28/08/09 – Apesar de toda a incerteza sobre o futuro da economia mundial, o cenário dominante atual é que os piores temores sobre a crise econômica parecem ter passado. Este cenário, que propicia o retorno do apetite dos investidores internacionais por ativos mais arriscados, com maiores retornos esperados, tem contribuído para melhorar a conta financeira (capital) do balanço de pagamentos brasileiro.
Simultaneamente, a retomada do crescimento mundial vem se concentrando mais pesadamente na Ásia, em especial na China, acarretando aumento da demanda por nossas exportações de commodities, melhorando também a balança comercial. Tais movimentos voltaram a trazer para o centro da política econômica a questão do que fazer para mitigar a apreciação cambial que vem ocorrendo, prejudicando o desempenho das exportações, sobretudo de manufaturas.
Algumas medidas ineficazes ou insensatas vêm sendo propostas para mitigar o influxo de dólares, como controles de entrada de capitais estrangeiros e taxação das exportações de commodities, embora não se saiba se o governo lançará ou não mão delas. As principais medidas que vêm sendo utilizadas há anos, e deverão crescer ainda mais de importância, são as intervenções esterilizadas pelo Banco Central do Brasil (BC) nos mercados cambiais, ainda que o BC sempre advirta, corretamente, não ter um alvo para a taxa de câmbio.
Intervenções cambiais esterilizadas são compras ou vendas de divisas estrangeiras pelo BC sem que ocorra alteração no estoque de moeda (nem na taxa de juros). Na sua forma mais simples, uma operação esterilizada de compra de divisas envolve duas operações das mesas do BC. Inicialmente, o BC compra dólares e paga em reais, assim acumulando reservas internacionais e aumentando a base monetária. Simultaneamente, o BC conduz operações de mercado aberto que visam o enxugamento da liquidez adicional gerada pela operação de compra de câmbio: o BC vende títulos públicos de sua carteira, assim fazendo retornar a seu valor inicial a base monetária (e também a taxa de juros).
Ressalte-se a diferença entre intervenções esterilizadas e não-esterilizadas: estas últimas expandem (compra de divisas) ou contraem (venda de divisas) a base monetária, alterando, portanto, a taxa de juros. Não há dúvidas quanto à eficácia de intervenções cambiais não-esterilizadas em mover a taxa de câmbio, pelo menos por algum tempo. Países que têm metas, explícitas ou não, para a taxa de câmbio, recorrem, via de regra, a intervenções não-esterilizadas.
Intervenções esterilizadas podem afetar a taxa de câmbio via dois canais teóricos: o canal de sinalização e o canal de equilíbrio de portfólio. No canal de sinalização, o pretenso efeito sobre a taxa de câmbio adviria de sinais implícitos de futuras mudanças em políticas governamentais. Este canal não parece relevante quando se adota o sistema de metas para inflação, no qual há muitas formas de o BC passar ao mercado informações que julgue conveniente divulgar.
No canal de equilíbrio de portfólio, mudanças nas taxas de retorno alteram a taxa de câmbio. Segundo a lógica deste hipotético efeito, ativos denominados em dólares e reais não são substitutos perfeitos. Inicialmente, os dealers de câmbio detêm seus respectivos estoques desejados de moeda estrangeira. Então, o BC realiza a compra esterilizada, reduzindo os estoques dos dealers para níveis abaixo dos desejados (às taxas de retorno vigentes, os dealers passam a ter demasiados ativos em reais e poucos ativos em dólares). Assim sendo, os dealers vão ao mercado para recompor seu estoque, comprando dólares e pagando em reais, causando a depreciação do real, a qual, por sua vez, causa a diminuição do retorno esperado dos ativos em dólares. No novo equilíbrio de portfólio, com o dólar mais apreciado, os novos retornos esperados são compatíveis com a nova quantidade relativa de ativos em dólares e reais.
A literatura empírica sobre a capacidade de intervenções esterilizadas afetarem a taxa de câmbio é bastante controversa. Detecta efeitos que variam entre diferentes países, e mesmo entre diferentes episódios, ao longo do tempo, em um mesmo país. Estudos empíricos em mercados emergentes têm sido pessimistas quanto à eficácia de intervenções esterilizadas em alterar a trajetória da taxa de câmbio.
O advento dos derivativos financeiros veio a tornar ainda mais complexa a operação das intervenções esterilizadas. Por exemplo, ao decidir atuar no mercado cambial, o BC tem ainda que decidir se vai atuar no mercado à vista (mercado composto pelo BC e por bancos autorizados a operar com câmbio) ou no mercado de derivativos cambiais, usualmente via swaps cambiais. Em princípio, o locus de atuação do BC seria indiferente, produzindo o mesmo resultado independentemente de onde o BC intervenha. Na prática, contudo, pode ser relevante a escolha do mercado no qual o BC intervirá. Um exemplo ilustra o problema.
Uma das formas com que investidores estrangeiros lucram com a diferença entre os juros altos no Brasil e os juros mais baixos nos EUA, em operação conhecida como carry-trade, é vendendo contratos futuros de dólar na BM&F Bovespa. A pressão vendedora de dólar futuro deprime o preço do dólar futuro, reduzindo o forward premium (diferença entre os preços do dólar futuro e do dólar à vista). Como a taxa de juros interna não se altera, sobe o cupom cambial (a taxa de juros em dólar no Brasil), gerando oportunidade de arbitragem para os bancos, que passam a trazer dólares tomados por empréstimo no exterior. Neste caso, em qual mercado deve o BCB intervir? No mercado futuro (onde começou a pressão vendedora de dólar futuro), no mercado à vista (onde surgiram os dólares spot (à vista) que apreciaram o BRL), ou em ambos os mercados? Se em ambos, em qual proporção? Esta é uma questão extremamente relevante de política econômica para a qual não se dispõe de respostas claras, teóricas ou empíricas.
Mais ainda, calibrar o tamanho das intervenções é também um grande problema. Em entrevista recente, o diretor do BC Mário Torós rebateu a ideia de que o BC deva aumentar suas intervenções de compra no mercado spot para além do fluxo cambial: “De forma geral, o resultado final desse tipo de atuação (quando a compra, pelo BC, supera o volume de dólares ingressados no dia), é uma circularidade. Você compra, puxa o cupom, entra capital especulativo, o fluxo de dólares aumenta, você vai e compra esse fluxo maior. Por definição, você estará sempre comprando o fluxo”. … O governo sabe se sua política está afetando ou não o ingresso de capitais especulativos na medida em que a atuação do BC no mercado está sendo de tal maneira que a taxa de juros do cupom cambial se mantém no nível da taxa de juros do mercado internacional (mais um pequeno prêmio) (Valor Econômico, 14/8/2009).
Subentende-se da declaração do diretor do BC que não há um objetivo de comprar um volume definido a priori, devendo o BC absorver o excesso do fluxo que ocorreria na ausência de sua intervenção. Tal objetivo é compatível com o já alto nível de nossas reservas cambiais (as quais, em nível menor, já se demonstraram suficientes para enfrentar a crise de 2008) e o alto custo fiscal das mesmas. Em suma, embora não seja claro que as intervenções esterilizadas do BC em mercados cambiais possam alterar a trajetória de longo prazo da taxa de câmbio, é quase certo que continuarão a ocorrer.
Márcio G. P. Garcia, é PhD por Stanford e professor do Departamento de Economia da PUC-Rio