Dinâmica da economia do café influenciou tráfico de escravos

Por: Agência USP

 






As escrituras analisadas tratavam de transações envolvendo escravos

Uma pesquisa desenvolvida na Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade (FEA) da USP investigou as negociações de cativos na província de São Paulo durante as décadas finais do escravismo brasileiro (1860, 1870 e 1880), período em que também se expandia a agricultura cafeeira. Além de variações ocorridas ao longo do tempo, foi observado o contraste entre o comércio escravo em diferentes cidades paulistas. “Isso porque em cada cidade selecionada para estudo, a cafeicultura vivia um momento diferente de seu desenvolvimento”, explica o autor do trabalho, o professor José Flavio Motta.


Em sua tese de livre docência, que deu origem ao livro Escravos daqui, dali e de mais além (Alameda Editorial/FAPESP, 2012), Motta investigou o comércio de escravos daquele período em diferentes localidades da província paulista: Piracicaba, no Oeste Velho; Casa Branca, no Oeste Novo; e Areias e Guaratinguetá, ambas no Vale do Paraíba. A análise envolveu tanto as características dos negócios, como dos negociantes e, em especial, dos negociados.


O estudo baseou-se em documentos cartoriais encontrados nas localidades estudadas, em especial escrituras, que tratavam de transações envolvendo escravos. “São pouco mais de 1.600 escrituras, em que foram negociados pouco menos de 4.000 escravos”, conta o pesquisador. As informações contidas nos documentos foram transcritas para um software que permite cruzar os dados de diferentes fontes.


Periodização do tráfico
Entre as peculiaridades da pesquisa, inclui-se uma periodização do comércio interno de cativos algo diferente das propostas tradicionais da historiografia. “ Foi possível precisar melhor a periodização do tráfico”, comenta Motta.


Os anos 1870, apontados tradicionalmente como um período em que o tráfico, após certa moderação em seu ritmo no decênio anterior, voltava a crescer, foram um pouco melhor compreendidos na pesquisa. Marcados pelas discussões acerca da Lei do Ventre Livre, de setembro de 1871, os primeiros anos da década diferenciaram-se do restante. “O início dos anos 1870 é um período em que o tráfico se ressente muito das incertezas com relação à própria continuidade ou não da escravidão”, conta o pesquisador. De fato, ele explica, a grande expansão do tráfico de escravos naquela década se deu a partir de 1874.


Por sua vez, foi positiva a inclusão na análise da década de 1880, a qual foi marcada por importantes mudanças no comércio interno de escravos no Brasil. “Naqueles anos, no que diz respeito às principais províncias cafeeiras, aí incluída a de São Paulo, acaba praticamente o tráfico interprovincial”, relata Motta.


No começo daquele período ocorrera a fixação de elevados impostos incidentes sobre a entrada de escravos de outras províncias, tornando proibitivo o tráfico interprovincial. “À medida que São Paulo teve que se limitar ao comércio de cativos interno, precisou-se substituir os escravos que vinham de outros locais pelo mercado que havia em seu território”, ele explica. “Da mesma forma como o tráfico interno acabou substituindo o tráfico atlântico de escravos, extinto na metade do século 19, nos anos 1880, as áreas mais antigas de São Paulo substituíram as outras províncias como fornecedoras de escravos”, completa. Este foi, portanto, ao menos até meados do decênio, um período de grande dinamismo no comércio de escravos da própria região.


Influências da economia cafeeira
“A dinâmica do tráfico acaba variando muito de acordo com a própria dinâmica da cafeicultura nas diferentes localidades”, diz Motta. Apesar de não ocupar o papel de responsáveis exclusivos pelas distinções entre as variadas cidades da província, os avanços e recuos da lavoura cafeeira eram elementos condicionantes muito importantes para as economias desses locais.



Livro analisa as décadas finais do escravismo brasileiro (1860, 1870 e 1880)

Nos anos 1870, período em que o tráfico interprovincial encontrava-se bastante intenso, a cidade de Areias, no Vale do Paraíba, por exemplo, era um importante ponto de chegada de escravos, em especial pela rota marítima e costeira. Com a chegada da década de 1880, quando a região valeparaibana passava a vivenciar um processo de decadência econômica, Areias tornou-se um ponto principalmente de saída de escravos, vendendo-os para regiões mais dinâmicas, como Casa Branca, que se mantinha como ponto de chegada de cativos.


Na tese, foi possível fazer um levantamento da série de preços e suas oscilações que acompanham a periodização proposta por Motta. Como a lavoura passa por estágios diferenciados em cada localidade, seus impactos chegam até mesmo à qualidade da escravaria local, influenciando em preços, distribuições etária e sexual, etc. “Localidades com maior poder de compra, também compunham escravarias de melhor qualidade”, exemplifica o professor.


É interessante observar que, mesmo com o fim iminente da escravidão e com a busca gradativa por nova força de trabalho, essa mão de obra continuava sendo utilizada e negociada. “Encontrei escrituras até o segundo semestre de 1887. Estava-se comprando e vendendo escravos até as vésperas, poucos meses antes do 13 de maio de 1888, [data da abolição da escravatura]”, conta Motta.


O protagonismo dos escravos
“Apesar de o comércio criar problemas para a manutenção das relações de família entre os escravos, em muitos casos foi possível manter essas relações”, relata o pesquisador. A partir do fim dos anos 1860, já existia, inclusive, uma legislação que proibia a separação pela venda de cônjuges e pais e filhos até certa idade. E, de fato, em muitos casos os próprios escravos, ao se esforçarem para interferir nas negociações, eram responsáveis pela manutenção de suas relações de família.


Motta cita algumas situações curiosas que encontrou nas escrituras analisadas, como o caso de uma venda desfeita, pois a escrava negociada se negava a trabalhar com o novo proprietário. Outro exemplo é o de uma escrava que tentava contestar a própria venda por possuir dois nomes.


“É possível identificar certo protagonismo dos escravos, que tentavam influir e moldar seu destino”, resume o professor. Estas tentativas, Motta pondera, sempre estiveram presentes. No entanto, à medida que se aproximava o fim da escravidão, o ambiente tornava-se mais favorável às demandas dos cativos.


Imagens cedidas pelo pesquisador



Mais informações: e-mail jflaviom@usp.br, com José Flávio Motta

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