Passei férias no Marrocos onde, em Volubilis, percorri a via marginada pelas ruínas da antiga cidade romana, do portão de entrada ao arco do triunfo. Pensei na caminhada de Cecília Meireles pela Via Ápia e no poder de seus versos: “Ruínas não vejo, apenas: / – mas os mortos que aqui foram guardados, / com suas coragens e seus medos da vida e da morte. / Viver não vivo, apenas: / – mas de amor envolvo esta brisa e esta poeira, / eu também futura poeira noutra brisa”.
Aperto o passo. Não quero que as ruínas romanas me levem da reflexão sobre a brevidade da vida à discussão da finitude dos impérios passados e presentes. Pois hoje não é dia de traçar falsos paralelos entre Roma e os EUA, mas apenas de cotejar o desastre econômico atual com aquele que vai completar 80 anos.
As comparações são inevitáveis. A crise atual, como a de 1929, começou nos EUA e de lá viajou para o resto do mundo. Ambas nasceram no setor financeiro e se espalharam para a economia real. Em ambas, várias instituições entraram em bancarrota, exigiram operações de salvamento e o crédito desapareceu. Por fim, pelo menos nos EUA, a recessão que começou em 2008 já é a mais grave desde a década de 30.
Se as semelhanças são evidentes, as diferenças também são importantes. Na década de 30, como Milton Friedman e Ana Schwartz ensinaram, em vez de fornecer liquidez ao sistema bancário, o Fed retirou recursos dos bancos e precipitou a falência de muitos deles. Durante os últimos seis meses, ao contrário, o Fed tem provido o sistema financeiro de enormes quantidades de recursos. Outros bancos centrais têm feito o mesmo.
Na década de 30, a economia brasileira recuperou-se com mais rapidez do que a americana. A chave para entender o que então se passou está na política de sustentação do preço do café que, ao manter o nível de renda dos cafeicultores, permitiu a expansão do setor manufatureiro. Durante a década de 20, o governo sustentara artificialmente o preço do café ao comprar parte da produção com empréstimos externos. A crise de 29 secou a fonte de financiamento externo e forçou tanto o governo central quanto o do Estado de São Paulo a interromper aquele programa. Entre 1928 e 1930, o preço do café despencou quase 40% e acarretou a queda da receita das exportações e do PIB. Em 1931, o Conselho Nacional do café começou a comprar e destruir estoques.
De 1931 a 32, as compras do governo representaram 30% das exportações, com 65% do financiamento advindo de impostos sobre as mesmas e 35% de créditos do Banco do Brasil e do Tesouro Nacional. Entre 1933 e dezembro de 34, as participações das fontes de financiamento mudaram, com o crédito doméstico assumindo papel mais importante.
Estima-se que o PIB brasileiro tenha caído 2% em 1930 e outros 3% em 1931. Mas em 1932 ele já se encontrava em recuperação e em 1933 já superava o de 1929. A recessão, apesar de grave, durara apenas dois anos. Os reflexos sobre o orçamento do governo, entretanto, foram severos. À suspensão do serviço da dívida externa entre 1931 e 1932 seguiu-se um plano de reajuste em 1934 e Getúlio Vargas declarou a moratória em 1937.
À primeira vista, as diferenças entre o Brasil de ontem e de hoje chamam mais atenção do que as semelhanças. O café perdeu importância na nossa pauta de exportações. O parque industrial diversificou-se. E hoje a maior parte da dívida externa está nas mãos do setor privado.
Mas os paralelos também saltam aos olhos. As exportações de commodities ainda representam 50% das exportações brasileiras e seus preços caíram pela metade nos últimos seis meses. O crédito desapareceu. O governo parece disposto a programas fiscais para evitar contração do PIB. E a operação de salvamento de empresas ou bancos pode transferir a dívida externa de volta às mãos do setor público.
Estamos acostumados a olhar estímulos fiscais com desconfiança. Não bastasse a moratória de 1937, as políticas adotadas em resposta à crise do petróleo de 1979 e ao desaparecimento do crédito externo em 1982 representaram uma fuga dos custos de ajustamento e determinaram a moratória de 1987 e, em seguida, o Plano Collor.
Se o momento exige medidas anticíclicas, é melhor que elas tomem a forma de cortes da Selic. Essa resposta é preferível ao aumento de gastos do governo. E é melhor do que a política pouco transparente de estímulo ao crédito através dos bancos oficiais, pois o passado mostra que políticas parafiscais costumam criar esqueletos difíceis de enterrar. A queda da Selic pode abrir espaço orçamentário para cortes horizontais de impostos sobre a folha de salário. A vantagem dessa medida é que cortes de alíquotas são reversíveis, ao contrário da contratação de gastos.
Por último, outra marca da década de 30 foi o crescente protecionismo comercial, iniciado pelos americanos com a lei tarifária Smoot-Hawley. Também hoje, o mau exemplo vem dos EUA. Na semana passada, ao discurso anti-China do secretário do Tesouro somaram-se emendas ao pacote de estímulo econômico. Elas dão preferência a empresas americanas na contratação de obras, determinam que apenas o aço produzido no país seja utilizado e asseguram privilégio semelhante a aparelhos para hospitais nos programas financiados pelo plano.
Na década de 30, o protecionismo agravou a depressão, que desembocou em ideologias extremistas, aumento do nacionalismo e guerra. Mas os governos se esquecem da história na hora do desespero. Enquanto 44 países divulgavam um documento a favor do comércio em Davos, a União Europeia anunciava em Bruxelas um aumento de 85% nas tarifas de importação de produtos chineses para o setor automotivo.
No Brasil, em 28/1, o governo anunciou a exigência de licença prévia de importação para 17 setores e depois revogou a decisão. Quem anuncia medidas que o presidente reprova não deveria perder o cargo? Desgoverno e atraso do PAC nos deixarão a ver ruínas e poeira?
Eliana Cardoso é professora titular da EESP-FGV e escreve, quinzenalmente, às quintas-feiras