Cresce a safra de produto especial, impulsionada pelos preços recordes pagos aos agricultores e estimulada pela alta de consumo no país e no exterior |
Esqueça do cafezinho insosso, figurante das refeições e arma imbatível no combate ao sono. Ele está se sofisticando, e dessa vez não é só para estrangeiro ver (e beber), mas também para consumo do público interno. Cremoso, encorpado, com baixa acidez, nenhum amargor e uma leve doçura, o café especial, ou café gourmet, está brotando nas mesas das melhores cafeterias e restaurantes e provocando uma verdadeira revolução e despertando do marasmo a cafeicultura brasileira. Não é novidade que o brasileiro é apaixonado por café. E talvez a melhor tradução disso é que a bebida está presente em 93% dos lares; o papel higiênico, acredite se quiser, está em apenas 82% das residências. Os dados são da consultoria InterScience e da Consumer Check. Prazer Beber, ou melhor, degustar café começou a se tornar um conceito mais palpável há cerca de cinco anos. Cappuccinos, frapuccinos, espressos (assim com “s” mesmo, como manda a tradição italiana), shakes e drinks gelados voltaram a fazer o consumidor pensar no prazer em tomar a bebida. O espresso é a base da nova onda de consumo. Com leite, vira macchiato. Com sorvete, affogato. “Produzir no ponto certo, sem gosto de fumaça, na cor correta, para motivar o consumidor, é um trabalho que começa na lavoura”, diz Gabriel Afonso Mei, que planta na região da Mogiana, em Cristais Paulistas e Ribeirão Corrente. Hoje 40% da produção desse cafeicultor, que colhe 25 mil sacas por ano, é de cafés especiais. Ele pretende ampliar esse percentual para 60% nos próximos dois anos. “Minha safra é social e ambientalmente certificada. Quem compra de mim sabe que produzo dentro das melhores práticas e está disposto a pagar mais por isso.” O ágio é o grande incentivo do produtor. Aos preços atuais, ele é de, no mínimo, 15%. Já o máximo parece não ter limites. Que o diga o cafeicultor Francisco Isidro Pereira, de Carmo de Minas, MG, sul do estado. Em janeiro, seu café foi a leilão pela internet e vendido por 6.581 dólares a saca, ou 14,9 mil reais. O preço, 50 vezes maior que o do convencional, superou de longe a expectativa do agricultor. “Tomei um susto, não achei que fosse passar de cinco mil reais.” O lote foi disputado lance a lance pelas canadenses Michels Espresso, Instaurator e Caffe Artigiano, que se uniram para comprar todo o lote de 12 sacas, e a japonesa Maruyama Coffee. Os canadenses levaram após embate que durou três horas e que foi interrompido nos momentos finais porque o sistema de pregão eletrônico não estava preparado para receber lances superiores a 40 dólares a libra-peso (5.290 dólares a saca). O computador foi reprogramado, permitindo aos compradores arrematar o lote por 49,7 dólares a libra-peso, ou 6.581 dólares a saca. Lembrança O café foi vendido em leilão anual da BSCA – Associação Brasileira de Cafés Especiais. Para quem acha loucura pagar tal preço, Gabriel Carvalho Dias, conselheiro da entidade, faz uma conta simples. “O custo, por xícara de espresso, é de quase um dólar. Como se trata de um lote superespecial, eles vão vender a xícara por um preço maior, digamos cinco dólares. Este é o preço de beber o melhor café do mundo. Quem não teria a curiosidade?”, diz. O cafeicultor Isidro Pereira não passará essa vontade, porque guardou para si, como lembrança, uma saca do café vencedor. “Ela é o orgulho da minha vida. Como nunca estive no Canadá, nem sei se terei a oportunidade de ir até lá beber o meu cafezinho especial, achei melhor me garantir por aqui”, diz o produtor de 55 anos, nascido em fazenda de café e criado com uma dieta de oito a dez xícaras diárias. Dentro da porteira, a produção do café especial é uma atividade que exige paciência e sistemática, além de recursos para investir em uma infra-estrutura adequada de produção, colheita e tratamento pós-colheita. Esse é um dos motivos para explicar por que a safra ainda é pequena, de cerca de um milhão de sacas, ou 3% da produção brasileira, que foi de 33 milhões de sacas em 2005/06. A produção deve continuar crescendo, em um ritmo de 8% a 15% ao ano. Estima-se que 90% da produção é exportada e só 10% fica no mercado interno. A expectativa é de que a área de gourmets continue se expandido alavancadas pelo desejo de o brasileiro bebericar um café de melhor qualidade. A participação dos gourmets e comerciais finos no consumo saltou de 9% para 19% entre 2001 e 2004, conforme o Sindicato da Indústria do Café de São Paulo. A tendência de crescimento deve se manter nos próximos anos, apesar dos preços salgados. O pacote de um quilo do gourmet custa 20 reais, enquando o convencional sai por oito reais. Os preços assustam, porém não afugentam os consumidores. A linha de gourmets ganha, ano a ano, mais espaço com