Um dia, a literatura, a música, o cinema e outras artes nos farão ver mais de perto, com mais emoção, aquilo que as ciências sociais já vêm mostrando há muito tempo: o terrível quadro que se formou nas áreas urbanas brasileiras, principalmente nas metropolitanas, a partir da segunda metade do século 20. Quadro que vem resultando na ingovernabilidade progressiva e perigosa, que em certos momentos chega ao paroxismo, com o transbordamento de algum de seus fatores ou da soma de muitos deles, como aconteceu há duas semanas. Algo tão dramático que levou até à explosão verbal de um personagem contido, como é o governador de São Paulo, ao dizer que “a bolsa da burguesia vai ter que ser aberta para poder sustentar a miséria social brasileira”.
Não há como não se espantar quem se aproxime desse quadro que resultou do crescimento da população urbana em mais de 100 milhões de pessoas em 60 anos, de 1940 a 2000. Talvez não haja paralelo no mundo, a não ser na China, que urbanizou mais de 200 milhões de pessoas nas últimas três décadas, mas em condições e por causas muito diferentes. No Brasil os motivos foram outros – as terríveis disparidades regionais de renda, a concentração do crescimento econômico, da oferta de empregos e de renda, da disponibilidade de infra-estruturas sociais, principalmente de saúde, que provocam o deslocamento das pessoas mais carentes, que depois não têm razões para retornar à sua origem.
Um olhar mais próximo pode ser revelador. Quando o autor destas linhas dirigiu um projeto social em cinco bairros pobres de Goiânia, em meados da década passada, um levantamento casa por casa mostrou que mais de 90% dos habitantes dos cinco setores eram migrantes – do interior goiano ou de outros Estados, principalmente do norte de Minas Gerais, da Bahia, de Pernambuco, do Tocantins e do Maranhão. Boa parte ali chegara em busca de trabalho e renda; outra parte, que chegara em busca de tratamento de saúde, não tinha para onde nem por que retornar. O analfabetismo estava além de 30% dos adultos. E naquele lugar, naquelas condições, todos os migrantes deixavam de lado as informações relacionadas com os hábitats abandonados – elas não tinham nenhuma utilidade para quem, na melhor das hipóteses, se transformaria em ajudante de pedreiro ou empurrador de carrinho de picolé. Eram também despojados de sua cultura. E transformar esse quadro exigia um projeto de desenvolvimento integrado, não apenas medidas pontuais – o que é sempre extremamente difícil de concretizar.
Vinte anos antes, na Rondônia que começava a ser desmatada, outra lição inesquecível (já contada neste espaço, mas que vale a pena relembrar). Na última frente de penetração no Estado, além de Alvorada do Oeste, numa choupana de palha, cercado pela mulher e por muitos filhos, um cearense contava sua saga. Para não passar fome saíra a pé de seu Estado na seca terrível de 1958, para trabalhar com emprego temporário numa usina de cana-de-açúcar em Pernambuco. Terminada a colheita, de novo desempregado, foi mais uma vez a pé para o sul da Bahia – ouvira falar que “no cacau estava bom”. Não estava, mas ali conheceu um madeireiro que começava a derrubar a mata atlântica do sul baiano e lhe deu trabalho.
Era “muito pesado”, achou melhor aceitar a oferta de um fazendeiro para plantar algodão em Paracatu, Minas. Lá conheceu outro fazendeiro, paulista, que ia “desbravar” uma área no norte do Paraná, para plantar café. Terminada a tarefa, deslocou-se para o oeste paranaense, para uma plantação de soja. O início das obras da Hidrelétrica de Itaipu lhe proporcionou um novo, emprego, que “foi bom enquanto durou”.
A etapa seguinte foi num frigorífico do oeste catarinense, “muito frio, muito difícil”. Tentou voltar à soja e ao café, não deu. Mas conseguiu trabalho numa nova frente, para plantar trigo em Dourados, Mato Grosso. Com resultado econômico fraco, dispensado, foi parar num garimpo de diamantes no norte do Estado. E dali chegou a Vilhena, em Rondônia, porta de entrada para a migração estimulada do sul, em busca de lotes da reforma agrária. Ganhou o seu, em Alvorada do Oeste. E estava ali derrubando a floresta amazônica para poder construir a casa, plantar a lavoura branca; depois faria um pasto, para arrendar a algum fazendeiro, talvez mesmo o vendesse e saísse em busca de outro lote, colaborando para o “desmatamento itinerante” de que falam os cientistas. Que mais poderia ele fazer, sozinho naquelas paragens, sem assistência técnica, sem recursos financeiros – apenas “rico de esperança”, como dizia outra migrante?
Era quase inacreditável ver aquele cearense humilde, descalço e maltrapilho, rodeado pela família, perdido naquelas lonjuras – depois de haver escrito com as próprias mãos boa parte da história social, econômica e política do País durante três décadas. Mais inacreditável ainda é saber que, mutatis mutandis, se encontrarão histórias semelhantes em cada porta de barraco de cada aglomeração urbana.
Quem der um salto para as ciências sociais verá o IBGE dizendo que “mais de 72 milhões de brasileiros (40% da população) não têm garantia de acesso à comida em qualidade, quantidade e regularidade suficiente” (Agência Brasil, 17/5).
Não haverá, portanto, surpresa, diante da explosão do governador. Que se espera que aconteça quando em certos lugares a taxa de desemprego entre jovens de 15 a 24 anos ronda os 50%? Ou quando os homicídios respondem por quase 50% das mortes de jovens negros? Como já se escreveu aqui, seria insensato pensar que esses jovens esperarão, sentados à soleira da porta de suas casas, que caia do céu alguma solução mágica. É principalmente aí, nesses lugares onde o crime já tem até domínio territorial, que se forma o quadro que nos atormenta.
Washington Novaes é jornalista
E-mail: wlrnovaes@uol.com.br
Fonte: Estado de São Paulo/
http://txt.estado.com.br/editorias/2006/05/26/opi-1.93.29.20060526.1.1.xml