que, no fundo,
gostaríamos de colocar é se os nossos hábitos de consumo mudariam se
começássemos a ler com a máxima atenção os rótulos de todos os produtos antes de
os consumirmos, como, aliás, se aconselha que façamos.
Para mostrarmos bem o
que estamos aqui a querer dizer, podemos, por exemplo, transcrever a lista de
ingredientes de uma vulgar embalagem de rebuçados. Do lado da frente do
saquinho, a gravura de um aliciante copo de leite, uma janela para os atractivos
rebuçados lá dentro e a referência ao facto de serem de leite e isentos de
açúcar. Da parte de trás, lê-se assim: “edulcorantes, xarope de maltitol,
isomalt, manteiga anidra, água, leite em pó magro, [e agora começa a vir o
melhor] gelatina comestível [ainda bem que é comestível], mono e digliceridos de
ácidos gordos [perdão?], aromatizantes, sal [este sabemos o que é], aspartame e
acesulfame K”. Não nos interpretem mal, ninguém está contra estes teoricamente
necessários ingredientes, apenas achámos piada ao rol de palavras que até o
nosso corrector ortográfico do computador sublinhou olimpicamente a vermelho.
Sabemos que são necessários para que o produto assegure toda a sua qualidade,
acreditamos que foram utilizados no seu fabrico com a máxima boa fé. Repito,
apenas achámos piada, só isso.
Nestas coisas, por exemplo, as manteigas são
já um velho clássico. Leia-se o rótulo de uma manteiga normal, daquela que todos
nós sempre comemos, há décadas e décadas, sem que daí viesse mal ao mundo:
“Ingredientes: nata pasteurizada e sal (2%)”. Porém, como esta manteiga faz mal
ao colesterol e engorda (o que é natural), vejam o esforço dos rapazes numa
versão da manteiga para dieta, com o famoso epíteto “light”: “Ingredientes:
água, manteiga [ainda bem que tem manteiga], amido modificado, espessante,
alginato de sódio, mono e diglicéridos de ácidos gordos, polirricinoleato de
poliglicerol, sorbato de potássio, aromas naturais e corante [porque, já agora,
convém que a manteiga tenha cor de manteiga].
Mas atente-se ainda nas
maravilhas que passamos a saber o que são e que desconhecíamos até ao momento:
ésteres lácticos, carragenatos (óptimo para chamar a alguém no trânsito),
palmitato de ascorbilo e alfatocoferol. Já de pequenino que a minha mãezinha me
dizia para comer disto tudo, porque faz-me bem, para ficar mais rijo.
Fora do
segmento alimentar, porém, os rótulos já não são tão obscuros para quem seguiu
apenas uma escolaridade que nos prepara para o mundo moderno. Mas não deixam de
ser divertidos de ler. Encontrámos, por exemplo, um gel de banho que nos dá “um
empurrão e um começo perfeito para uma noite inesquecível”. Escusado será dizer
que comprei logo um destes. Lembro-me da história do café na cadeia de
‘fast-food’ e questiono-me sobre o que fazer se isto não passar de uma
infrutuosa expectativa. Um outro gel de banho garante-nos no rótulo que foi
desenvolvido com atletas. Como assim? O que fizeram com o gel e os atletas? E os
atletas gostaram? Mais, daqui a uns tempos ainda nos questionaremos porque carga
de água é que um desodorizante para os pés não pode ser fumado. Aquele rótulo
destruiu assim todas as nossas intenções de prazer com aquele produto que, para
grande desilusão, afinal só dá para refrescar os pés.
Produtos de limpeza.
Outro grande portento do mundo dos rótulos. Ficámos a saber de uns panos
descartáveis para limpar o pó que “podem ser utilizados sozinhos ou com uma
mopa”. Mas atenção, porque estes panos “utilizam um efeito electrostático devido
ao tecido especial de microfibras interligadas”. Claro que achámos também
particular piada a um produto de limpeza que tem uma atraente cor rosa que mais
o faz assemelhar-se a um delicioso sumo devido à utilização de um corante (com
corantes, o chão fica outra alegria) e que naturalmente recomenda no rótulo que
se mantenha afastado do alcance das crianças. Pareceu-nos também muito útil a
informação referente a um ambientador daqueles de pendurar e feito de madeira de
que não pode ser ingerido (até porque a madeira custa a mastigar) e de que não é
um brinquedo (arrefecendo a imaginação de quem veria naquele objecto mil e uma
formas divertidas de passar o resto da tarde).
Enfim, um maravilhoso mundo
com muito para explorar e que faz as delícias de quem tem paciência para ler com
atenção a “literatura” anexa de qualquer produto de consumo. E quando dizemos
que faz as delícias, é isso mesmo que queremos dizer, que podemos brincar com os
pormenores da vida moderna nos tempos livres ou como mero método de combate ao
tédio. Sem querer ofender os fabricantes e os comerciantes. Simplesmente, não
conseguimos resistir ao divertimento de ler meia-dúzia de rótulos. Ficámos com
vontade de ler muitos mais e sugerimos ao leitor que faça o mesmo. É divertido.
Não diremos gratuitamente que é informativo, mas é divertido.

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