GEORGIA FRANCO DE SOUZA A
mestre torrefadora e barista Georgia Franco de Souza fala da excelência dos
cafés especiais, que vêm conquistando adeptos no mundo
todo
Conversar com a simpática paranaense Georgia Franco de Souza é um
programa para lá de agradável. Sobretudo quando o assunto envereda para os
cafezais e os frutos com os quais se prepara a mais popular das bebidas
nacionais. Pode-se discorrer por três horas sobre as curiosidades e
particularidades do universo do café, sem deixar o papo esmorecer. Mestre
torrefadora, barista e consultora de cafés especiais, fala com a confiança
natural de quem sabe o que diz e com o entusiasmo de quem gosta do que faz.
Georgia entrou para o ramo de cafés por acaso, há apenas quatro anos. Trabalhava
em informática e, à beira de um ataque de nervos, foi aconselhada pelo médico a
tirar férias. Obedeceu, sem imaginar que dava o primeiro passo para mudar de
vida. Deixou em casa o marido e os filhos e matriculou-se num curso de
culinária, na França. A idéia era espairecer. Logo que voltou ao Brasil, soube
que o café produzido por um amigo fazendeiro havia conquistado um prêmio
internacional e teve a idéia de trabalhar com ele. Ofereceu-se para cuidar da
exportação do produto. Investigou os hábitos de consumo, as preferências e
gostos na Itália, no Leste Europeu e na Escandinávia. Participou de feiras
internacionais de café, workshops e degustações. E, por fim, estudou comércio
exterior para entender melhor o mercado de cafés e suas tendências. Mergulhou
tão profundamente no tema que se formou barista, em 2001, depois de concluir um
curso ministrado por dois profissionais estrangeiros, que visitavam o país por
intermédio do programa nacional Cafés do Brasil, em São Paulo. Com o apoio do
marido, Georgia abriu a Lucca Cafés Especiais, em Curitiba, com planos de
transformar o negócio numa franquia. Hoje a rede tem dez cafeterias na capital
paranaense, além da matriz e de uma loja recém-aberta na livraria Mille Foglie,
no bairro paulistano dos Jardins. Atualmente, seu trabalho concentra-se em
torrar os grãos e preparar o blend de expresso que leva sua assinatura, ou seja,
selecionar os diferentes grãos crus que serão torrados e depois combinados. Além
de abastecer a própria rede, Georgia fornece café a diversos restaurantes de
Curitiba. Também promove degustações e coordena os cursos de formação dos
baristas das lojas franqueadas. A grande especialista ensina que o bom expresso
é aquele que deixa uma boa lembrança, uma sensação prolongada e prazerosa sem
ser amarga. Mas, para conseguir tal resultado, é necessário usar matéria-prima
de boa qualidade, torrada corretamente – além de preparar a bebida com esmero, é
claro. Seus principais truques e segredos são alguns dos temas tratados na
entrevista que concedeu a Gula.
O que caracteriza o
café especial? Segundo a definição da Associação Americana de Cafés
Especiais, formada por compradores do produto, adotada no Brasil, é aquele que
não apresenta defeitos primários, ou seja, grãos imaturos ou superamadurecidos,
pedras e pedaços de pau. Além disso, o café especial deve ter uma
particularidade que o diferencie dos demais, como um retrogosto de floral ou
cítrico, por exemplo. Quanto mais acentuada essa característica, maior o valor
do produto.
Como é feita sua certificação no Brasil? É
um processo conduzido em etapas pela Associação Brasileira de Cafés Especiais.
Envolve uma auditoria minuciosa da lavoura ao produto final, em que são
considerados aspectos agrícolas, sociais, ambientais e até uma “prova” feita com
o produtor. Depois disso, o café passa por avaliação às cegas. Uma amostra do
lote em questão é analisada por três provadores independentes e, se receber nota
superior a 8, o lote é numerado e pode ser vendido no mercado externo na forma
de café especial. Um selo, no rótulo do produto final, atesta o café torrado a
partir de grãos crus certificados. Quantos cafés
brasileiros já possuem esse selo? Talvez quatro ou
cinco. É como se fossem os “grand crus” do café internacionalmente classificado
como gourmet. O problema é que aqui encontramos cafés que se autodenominam
gourmet, mas não têm o selo oficial. Isso é complicado. Além dos cuidados de que
já falamos, o café gourmet tem prazo de validade menor que o regular. Envolve
níveis de exigência e excelência com os quais o consumidor não está
familiarizado. Se já existem cafés tão
particulares no Brasil, por que não têm o mesmo prestígio do produto colombiano,
principalmente no mercado americano? A Colômbia não
exporta nenhum grão que não seja de qualidade superior. Isso não significa que
produza melhor café que o Brasil. Aqui, o processo foi exatamente o contrário.