nomes pouco conhecidos do público em geral como Astro, Braúna e Orfeu. Se o café for certificado pela BSCA, ele tem selo com número, que é uma espécie de RG. Com ele em mãos, o consumidor pode acessar, pela internet, em quais condições aquele café foi produzido, qual sua safra e o nome da fazenda onde foi cultivado, sistema de identificação semelhante ao do vinho. Por isso, os cafeicultores não pensam duas vezes quando o assunto é ampliar a área. Isidro Pereira, de Carmo de Minas, cultiva 20% da lavoura com gourmets e espera aumentar para 50% até 2008. Certificação social e ambiental O café especial não é especial só no preço, mas também na forma de produção. Em primeiro lugar, quando se fala em produção gourmet, trata-se exclusivamente do cultivo do café tipo arábica. Porém, não um arábica qualquer, mas somente aquele cultivado em condições climáticas ideais para produzir grãos “de xícara” que, no jargão do setor, refere-se aos cafés mais finos, capazes de produzir uma bebida homogênea. “São regiões de altitude elevada e baixo índice de chuvas”, diz Alexandre Nogueira, presidente da BSCA, que lista as áreas de cultivo irrigado na Bahia, colheita manual no sul de Minas e zona da mata, norte do Paraná e regiões de colheita mecanizada do cerrado mineiro e Mogiana, no interior de São Paulo. Outro pré-requisito é que a produção seja certificada ambiental e socialmente, o que é uma exigência dos compradores internacionais, mas também faz diferença para as indústrias locais. Se a secagem é feita ao sol, em terreiro, o cafeicultor deve fazer anotações diárias em uma planilha das condições de umidade do ar e quantas vezes o grão foi virado no terreiro para permitir uma secagem homogênea, evitando a fermentação dos grãos. Em relação aos tratos culturais, a adubação, nas palavras do agricultor Gabriel Afonso Mei, de Cristais Paulistas, SP, “tem que ser harmônica, mistura de adubos químicos com orgânicos. O mesmo vale para o controle fitossanitário, que além de tudo precisa ser preventivo, e não curativo, para não ofender a planta e sobretudo a qualidade e aspecto visual”. A fase final da produção dos gourmets é a secagem e armazenagem. A primeira tem que ser lenta, com fogo indireto para evitar o gosto de fumaça. A segunda deve ser em local apropriado, com luz fraca e baixa umidade para impedir que o café “beba” a umidade do ambiente. A estocagem deve ser feita segregando os grãos por qualidade. “Todo café na árvore é de bebida mole, ou seja, tem ótima qualidade. Mas vai perdendo características se o trabalho de pós-colheita não for bom”, diz Lourenço Del Guerra, diretor da Pinhalense Máquinas Agrícolas, uma das principais fabricantes de equipamentos. Nos últimos anos, as vendas cresceram 20% a 30% ao ano em função do boom do consumo e produção. A história do café 800 Para o pastor Kaldi, na Etiópia, suas cabras comiam grãos e dançavam sob a lua 1000 O café é cultivado pelos árabes, que fervem os grãos e criam a “kahoua”, ou “o que evita o sono” 1475 A primeira cafeteria é aberta em Constantinopla 1700 Cafeterias são abertas em Paris e Berlim. O rei Luís XIV prova a bebida. O café se torna valorizado e as mudas guardadas a sete chaves na Europa 1727 O café chega ao Brasil, no Pará, contrabandeadas por Francisco de Mello Palheta, da Guiana Francesa 1732-1735 O compositor alemão Johann Sebastian Bach compõe o “Kaffee Kantate”, uma ode à bebida e uma crítica ao movimento que queria impedir seu consumo pelas mulheres 1779 Brasil exporta café pela primeira vez. A lavoura cai no gosto do produtor e se espalha no país 1817 Fundada a primeira fazenda de café de São Paulo, no Vale do Paraíba 1822 O primeiro protótipo das máquinas de café expresso é criado na França 1870 Uma grande geada atinge o oeste de São Paulo, causando grandes prejuízos 1908 A dona-de-casa alemã Melitta Benz inventa o filtro de papel, em protótipo de mata-borrão. À época, os porta-filtros eram de alumínio 1929 O Brasil não resiste ao crash da Bolsa de Nova York. Os preços caem e milhões de sacas são destruídas 1930 A Nestlé busca solução para a safra excedente e inventa o café solúvel. Em 1938, o Nescafé é lançado na Europa e EUA 1935 Francesco Illy, da Illycaffè, inventa a primeira máquina automática de café expresso 1942 Os EUA incluem o café solúvel no kit de alimentação dos soldados que lutaram na Segunda Guerra 1946 Achille Gaggia cria o cappuccino, batizado em razão da cor, parecida com as vestes do monges capuchinhos 1953 O café solúvel chega ao Brasil com 15 anos de atraso devido à pressão contrária dos fabricantes de café torrado e solúvel 1970 A cafeicultura chega na Bahia 1994 Geada provoca forte disparada dos preços internacionais 1995 O café se torna a segunda maior commodity negociada no mundo, atrás apenas do petróleo 1997 A produção de cafés especiais começa a despontar no Brasil |