História do Café – Uma revisão da travessia a história da imigração italiana

As condições sanitárias das viagens dos imigrantes italianos ganham estudos recentes no Brasil

Por: CÁTIA DALMOLIN/ Mestre em História pela Universidade de Passo Fundo (UPF)


29/05/2007 03:05:22 – Diário de Santa Maria


…e cruzavam o Atlântico rumo ao Brasil


Foto reprodução/Diário de Santa


...e cruzavam o Atlântico rumo ao Brasil


 


 


 


 


 


 


 


 


Centenas de descendentes de italianos estão reunidos neste mês para comemorar os 132 anos da chegada dos primeiros imigrantes italianos ao Rio Grande do Sul e os 130 anos em Silveira Martins. A emigração era uma questão de sobrevivência. Dentro desse processo, talvez a viagem transoceânica tenha sido a experiência mais traumática. As condições sanitárias a que estavam sujeitos milhares de imigrantes italianos, que saíram de seu país de origem em fins do século 19 e início do século 20, constituem um estudo relativamente recente e que não encontra muito eco no Brasil, sendo desenvolvido, quase que exclusivamente, por historiadores italianos. Trabalhos recentes têm mostrado também seus benefícios – descanso, turismo, comida farta etc. Porém, sem dúvida, o navio era um lugar de proliferação de doenças devido ao grande número de pessoas e, principalmente, à falta de higiene comum nessas embarcações.


O mito da imigração italiana se formou a partir das comemorações do seu centenário, em 1975, com o início de uma retomada bibliográfica sobre a imigração ítalo-gaúcha. Contada em sua grande maioria por religiosos, reproduziu-se de uma maneira impressionante entre as diferentes gerações de descendentes italianos até os dias atuais, no que chamamos de “geração de 75”. Nesses primeiros trabalhos, a história estava repleta de sofrimentos, agruras, frustrações, promessas não-cumpridas e isolamentos, mostrando que os italianos venceram tudo graças a sua excelência étnica e à forte religiosidade que os acompanhava. Nesse relato totalizante, as contradições e os fracassos desaparecem. Por meio desse discurso, entende-se que obtiveram sucesso absoluto. Recentemente, de 2000 para cá, as (re)leituras dessas importantes obras e a busca de novos depoimentos e fontes propiciaram o esboço de uma nova visão sobre a história da imigração italiana.


A historiadora italiana Augusta Molinari, no artigo Aspectos Sanitários da Emigração Transoceânica de Massa, apropria-se de uma definição fornecida por Abdemalek Sayad que define a emigração como dupla ausência. Se por um lado a sociedade de onde os imigrantes partiram os considera como fugitivos, aquela que os acolhe os vê como intrusos. O imigrante passa a representar um ser “invisível”, porque acaba perdendo seu valor social (1).


A emigração não era algo novo para os italianos, principalmente do Norte. Maria Catarina Zanini, no livro Italianidade no Brasil Meridional: A Construção da Identidade Étnica na Região de Santa Maria-RS, explica que “No Trento, de acordo com Grosselli, era comum girarem pela Europa e se aventurarem num raio de milhares de quilômetros, como, por exemplo, os vendedores de imagens sacras do Tesino. Esses homens (…) deveriam voltar à família com certa soma de dinheiro e isto os obrigava a economias extremas (…), contudo, eram eles também os mensageiros das mudanças sociais e econômicas que estavam transformando a Europa, inclusive das notícias sobre a emigração para a América (2)”.


Na obra Traversate: Le Grandi Migrazioni Transatlantiche e I Racconti Italiani Del Viaggio Per Mare, o historiador italiano Emilio Franzina destacou que na Europa não faltava, desde o final do período medieval, uma atitude da população frente à emigração, devido a problemas climáticos, baixa produtividade do solo e sobrevivência. Isso determinava quase sempre a emigração temporária, sobretudo de homens jovens e adultos (3).


