Situação no país já era desesperadora antes do terremoto, dizem ex-militares em entrevista ao VNews. Leia abaixo os relatos
Por Renato Ferezim
Devastado por um terremoto na tarde da última terça-feira (12), o Haiti carece de estrutura para atender as vítimas, e as imagens que chegam mostram um país totalmente destruído.
Militares que já passaram pelo país relatam ao VNews que a situação de fome, pobreza e conflitos já era comum há pelo menos 5 anos, quando as primeiras missões internacionais chegaram ao Haiti com o objetivo de manter a paz.
Situação de miséria pelas ruas Desde 2004 no Haiti, a missão de paz brasileira foi destacada após uma série de conflitos entre o governo deposto, de Jean-Bertrand Aristide, e a guerrilha organizada. As primeiras missões internacionais eram compostas por militares americanos e canadenses. A estes militares cabia a missão de imposição de paz.
Com os ataques mais violentos contidos, foi dado início ao segundo estágio da missão, para manter a paz. Para isso, foram enviados soldados de diversas nações filiadas à ONU, inclusive o Brasil.
Ex-militares da região
Paulino de Andrade Junior foi para o Haiti em 9 de dezembro de 2004 e permaneceu no país por 6 meses, como cabo do Exército Brasileiro, lotado no Batalhão de Lorena. Ele e Heverton Ribeiro, seu ex-comandado, relataram ao VNews o dia-a-dia das tropas brasileiras em território haitiano. Confira abaixo em relatos e imagens!
Primeiras impressões
Esquadra brasileira de 2005 Meses antes de embarcar, os militares foram convocados para treinamentos sobre como lidar com multidões e assistiram vídeos com referência à missão de paz no Haiti. “Foi nos passado que a situação era pacífica no relacionamento com a população. Quando desci no aeroporto, vi no olhar das pessoas que algo estava estranho, foi uma recepção hostil”, diz Paulino.
Antes dos militares de Lorena, uma tropa do Rio Grande do Sul havia sido mandada ao país. “Eles não conseguiram manter a paz. As gangues se organizaram e começaram a fazer frente ao Exército, inclusive com equipamento russo, como o fuzil AK47”, diz.
Segundo os ex-militares, algumas ações foram acontecendo para reverter o quadro. Cestas básicas foram enviadas, mas a comida não era suficiente para todos.
Fome
A situação mais desesperadora no Haiti é a fome. Heverton Ribeiro integrou a missão de paz como soldado em 2005 e conta que ficou impressionado com o que viu. “Eles faziam umas bolachas utilizando argila e manteiga. Colocavam no sol para secar e comiam. Certa vez um haitiano me disse que a função da manteiga era não deixar colar a argila no estômago”, diz.
Conseguir água não era problema para a população, mas os soldados recebiam pedidos de comida a cada saída da base. “Para nós nunca faltou café da manhã ou almoço. Ir para a rua, voltar e conseguir comer após ver aquelas cenas era muito difícil. Eu fiquei 3 meses pensando naquilo, às vezes não conseguia comer”, relata Heverton.
Jipes com militares brasileiros passam por ruas de Porto Príncipe, em 2005
Encontrar pessoas que estavam dias sem comer não era difícil. Ele conta que por diversas vezes compraram refrigerante e comida para as crianças com o próprio dinheiro.
Para piorar ainda mais a situação, a agricultura e a pesca não representam uma saída para combater a fome no país. “O solo tem muito calcário e a salinidade do mar é forte. A pesca é muito precária”, diz.
Aproximação com a população
Durante a missão de paz, médicos e dentistas atendem a população. Segundo Paulino, esse tipo de ajuda amenizou o clima hostil com as tropas e a missão seguiu tranquila por alguns meses.
Paulino de Andrade em foto com crianças haitianas, em 2005 Os militares ficaram ainda mais apreensivos quando o comandante dos rebeldes Ravix Remissainthe foi morto pela Polícia Nacional, em abril de 2005. “Eles se desorganizaram, mas os grupos continuavam a resistência”, diz.
Os ataques voltaram quando os militares se preparavam para trocar o contingente. Assim como as tropas da ONU, os rebeldes também mantinham um setor de inteligência, e sabiam o melhor momento para atacar.
Saques
Quando os militares de Lorena chegaram ao país, os saques eram realizados por gangues e outros grupos rebeldes. “Os mercados e lojas funcionavam com um grande esquema de segurança”, diz Paulino. “Era difícil conter todos os atos de violência porque boa parte da população anda armada. Não há lei, mata-se por qualquer coisa”, explica Heverton.
