Notícias / A história do delegado Mogimiriano na então Penha do Rio do Peixe.
ERA PENHA … DEPOIS, ITAPIRA Um grave fato histórico ocorrido em nossa cidade, a um século, de tamanha projeção nacional e internacional, provocou a mudança do nome de nosso torrão. Até 1890, seu nome era Penha do Rio do Peixe. À partir de então foi batizada como Itapira. Que houve de tão ruim para que a edilidade pedisse ao governo de São Paulo a mudança do nome da cidade? No livro de registros de ofícios expedidos pela Câmara Municipal da Penha do Rio do Peixe, pagina 85 lemos: -“… Cidadão. A intendência municipal desta cidade da Penha do Rio do Peixe, em sua sessão de hoje, resolveo por votação unânime, representar-vos no sentido de ser mudado o nome que esta cidade conserva, digo cidade e município tem conservado até hoje, pelo de cidade e município de – ITAPIRA – satisfazendo assim, o desejo de grande parte de sua população. Esta indicação tem por fim apagar qualquer sombra que o passado possa projectar sobre o futuro desta Cidade, riscando do quadro das cidades paulistas um nome execrado por mais de um título. Saúde e fraternidade. Paço municipal da Penha, em sessão de Intendência, 8 de fevereiro de 1890. Ao cidadão Dr. Prudente José de Moraes Barros, Digmo. Governador do Estado – de São Paulo. Está conforme. O secretário: Oliveira Rocha…”. Retrocedamos até 1885 para compreendermos os fatos tristes e imprevisíveis. Vindo da vizinha Mogi Mirim, nascido lá em 29 de agosto de 1855, o cidadão Joaquim Firmino de Araujo Cunha, tomou posse como Delegado de Policia em 01 de setembro de 1885. Reinava a escravidão dos negros, no Brasil. Minhas pesquisas tomam o livro “Joaquim Firmino, Mártir da Abolição”, de Jacomo Mandatto e, nele, Jacomo conta que todos tinham escravos. Era status. Quem tinha dinheiro e poder fatalmente teria um. Até o vigário local, Padre Gaudêncio Ferreira Pinto vendia a Pedro de Almeida Lara, três escravos, em 04 de janeiro de 1875. Não se quer dizer que o tratamento inumano que foi dado a milhares de escravos, balizava a relação da maioria dos proprietários.
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Firmino veio com a esposa e filha e foi morar na Rua do Comércio (hoje Francisco Glicério), 400, construída em 1875, bem próxima da Praça onde ficavam a Matriz, Câmara e Cadeia. A casa foi demolida em tempos recentes e o proprietário do local, Professor Sillas Bravo Nogueira, ex-secretário da Educação de Itapira, doou um tijolo que fez parte do alicerce.
Observando as escrituras de venda de escravos de Itapira, vemos como era alto o valor do servo. Num trecho da escritura lemos que três escravos, entre 14 e 27 anos de idade, foram vendidos por seis contos e oitocentos mil réis. Um conto de réis equivalia a um milhão de mil/réis. Sei, por exemplo, que o Comendador Virgolino de Oliveira, em 1933, comprou o trator de esteiras, vindo dos Estados Unidos, por três contos de réis e, já nessa época, o valor da moeda havia desvalorizado muito. O escravo era considerado uma peça, como um terreno ou uma casa, sobre o qual, o comprador pagava imposto “meia siza”. O escravo podia até ser arrendado, como consta em outra escritura. Esse preço vai diminuir à época da abolição para quinhentos mil réis. Se levarmos em conta que existiam no país cerca de 700 mil escravos, para que o governo indenizasse os proprietários teria que empenhar o valor do PIB brasileiro para essa quitação, em torno de 375 mil contos de réis, o que levou Ruy Barbosa a queimar toda a documentação sobre o assunto.