Os motivos da emigração


A alimentação, juntamente com habitação e saúde, formava o tripé fundamental da condição de vida do emigrante. Ele escolhia a América para fugir da fome e da miséria, mas, ao mesmo tempo, vivia em função de um possível retorno, mantendo os hábitos, no mínimo nível de sobrevivência. A saúde era um mecanismo de auto-seleção durante o processo emigratório, em particular nos primeiros anos de 1900, pela exigência do mercado de trabalho dos lugares de destino. Foram muitos os motivos que impulsionaram a emigração italiana para várias partes do mundo em fins do século 19 e início do 20. O processo de industrialização englobou a modernização, desarticulando o artesanato doméstico, privatizando as terras e aumentando o desemprego rural. A Península Itálica era uma região pobre em recursos naturais e terras para a agricultura. As constantes catástrofes naturais – secas, inundações, granizos e epidemias – contribuíram para o empobrecimento da população que ainda sofria com arrocho fiscal, superpopulação e falta de emprego, de terras e de comida.


O historiador Mario Maestri, em Os Senhores da Serra, mostra que, de 1873 a 1881, 62 mil pequenas propriedades foram confiscadas na Itália porque não conseguiram pagar seus impostos (4). O emigrante na Itália era “mezzadro”, ou seja, arrendatário, não tinha nada, era empregado. Já no Brasil, seria pequeno proprietário, não tendo patrões, tornando-se dono do seu pedaço de terra (4).


Os agentes de imigração faziam uma grande propaganda na Itália a fim de aliciar os imigrantes. Anunciavam o Brasil como o “paese de la cucagna”, ou seja, o país da fartura. Prometia-se transporte gratuito, hospedagem, instrumentos de trabalho, sementes, assistência médica, instrução para as crianças e crédito para comprar um lote de terras. Subsidiando a viagem dos imigrantes italianos para o Brasil, o governo trazia os mais pobres, que dificilmente teriam condições de repatriamento e de estabelecerem-se por conta própria.


Transatlântico que afundou na costa da Espanha, com imigrantes italianos



 


 


 


 


 


 


 


 


Os relatos das viagens


As pessoas que ficavam em Gênova, aguardando o embarque, causavam transtornos à cidade. Isso acontecia porque os agenciadores atraíam mais pessoas do que poderiam carregar. Formava-se, assim, um quadro de miséria, pois, tendo os emigrantes vendidos seus bens, só restava esperar uma oportunidade para embarcar. Era preferível o desconhecido – o Brasil – do que a realidade conhecida – a Itália -, com a fome e a miséria. Em Política de Colonização do Império, Paulo Machado descreve que as pessoas estavam emigrando para a América não por ilusão, mas por pão e trabalho (5).


Os relatos referentes à travessia esbarram em pontos comuns: muitas pessoas morriam e, quando doentes, eram jogadas ao mar. Os navios que transportavam os imigrantes não tinham segurança e muitos afundaram. Aos emigrantes, era destinado a cuccetta – espaço muito estreito -, uma espécie de dormitório coletivo. Nele, encontravam-se beliches com colchões de crina, travesseiros e cobertores de lã, rapidamente infestados de parasitas e piolhos.


Após 1895, tudo indica que não se tomava um banho completo durante a viagem, o que favoreceria o aparecimento de doenças. O imigrante Luigi Toniazzo enfatizou sobre seus colegas a bordo do Andrea Doria, em 1893, que “Assoavam o nariz com as mãos, bem a nossos pés, quando estávamos a comer, (…) e estavam cheios de piolhos, como galinhas; coçavam-se no seio de suas mulheres e estas ficavam a matar os piolhos na presença de todos.” (5)


Nem só de coisas ruins se fazia a longa viagem transoceânica dos imigrantes italianos. Existem muitos relatos mostrando uma viagem prazerosa. Julio Lorenzoni, em suas memórias, mostra claramente que sua família e outras, antes da partida, haviam se acostumado com a nova vida, onde somente comiam, bebiam e passeavam (6).