Conflito contido pelos militares brasileiros em 2005, após um saque a uma loja de eletrônicos
A foto acima foi tirada por Paulino após uma troca de tiros. “Estavam saqueando uma loja de eletrônicos e a viatura estava passando. Durante a troca de tiros, um dos saqueadores morreu e um inocente foi ferido com um tiro de raspão na perna”, conta.
Conflitos
Para Paulino, uma das piores batalhas que enfrentou aconteceu na cidade de Thomazeau. Foi lá que o Exército rebelado do Haiti se organizou, inclusive bloqueando as 3 entradas da cidade. “Em 2005 foram enviadas companhias do Brasil, Nepal e Peru para Thomazeau. Fizemos uma manobra chamada “martelo e bigorna”, onde o exército do Peru empurrava os rebeldes e o do Brasil foi pelo outro lado. Foram 2 dias de troca de tiros até encurralarmos”, conta. Segundo o ex-militar, um soldado do Nepal morreu nesta operação, um cabo do batalhão de Caçapava e um tenente de Pirassununga se feriram.
Militares atuam no controle de conflito em Porto Príncipe
Outra situação descrita pelos entrevistados foi a ocupação do forte, o ponto mais alto de uma favela em Porto Príncipe. “O local é estratégico, dalí é possível ver toda a região, quem entra e quem sai da favela. Foram 15 dias de inteligência e mais 5 dias de conflito para a ocupação. Em dado momento, as gangues atiravam em inocentes e mandavam as pessoas seguirem em nossa direção. Enquanto nós atendíamos as vítimas, eles aproveitavam para se reorganizar e praticar mais crimes”, relata Heverton. Após a tomada do forte, que é o antigo prédio de uma fábrica de gelo, diversas apreensões foram realizadas nas imediações.
A “Fábrica de Gelo” é um ponto forte que fica em Cité Militaire, antigo bairro militar no centro de Porto Príncipe. É ocupado por um efetivo que varia entre 20 e 30 fuzileiros da Marinha
É grande o acervo de fotos dos militares brasileiros trazido do Haiti, e a motivação do uso da câmera fotográfica não era apenas a curiosidade. Com os conflitos e o aumento do número de mortes, a orientação era registrar tudo. “Todo cabo era obrigado a andar com uma câmera digital, que era particular, era nossa. As fotos eram anexadas em relatórios para eventual uso em julgamentos”, explica Paulino.
Com o fracasso da missão anterior, os militares começaram a fazer novamente a imposição da paz, e segundo eles, muitos dos relatórios ocultavam esta tarefa. “Nós fomos destacados apenas para manter a paz, não para impor. Nesta época 9 brasileiros foram feridos”, diz o ex-soldado.
Polícia Nacional
Desde a extinção das forças armadas do Haiti, quem cuida da segurança do país é a Polícia Nacional. Formada por um grande número de homens, eles são responsáveis pela segurança nas ruas e em outros locais públicos.
Quando as forças de segurança realizam prisões, os presos são encaminhados para a Polícia Nacional. “O que acontecia com quem era detido após entregarmos para a Polícia, nós nunca sabíamos”, conta Heverton.
Ainda segundo os entrevistados, o tráfico de drogas e de armas é grande no país. O combate da polícia em relação a estes crimes quase não existe. “Com qualquer quantia se compra um policial. Apesar disso, eles ainda acreditam que a ordem será reestabelecida no país”, diz.
Apesar de ser a única força militar mantida pelo governo haitiano, a segurança do Premier e de outros chefes de estado que passam pelo país é realizada por forças norte-americanas.
“Quando vi imagens do terremoto, chorei bastante”
As imagens exibidas pela TV são fortes e evidenciam a fragilidade de um país sem estrutura, agora devastado por causas naturais.
A busca por sobreviventes do terremoto mobilizou civis e militares Dos amigos que Heverton fez no Haiti, hoje ele ainda possui contato com os tradutores, que são cidadãos haitianos. “Ainda não consegui falar com eles, mas acredito que estejam bem”, diz confiante.
Os militares enviados para a missão de paz tem direito a 20 dias de férias. Heverton foi para o país vizinho, a República Dominicana. “Fiz amigos por lá, está difícil a comunicação. Eles contam que as redes de comunicação estão sendo utilizadas pelas equipes de socorro”, diz.
O desastre natural trouxe de volta as lembranças do período vivido no país. “Quando vi imagens do terremoto, chorei bastante. Pegamos amor pelo lugar. Apesar dos conflitos, senti que quando saímos deixamos uma sementinha plantada e que aquilo traria paz, é triste ver o que aconteceu agora”, emociona-se.