O Brasil, daquela época, dependia do trabalho escravo para que o Império pudesse arcar com suas despesas. O café era o produto de exportação que trazia as divisas que o Estado precisava. Não tinha outra forma de comércio. O Brasil dependia do setor primário totalmente. O movimento para abolição da escravatura vinha contrariar os interesses do governo e proprietários de terras produtivas do café. A pressão exercida pela Inglaterra era grande e cada vez mais, se tornava arriscado o trafico de negros para o Brasil. As fortunas dos grandes latifundiários estava ligada à posse dos escravos. Sem escravos haveria a paralisação das colheitas de café e, na seqüência, a bancarrota. Em Itapira, no ano de 1875 haviam 1.298 escravos e o numero da população livre era de cerca de 6.000. A maioria dos escravos era utilizada nas fazendas itapirenses.
É nesse cenário que Itapira irá aparecer, de forma ultrajante aos olhos dos abolicionistas e do povo. Não que o Delegado não tivesse escravos, tinha-os. Mas, as idéias da abolição atraíram a atenção do Chefe de Polícia. Ele era amigo do Sr. Joaquim Ulisses Sarmento, jornalista, farmacêutico e vereador, que fez publicar na “Gazeta de Mogi Mirim” os acontecimentos da morte violenta do policial. Ele e o Delegado chegaram a fazer em Itapira comício em prol da abolição. Imagina-se o que os fazendeiros sentiam ao serem afrontados assim. Nos últimos tempos, Joaquim Firmino acoitava em sua casa os escravos que fugiam e os encaminhava para locais mais seguros. Se negava a capturar escravos fugidos, apesar dessa autorização vir de São Paulo. Ainda enfrentou processos dos fazendeiros como da contratação de advogado em Mogi Mirim para que o delegado cumprisse sua tarefa de capturar escravos; em outro, Firmino Gonçalves Bairral processa o delegado por abuso de poder. Na sentença, o Juiz absolve o réu e, entre outras palavras diz: “…Atendendo porém, que o réu estava convencido no perigo iminente e que pela sua inteligência, má compreensão e nenhuma aptidão para o cargo…”.
Os chefes políticos também eram fazendeiros, comerciantes, etc. Basta olhar na ‘Câmara Política’ do Museu, do inicio da república, para ver os sobrenomes: Rocha, Pereira, Cunha, Alvarenga, etc. Em 1888 não era diferente. Dr. Jose Joaquim de Moraes (presidente), José Gomes de Alvarenga Cunha(Capitão), Simão Cananeo Monteiro, Francisco Otaviano de Vasconcellos Tavares, João Batista da Rocha, Manoel da Rocha Campos Porto, João Manoel Pereira de Oliveira e Joaquim Ulisses Sarmento(este último amigo como já vimos do delegado). Concatenando os acontecimentos, temos: a) O Império já vinha tomando medidas para acabar com a escravidão (lei do ventre livre, do sexagenário, etc) e em quatro meses, a princesa Isabel assinaria a Lei Áurea; b) para os fazendeiros e interessados, o delegado era grande problema, pois, incentivava a debandada de escravos; as atitudes do delegado de enfrentar certos fazendeiros, fazer comício sobre abolição em plena Itapira em 1887, se negar a caçar escravos e acoitar escravos em sua casa; do Chefe de Policia de São Paulo, Dr. Francisco de Paula Rodrigues Alves, exonerar o cidadão Joaquim Firmino do cargo de delegado justamente no dia 11 de fevereiro de 1888, horas antes de sua morte, tornando-o um cidadão comum. Os fazendeiros resolveram dar um “susto” no delegado e se juntaram os jagunços e, a na noite de 11 de fevereiro de 1888 subirem até o centro da Penha do Rio do Peixe e dar uma lição exemplar. Em número de 200, armados com espingardas, garruchas, cacetes e cabos de relho, foram até a residência do delegado. Nos depoimentos da esposa, filha , escravas e mesmo das testemunhas de acusação, a turba se dividiu em dois grupos. Um foi para os fundos da casa e o outro entrou pela frente. Com tiros nas paredes, arrombamento de porta, destruição de móveis e utensílios invadiram a casa. Firmino com trajes de dormir percebeu a movimentação e correndo para os fundos avisou sua esposa para fugir com a filha. Como se viu cercado, tentou empreender fuga pela janela pulando para a casa vizinha. Não conseguiu, caindo de uma altura considerável ao solo, foi cercado e recebeu inúmeras pauladas que causaram sua morte. Sua esposa também saltou pela outra janela e, caindo machucou o braço, se escondendo dentro de um forno vazio. A menina e as escravas não foram molestadas, pois, o objetivo do grupo era o delegado. Confirmada a morte de Joaquim Firmino, os homens se dirigiram a outros dois locais próximos, onde moravam abolicionistas, Pedro Candido de Almeida, Bento da Rocha Campos e, encontrando as casas vazias. O vigário, Padre Agostinho Gomes da Costa , também é citado como simpatizante da causa mas não é mencionado nos depoimentos.