O Regulamento de Sanidade Marítima de 29 de setembro de 1895 é o primeiro texto em matéria sanitária que contempla normas para tutela do emigrante e define, ao menos em termos gerais, uma série de funções aos portos e aos médicos de bordo. Este deve ter feito, no mínimo, dois anos de graduação e deve demonstrar uma boa preparação em matéria de higiene e medicina naval. É formada uma comissão composta de um médico do porto, um oficial do porto e um delegado de segurança pública que deve verificar: a quantidade e qualidade de gêneros alimentícios, da água e dos meios higiênicos. Também deveriam providenciar remédios e desinfetantes; zelar pela boa condição dos equipamentos e das embarcações; cuidar da perfeita limpeza das roupas, das cobertas e de outros objetos de uso doméstico, do corredor, dos equipamentos e de todos os locais de alojamento; ficar atento para que a ventilação não seja deficiente e sejam suficientes as boas condições de limpeza e a lavagem das latrinas.


Em 1901, estabeleceu-se a primeira lei orgânica sobre os aspectos sanitários, em que se determinou que os emigrantes deveriam ser alojados em dormitórios onde existissem uma escotilha a cada 150 lugares e uma latrina a cada 80 passageiros. O Código da Marinha Mercantil, de 1865, previa a proibição do embarque de idiotas (sic), surdos-mudos (sic), mentecápticos (sic) e a obrigação da presença a bordo de um médico, no caso das pessoas embarcadas serem em número superior a 150. O artigo 87 proibiu também o embarque de pessoas gravemente doentes sem que viesse descriminado o tipo de doença (7).



 


Nas imagens, postais com imagens de navios que partiam da Itália com imigrantes…


 


Um ambiente propício a doenças


As más condições higiênicas da viagem representavam um grande risco à proliferação de doenças entre seus tripulantes. A temperatura dentro do navio era irrespirável. O ácido carbônico da respiração e o odor exalado dos corpos, unidos ao cheiro da urina e fezes, que durante a noite eram feitas nos cantos dos dormitórios, tornavam o local propício a epidemias. Entre os doentes, figuravam crianças e idosos, que apresentavam baixa imunidade.


Augusta Molinari explica que a psiquiatria fornece o paradigma científico do emigrante como sujeito psicologicamente fraco e predestinado à loucura. Estes, segundo a pesquisadora, sofriam um estresse psicofísico muito elevado. Trabalhar intensamente, viver em um ambiente degredado e doente, isolado e na solidão, sem uma rede de assistência, são fatores que favoreceriam a manifestação de doenças mentais (7).


De acordo com os relatórios do Comissariato Generale Dell Emigrazione, cerca de 30 mil emigrantes loucos retornaram dos Estados Unidos entre 1903 a 1925. Em 1907, No navio Gallia, 50 crianças de zero a três anos morreram de tracoma. Outra doença que atingia crianças, em grande escala, causando mortes, era a varicela. Além do estresse causado pela viagem aos recém-nascidos, outra dificuldade era a manutenção do aleitamento materno (7). As doenças mais comuns entre os viajantes eram malária, pneumonia, sarampo, sarna, sífilis, tracoma, tifo, tuberculose, varicela e varíola.


Augusta Molinari, na obra La Navi Di Lazzaro, explica que “a pouca higiene pessoal e a situação de aglomeração por um período bastante longo (não menos de 20 dias) de massas de imigrantes são consideradas pelos higienistas como determinantes para a difusão das doenças contagiosas”. (7)


A respeito do sepultamento durante a viagem, segundo Dilse Corteze, “era uma prática ancestral, por razões atinentes à saúde dos tripulantes e passageiros.” (7) O não-sepultamento dos corpos poderia agravar as já precárias situações sanitárias. Os cadáveres putrefatos certamente seriam portadores de riscos à saúde dos que permaneceriam no navio. Estando no mar e sem local propício ao sepultamento, a água surgia como única solução. Jogar um doente (vivo) ao mar seria um assassinato passível de punição pelas autoridades italianas responsáveis pelos navios.