Até 1990, enquanto vigorou o controle do Instituto Brasileiro do Café (IBC),
optamos por exportar quantidade e não cuidamos da qualidade. O café colombiano
pode ser excelente matéria-prima para o café filtrado. Mas a tendência moderna é
o expresso, para o qual ele não é ideal, pois contém elevada acidez. Por outro
lado, o sucesso do produto colombiano nos Estados Unidos se deve ao fato de o
governo americano ter destinado milhões de dólares à cafeicultura do país, como
parte de um programa de combate ao tráfico de drogas. O consumo de café orgânico já é significativo? Para nós, defensores do café especial, o café orgânico não tem grande
importância. O que conta é ser arábica, de qualidade, com particularidades de
sabor e aroma. O café orgânico está mais associado à filosofia de proteção ao
meio ambiente. Países como o Japão, que é extremamente exigente, querem não só
um café orgânico, mas uma bebida excelente. E isso implica custo de produção e
preço final muito altos.
Quantas variedades de
café existem? Há pelo menos 25 espécies importantes, mas apenas duas
delas são as mais conhecidas: arábica e robusta. Entre esses dois tipos existem
grandes diferenças. Para começar, o arábica, mais valorizado, é uma planta
complexa (tem 44 cromossomos, contra os 22 do robusta) e, por isso, exige
condições climáticas muito propícias ao plantio. Só se dá bem em altitudes
elevadas, acima dos 800 metros, com boa quantidade de chuva e de insolação. Mais
resistente, o robusta adapta-se facilmente às regiões quentes e de altitudes
menores. Os custos da produção são reduzidos, porém o resultado é diverso. O
robusta apresenta o dobro de cafeína, mais amargor, e pouca acidez, o que
explica a preferência dos gourmets pelo arábica.
Qual é o blend
ideal para o expresso? A base precisa ser um café doce; a mistura deve
conter alguns grãos mais ácidos, provenientes de altitudes elevadas. O
equilíbrio é crucial. A acidez atribui vivacidade e emoção à bebida – não estou
falando do gosto amargo do café que foi colhido antes de amadurecer. O arábica
brasileiro fornece boa base, pois não é ácido. Por isso costuma ser muito
apreciado e usado pelos italianos, os maiores entusiastas de expresso do mundo.
Temperam-no com grãos ácidos cultivados na América Central e África.
Como identificar um bom expresso? O equilíbrio é importante.
Não pode ser ácido demais, nem muito doce e não deve ter um final amargo. A
qualidade está na harmonia entre aroma, corpo, acidez, sabor e retrogosto.
A torra influencia muito a qualidade do café? Bastante.
Libera substâncias e gases, melhorando o gosto da bebida. Além disso, a torra
controla a acidez natural do grão. Quanto mais clara ela se mostra, mais realça
o aroma. A torra escura reduz a acidez, porém confere o que chamamos de
bittersweet, ou seja, sabor doce e amargo ao mesmo tempo. Os diferentes tipos de
grão que compõem um blend são torrados separadamente e misturados depois.
De que forma a moagem interfere no
sabor? Ela tem relação direta com o aroma. Aquela
fragrância característica do café é intensa só até 15 minutos após a moagem.
Depois disso, dissipa-se no ar. O tempo também reduz a cremosidade e o sabor. O
ideal, em casa, seria moer o café no momento do preparo. Já os baristas devem
moer conforme a demanda, para garantir o frescor. Qual é a região brasileira que produz os melhores
cafés? Em termos de premiação, o sul de Minas é a
região que mais se destaca atualmente. Mas não significa que seja a única. Um
professor português, do qual fui aluna, dizia que cafés de excelente qualidade
existem no mundo todo, o difícil é ter acesso a eles. Qual é a
receita do bom expresso? Tecnicamente é a seguinte:
30 mililitros de água pura, 7 gramas de pó, submetidos a uma temperatura de 90
graus centígrados e uma pressão de 9 atmosferas. O equipamento deve manter a
temperatura da água e a pressão constantes. E é essencial contar com mãos bem
treinadas.
Por que os especialistas preferem o
café curto? Porque o consideram o filet mignon do café. É como se fosse a
primeira prensa da azeitona para fazer o óleo de oliva. Um café curto tem a
metade da água do expresso, ou seja, de 15 a 20 mililitros, e, por isso, o tempo
de contato entre o pó e a água é menor, o que reduz a quantidade de cafeína. Mas
a principal vantagem é o sabor, mais concentrado.
Qual é o tamanho-padrão de xícara para o expresso e para o
cappuccino? Mais do que a xícara, o que importa no expresso é o volume
máximo de 30 mililitros. A partir daí a bebida começa a apresentar aroma e sabor
desagradáveis. No caso do cappuccino, a quantidade de café tem de ser
proporcional à do leite e da espuma. Se a xícara for grande, os 30 mililitros de
expresso vão ser insuficientes quando misturados ao leite.
Qual é a melhor
maneira de conservar o café? Quanto menor o contato
com o ar, menor sua oxidação. É importante mantê-lo abrigado da luz, em local
fresco e seco. Pode-se colocar o café na geladeira, desde que esteja dentro de
um frasco bem vedado. No caso do produto fechado, existem formas de embalar,
como a que utiliza injeção de gás nitrogênio, que favorece a
conservação.
Há diferença entre
o café em sachê e o em pó? O sachê serve para ambientes em que não haja
condições de preparo profissional. Nunca vai dar um café nota 10 como também não
dará um nota 3. Mas é muito prático. Afinal, a vida moderna nos obriga a ser
versáteis.
Revista Gula –
Matéria publicada na edição 133. Novembro / 2003.