No Auto do Corpo de Delito, os oficiais declaram sobre o cadáver do delegado: – que a parte de traz do corpo nada havia de sinais de luta. Na frente (tórax, braços e cabeça) sinais de equimoses e luxações. O exame da residência também confirma o que disse acima.
A lista de acusados é enorme e aquele que é o mais indicado como culpado pela morte, é o Dr. James Warne (americano, naturalizado). Os fazendeiros contratam então, o melhor advogado do Estado de São Paulo, Dr. Brasilio Machado, pela quantia de 100 contos de réis. Como ele é o melhor, consegue fazer com que nenhum dos acusados seja condenado, por falta de provas em todos os quesitos. A Justiça local declara inocentes a todos e expede o alvará de soltura, indica o tesouro municipal para pagar as custas do processo, encerrando assim o julgamento. No museu encontramos cópias de dois volumes do processo que estão em bom estado.
Na Câmara de Penha (Itapira) pela ata de 18 de fevereiro de 1888, é dada a noticia da morte de Joaquim Firmino com pesar e solicitado ao presidente que ative o serviço de iluminação pública até o final da madrugada, pois, a população está atônita e apreensiva quanto a novas desordens. É conhecido também o nome da pessoa que irá substituir o delegado morto, Major Guilherme Jose do Nascimento. Dois anos depois, em 1890, acontece a solicitação da mudança do nome da cidade. Esse episódio foi explorado pelo lado abolicionista (imprensa, anti-monarquistas e intelectuais) de forma muito intensa. Como a morte de João Pessoa, por motivos pessoais, foi o motor da revolução do período Vargas, aqui também a morte de Joaquim Firmino cumpriu um propósito mais alto, que era a luta pela libertação dos escravos. Toda a imprensa noticiou o crime. Noticiou o julgamento. O Dr. Brasilio Machado viu seu nome ser acachapado, denegrido, ridicularizado por ser o defensor de um bando de sicários. Joaquim Firmino pode ser considerado Martir da Abolição de Itapira porque após ter enfrentado e desafiado a toda uma comunidade escravagista, abrigado os escravos em sua casa e ajudando-os a escapar da cidade, recebeu o prêmio aos mártires reservado, a morte. Nomes como: Francisco Rangel Pestana, Angelo Agostini, José do Patrocinio, Joaquim Nabuco, João Mendes Jr, Jose Maria dos Santos, Lavinia Rocha Alvares Pessoa, Luiz Francisquini relataram de todas as formas os acontecimentos. No dia 13 de maio de 1888, é assinada a lei que liberta totalmente os escravos no Brasil. Em Mogi Mirim, além do sepultamento com presença de grande público e comoção geral, as homenagens ao delegado-martir foram muitas. Foi dado seu nome a uma rua importante naquela cidade e, em nossos dias possui um centro de preservação de sua memória. Jacomo Mandatto aqui , conseguiu nominar uma rua do Jardim Soares e inaugurou um pedestal na praça da Mãe Negra no centenário de sua morte. É merecido o título de mártir, pois, morreu em conseqüência de falar e agir, como abolicionista.