Em Esperança de Uma Nova Vida, o médico José Carlos Rossini descreve que o navio Colombo transportou imigrantes ao Brasil em 1888 e tinha capacidade para cerca de 700 passageiros em acomodações comuns e 80 a 100 em classe cabina (alojamento individual). Foi o pioneiro a dispor de instalações frigoríficas para armazenar alimentos frescos, porém, com relação aos imigrantes, as condições se mantinham precaríssimas. (8). O navio Giulio Cesare tinha acomodações para 256 passageiros de primeira classe, 306 de segunda e 1.800 de terceira (imigração) e fazia a linha entre Gênova, Nápoles e Buenos Aires, passando por Santos e Montevidéu. Os navios transportavam imigrantes na terceira classe. O número de pessoas transportadas na terceira classe variava de 800, como no caso do Colombo, a 1800, como no Giulio Cesare, porém não mudando a precariedade dos tratamentos dispensados a estes.


Humilhação moral e perigos higiênicos


No tocante à alimentação, durante a travessia alguns imigrantes destacaram o bom tratamento. Júlio Lorenzoni mostrou que a ração era farta, destacando que “às 8h vinha distribuído o café com biscoitos em abundância; era a refeição habitual de todas as manhãs, salvo às quintas-feiras, em que aquele era acrescido de um decilitro de rum e cinco ótimas anchovas para cada um.” (6). Para o jantar, eram servidos sopa de massa ou arroz com legumes, carne, batatas, ovos, entre outros. Não faltava o pão e o vinho que estavam à mesa todos os dias.


A comida era suficientemente rica de elementos protéicos e superior em quantidade, quando comparada a alimentação habitual dos emigrantes na Itália. O grande problema residia na péssima distribuição e na forma precária de consumo, não havendo refeitórios para tal. Qualquer lugar serviria para que se realizasse as refeições. Em cima das cobertas, na escada, com um prato entre as pernas, e um pedaço de pão entre os pés, os nossos imigrantes comiam como pobres nas portas dos conventos. Era uma humilhação do lado moral e um perigo em termos de higiênicos.


A água era armazenada em caixas de ferro, revestida internamente com cimento, que ficava escura em contato com o ferro oxidado, adquirindo uma coloração vermelho amarronzada, sendo assim consumida pelos emigrantes, não tendo ainda previsto nos navios sistema de destilação (fervura).


Em sua fase inicial, a intenção da pesquisa apresentada neste artigo é descortinar a história por detrás dos mitos, no tocante à emigração italiana, em fins do século 19 e início do século 20.






















Citações
1 – Aspetti Sanitari Dell’ Emigrazione Transoceânica di Massa, de Augusta Molinari. Itália, Franco Angeli Libri, 1988
2 – Italianidade no Brasil Meridional: a Construção da Identidade Étnica na Região de Santa Maria-RS, de Maria Catarina Chitolina Zanini. Editora UFSM, 2006
3 – Traversate: Le Frandi Migrazioni Transatlantiche e i Racconti Italiani Del Viaggio per Mare, de Emilio Franzina. Itália, Editoriale Umbra, 2003
4 – Os Senhores da Serra. A colonização Italiana no Rio Grande do Sul (1875-1914), de Mario Maestri. UPF, 2000
5 – A Política de Colonização do Império, de Paulo Pinheiro Machado. Editora UFRGS, 1999
6 – Memórias de um Imigrante Italiano, de Júlio Lorenzoni. Sulina, 1975
7 – La Nave Di Lazzaro, de Augusta Molinari. Itália, Franco Angeli Libri, 1988
8 – Esperança de Uma Nova Vida, de José Carlos Rossini. Gráfica Planeta, 1996



Fonte: Diario de Santa Maria

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