SÃO PAULO – A legislação ambiental, imprescindível para a preservação da Mata Atlântica, ameaça o desenvolvimento das comunidades tradicionais – indígenas, descendentes de quilombolas e caiçaras – que convivem com a mata há centenas de anos.
As diversas leis ambientais criadas nos últimos 40 anos, que possibilitaram a instituição de parques, reservas e estações ecológicas, praticamente congelaram a devastação da Mata Atlântica. No entanto, as normas bloquearam também a continuidade das atividades tradicionais executadas pelas populações que, reconhecidamente, foram as maiores responsáveis pelo que ainda restou do bioma.
Caiçaras, descendentes de quilombolas e indígenas mantêm aspectos culturais seculares e praticam, sobretudo, agricultura voltada à subsistência. São reconhecidos por conviver com a mata sem destruí-la. No entanto, parte das terras utilizada há centenas de anos por essa população foi sobreposta por unidades de preservação ambiental. Parte considerável dessa população foi impedida de expandir suas roças, de caçar e de extrair da mata produtos que ajudavam na sobrevivência.
O modo como foram aplicadas as normas ambientais nos últimos anos acabou por causar a expulsão dessas comunidades tradicionais de suas terras e abriu espaço para que outros grupos, menos responsáveis ambientalmente, ingressassem na área da mata, de acordo com Nilto Tatto, pesquisador do Instituto Socioambiental (ISA), organização da sociedade civil de interesse público.
– Era necessária uma postura propositiva de dialogar com as comunidades para que elas pudessem continuar vivendo e mantendo a relação que sempre tiveram com o meio ambiente. E não da forma como o Estado fez nos últimos anos, principalmente a partir da criação dos parques, que originou um processo de expulsão dessas comunidades -afirma.
– Outros agentes econômicos podem ir lá e tomar o lugar, e o estrago é muito maior na medida em que essas comunidades não estão lá para ocupar da forma como tradicionalmente a área foi ocupada – ressalta.
Hoje, na Mata Atlântica, vivem cerca de 70 povos indígenas em centenas de aldeias e mais de 370 comunidades quilombolas. No mesmo espaço, foram criadas aproximadamente 1.400 unidades de preservação ambiental federais e estaduais, como parques, reservas, estações ecológicas e reservas particulares do patrimônio natural.
– Você perde essa riqueza que é a diversidade social que há na Mata Atlântica dessas comunidades tradicionais, como também o papel que essas comunidades tiveram de manter essa floresta em pé – destaca Tatto.
A roça de coivara é um bom exemplo das atividades dos povos tradicionais que preservaram a mata. Consiste num sistema de rodízio na utilização da terra, sem a necessidade de expansão da área cultivada.
Agenor de Matos, 97 anos, foi pescador e agricultor na região da Mata Atlântica, no município de São Sebastião, litoral paulista. Viveu na mata antes e depois da criação das áreas de preservação. Depois da criação do Parque da Serra do Mar, ele teve de abandonar a agricultura e ficar só com a pesca. Hoje está aposentado.
– A gente não pode mais derrubar mata. Mas, antigamente, a gente derrubava, fazia roça de arroz, milho, mandioca. A gente não comprava nada. Só o sal que vinha de fora. A gente colhia, vendia e ainda tinha pra comer – relata.
José Vieira, descendente de quilombolas, vive há 50 anos no núcleo Picinguaba do Parque da Serra do Mar, no município de Ubatuba. Quando chegou, pescava e fazia roça. Nenhum gênero alimentício vinha de fora. Sobreviviam com suas próprias atividades.
– Antes, a comida era daqui mesmo, o feijão, o café apanhava aqui. Era o peixe que eu pegava, era o caldo de cana, eram as galinhas que eu criava. Depois que virou Parque Estadual da Serra do Mar, a comunidade perdeu chão, porque a vida era fazer uma roça e a própria comunidade manejava. Depois que entrou o parque, não pudemos fazer nada. Apertou um pouco para as pessoas, a agricultura familiar ficou meio desativada – ressalta.
Mas é no núcleo Picinguaba, do Parque Estadual da Serra do Mar, que uma nova experiência com as comunidades tradicionais procura estabelecer um equilíbrio entre cumprir a lei ambiental e preservar as atividades das populações que já viviam no local muito antes da criação das áreas de conservação.
– Essas comunidades viveram até 2004 sob situação de forte pressão, que gerou uma exclusão social muito grave, porque a legislação ambiental que incidia sobre a gestão da unidade previa que essas comunidades fossem indenizadas, removidas e reassentadas em outro local – explica a gestora do parque Eliane Simões.
A partir de então, as comunidades, em parceria com a administração do parque, encontraram uma solução jurídica para o impasse. Cruzando várias legislações, tanto do ponto de vista social quanto ambiental, criaram o que é chamado de “plano de uso tradicional”.
– Ele é um pacto social, é um acordo estabelecido com todos os órgãos gestores para que a comunidade possa permanecer na área. Ela tem direitos adquiridos de permanência e desenvolvimento das suas atividades, seu hábitos culturais cotidianos – explica a gestora.
Duas comunidades quilombolas da região já conseguiram concretizar o pacto. Na prática, o plano consiste num cadastramento de todos os ocupantes, uma caracterização de como vivem, seus hábitos e suas dependências. Também define o desenvolvimento de projetos para implantação de uma série de atividades para desenvolvimento sustentável e as áreas e locais apropriados para que essas práticas possam se desenvolver.
As comunidades que fizeram o pacto já têm demarcados territórios dentro de suas áreas onde podem construir novas edificações, plantar e abrir áreas de plantio, assim como extrair recursos da floresta. Mas, com a preocupação agora de adaptar suas técnicas à sustentabilidade.
– Quando chegamos aqui vimos a problemática dos agricultores, a pressão dos institutos florestais, os meios de conservação, proibindo que eles praticassem algo que fazem há muitos anos. Então, a gente começou a extrair a polpa da [palmeira] jussara [símbolo da Mata Atlântica] de um jeito sustentável, não é arrancar todos os cachos. A gente escolhe um para deixar, porque os passarinhos usam, a palmeira é vital para a vida da floresta – explica Marcelo Bueno, coordenador do Instituto de Permacultura e Ecovilas da Mata Atlântica (Ipema), que auxilia os agricultores tradicionais a explorar a mata de modo sustentável, sem deixar de realizar as atividades tradicionais.
Um grupo de índios Guarani, que habita uma reserva indígena no município de São Sebastião, em meio a Mata Atlântica, permanece realizando suas atividades tradicionais, mas incorporaram novos meios de cultivo que preservam a mata nativa.
– Passamos a usar mudas de pupunha, mudas de açaí, que também dão em palmeiras, para preservar a palmeira jussara. E a gente está tendo ótimos resultados – diz o cacique Mauro Samuel dos Santos.