BRASIL / 02/03/2008
Sem jeitinho
Exigências européias para importar carne brasileira expõem a importância de se adequar à regra do jogo. Outros setores já fizeram isso
Julia Duailibi
Novas tecnologias, terras baratas, recursos naturais abundantes e grande oferta de mão-de-obra transformaram o Brasil em líder mundial na produção e exportação de açúcar, café, suco de laranja concentrado, soja, carne bovina e frango. Dos 854 milhões de hectares do país, praticamente a metade, uma área equivalente a sete territórios franceses, é ocupada por pastagens, áreas cultivadas ou potencialmente cultiváveis. Às vantagens comparativas brasileiras somou-se o aumento de produtividade. O Brasil usa hoje um terço da terra que ocupava há trinta anos para produzir a mesma quantidade de álcool, e a carne brasileira, só para citar alguns exemplos, chega a custar um terço da produzida na Europa. Com tal poderio vieram novos desafios. Em janeiro, a União Européia, o maior importador de carne brasileira em valor (a Rússia importa mais em quantidade), suspendeu a importação do produto brasileiro in natura. Alegou que o Brasil não cumpre com rigor as exigências sanitárias às quais espontaneamente aderiu, em 2000, como condição para exportar carne in natura para a União Européia após a crise da doença da vaca louca na Inglaterra.
A primeira reação brasileira a esse embargo foi estridente: governo e produtores acusaram os europeus de usar barreiras sanitárias para satisfazer interesses protecionistas – em especial, de produtores irlandeses, ferrenhos concorrentes dos brasileiros, que flagraram, com sorrateiras equipes de TV enviadas ao Brasil, as irregularidades sanitárias brasileiras. Finda a gritaria, no entanto, verificou-se algo constrangedor: os europeus tinham razão. No dia 13 de fevereiro, o ministro da Agricultura, Reinhold Stephanes, reconheceu candidamente que vários frigoríficos brasileiros estavam exportando gado não certificado como se fosse adaptado às exigências européias. Pior: desde 2002, o Brasil vinha sendo insistentemente informado da inexistência de relatórios que comprovassem a fiscalização na maioria das 2.681 propriedades que, segundo o controle claramente falho do Ministério da Agricultura, estariam aptas a exportar. Nada fez diante de tanta insistência. Desmoralizado, o governo tentou então aplacar a ira dos europeus. Inicialmente, reduziu o número de fazendas aptas a exportar para 600; num segundo momento, para 200. Não foi suficiente: na semana passada, os europeus anunciaram que apenas 106 fazendas estavam liberadas. Ou seja, 1% das 10.000 que constam do Sisbov, serviço criado pelo governo, em 2002, para selecionar as propriedades que poderiam exportar para a UE.
Podem-se medir as perdas que o Brasil terá com a confusão caso ela perdure: o país deixa de exportar 1 bilhão de dólares até o fim do ano, 30% de tudo o que ganha com a venda de carne ao exterior. Mas essas perdas certamente serão suplantadas pelos benefícios pedagógicos, ainda intangíveis, de tal confusão. Protecionismo à parte, o Brasil só se tornou um grande competidor internacional porque, em vez de reclamar dos importadores (seus clientes, no final das contas), se adequou às regras internacionais. Nos últimos anos, os produtores brasileiros diminuíram os teores de impurezas, como metais pesados e antibióticos, o que melhorou a qualidade da carne, das verduras e das frutas exportadas. Investimentos tecnológicos também permitiram diminuir a acidez da laranja, aumentar a produtividade da cultura de soja e o tempo de engorda dos bois, que, desde 1990, baixou de cinco para dois anos. Nada indica que o país deva adotar outra estratégia agora. Principalmente se considerarmos o fato, nada desprezível, de que os europeus estão corretos. “Essa história chegou a um limite. Os europeus fizeram várias visitas, e os brasileiros empurraram com a barriga, baseados na crença de que eles dependiam da nossa carne e fariam vista grossa para nossos problemas”, afirmou César de Castro Alves, da MB Agro.
Isso significa que os europeus não são protecionistas? Não, muito pelo contrário. A União Européia concede 40 bilhões de euros por ano só em benefícios agrícolas. A França, com seus produtores barulhentos, abocanha a maior parte deles. Também há quem diga que o sistema de rastreamento espelhado no europeu, onde o gado é criado intensivamente, seria inadequado à realidade brasileira, de pecuária extensiva. Nessa realidade, argumentam, seria impossível criar um “RG bovino” com informações atualizadas sobre vacinação e alimentação de cada uma dos 200 milhões de cabeças nos nada menos que 220 milhões de hectares de pastagens no país. Diz Ricardo Cotta, da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil: “Os protecionistas aproveitam politicamente essas falhas. Nós temos de nos preparar. Daqui para a frente, eles vão exigir mais do que a rastreabilidade. Vão exigir o cumprimento de questões trabalhistas e ambientais, por exemplo. Vai ficar cada vez mais difícil exportar”.
É possível que o sistema de rastreamento seja incompatível com a realidade brasileira? Talvez, mas fica uma pergunta: se for esse o caso, por que o Brasil aderiu a ele assim tão facilmente, sem nada propor em troca? Sem uma explicação razoável, é de supor que apostaram no bom e velho jeitinho brasileiro. E que jeitinho! VEJA teve acesso a uma escuta telefônica em poder da Polícia Federal na qual um produtor de Goiás negocia o pagamento de propina para certificar cabeças de gado que não estavam rastreadas. O diálogo se dá com a funcionária de uma das 49 empresas certificadoras credenciadas pelo governo. “Daqui a dois dias te entrego prontinho. Eu consigo, mas no nome de alguém que já está inserido no Sisbov”, diz a funcionária. “É importante termos um sistema de segurança alimentar. É um direito do consumidor. É necessário e correto. Mas não um sistema em que você faz o que quiser, desde que pague”, afirmou José Vicente Ferraz, da AgraFNP.
O agronegócio brasileiro avançou muito na última década. Mas pode melhorar ainda mais. Basta não colocar a culpa no cliente, que tem sempre razão. A União Européia alega que o rastreamento dos bois é uma garantia de que as 200.000 toneladas de carne in natura importadas do Brasil anualmente não passaram por áreas infectadas e estão limpas para chegar à mesa dos europeus. Nada mais justo. O problema não está nos concorrentes, mas nos argumentos que o Brasil lhes entrega de bandeja. Tropeções do governo, desleixo dos órgãos de fiscalização e má-fé de alguns poucos produtores e frigoríficos nacionais prejudicam centenas de pe-cua-ristas nacionais que há anos trabalham para ofertar carne de qualidade por preços competitivos.