A extensa lista de produtos contrabandeados que preocupa autoridades e iniciativa privada em qualquer lugar do mundo conta com um novo item. A Fundação Procafé e o Conselho Nacional do Café (CNC) informam que é crescente a exportação ilegal de sementes da cultura do Brasil para nações produtoras “concorrentes”, uma prática que começa a ser encarada como uma ameaça à atividade no país.
Esse comércio ilegal normalmente envolve variedades que levaram anos para serem desenvolvidas por institutos de pesquisa brasileiros e apresentam características como resistência a pragas ou maior produtividade. A ação criminosa não só desrespeita a lei que protege a propriedade dessas cultivares como não remunera seus criadores por seu trabalho. De quebra, pode ser considerada um fator de risco fitossanitário.
Uma parte do contrabando é creditada a representantes do segmento de outros países em visita ao Brasil inclusive para participar de programas de cooperação, diz André Luiz Garcia, engenheiro agrônomo e pesquisador da Fundação Procafé. Como “lembrança” de sua jornada, e no afã de plantar o mais rapidamente possível a variedade desejada em seu país, esses turistas carregam as sementes na bagagem quando voltam de onde vieram.
E, segundo Garcia, não é difícil encontrar quem venda ilegalmente essas sementes, que, “inocentemente”, saem do país sem o devido Registro Nacional de Sementes e Mudas (RENASEM) do Ministério da Agricultura. Menos inocente é a exportação das sementes brasileiras como se fossem café em grão para consumo.
Nesse caso, os criminosos são produtores de sementes que não querem cumprir os trâmites necessários para a obtenção dos certificados de fitossanidade de origem e viabilidade. Um dos problemas para desmascarar esses contrabandistas é que não existem marcadores moleculares que indiquem exatamente qual variedade está deixando o país.
Em 2013, segundo o pesquisador da Procafé, estima-se que foram exportadas “por baixo do pano” cerca de 30 toneladas de sementes de café do Brasil, o equivalente a 120 milhões de sementes. Esse volume é suficiente para cultivar 30 mil hectares – e, a partir de uma produtividade de 25 sacas por hectare, pode gerar 750 mil sacas de café. No mercado formal, um quilo de sementes vale de R$ 25 a R$ 30, segundo Garcia.
Segundo um consultor que trabalha com projetos nas Américas Central e do Sul, o Equador adquiriu, no fim do ano passado, cerca de 80 toneladas de sementes para um projeto de renovação de área no país.
Sem entrar no mérito da legalidade desse comércio, por não ter informação sobre cada transação, o consultor confirmou, por exemplo, que diversos países da América Central têm adquirido variedades brasileiras de café resistentes à ferrugem, doença que provoca perdas significativas em lavouras de países da região, que é reconhecida globalmente como uma fornecedora de café arábica de boa qualidade.
Silas Brasileiro, presidente do CNC, diz que a entidade fez um alerta sobre a prática ilegal na reunião anual da Organização Internacional do Café (OIC) realizada no mês passado, em Londres. O tema deverá ser debatido novamente em setembro, em outro encontro promovido pela entidade. De acordo com Brasileiro, as sementes contrabandeadas têm como destinos principais países da América Central, Equador e Peru.
“Não é honesto os países utilizarem esse meio de contrabando”, afirma. CNC e Procafé sustentam que o Brasil já tem dificuldade em competir com esses países, que ainda têm mão de obra abundante e barata, e que um dos trunfos brasileiros é justamente a tecnologia. Se nada for feito, no futuro a concorrência brasileira poderá contar com as mesmas certificações internacionais que diferenciam o nosso café.
O Ministério da Agricultura informa que não foi notificado oficialmente sobre o assunto, mas garante que a fiscalização de viveiros de produção de mudas de café é muito atuante nos Estados produtores de café. Em nota, diz que pode “estar ocorrendo a exportação de café para consumo que, quando chega ao país de destino, é utilizado como semente. Nesse caso, compete ao país importador a responsabilidade pela fiscalização dos materiais que são importados em seu território”.
“Se o país importador não exige o certificado, o exportador brasileiro não é impedido de exportar grãos sem o certificado. Não vejo como fiscalizar tal ação”, afirma André Peralta da Silva, coordenador de sementes e mudas do Departamento de Fiscalização de Insumos Agrícolas do ministério. Segundo ele, um número cada vez menor de países exige certificado fitossanitário para grãos de café importados.
O Valor procurou a Anacafe, associação da Guatemala que representa a cafeicultura na América Central, para comentar o assunto, mas foi informado que não havia porta-vozes disponíveis. Por outro lado, o Instituto Agronômico de Campinas (IAC), que desenvolveu a maior parte das variedades de café arábica em uso comercial no Brasil, informou que está fazendo adequações para rastrear seus sistemas de produção de sementes e transferência de tecnologia para coibir práticas ilegais.
Conforme o pesquisador Gerson Silva Giomo, o IAC tem priorizado a produção de “sementes genéticas” de café, obtidas a partir de melhoramento. Nesse caso, as sementes de novas cultivares somente são transferidas ao setor produtivo por meio de um termo de cooperação técnica que estabelece um elo entre a instituição e o usuário das cultivares. Ele ressalva que o instituto não tem controle sobre cultivares lançadas antes dessa política, que são de domínio público.
Outro ponto a ser considerado, diz Garcia, da Procafé, é que uma instituição chamada “World Coffee Research”, financiada por indústrias de café de diversos países, está propagando o intercâmbio de variedades entre nações. Em seu site, a entidade informa que sua missão é promover a ampliação do fornecimento de café arábica de forma sustentável, por meio de pesquisa agrícola e “desenvolvimento colaborativo”. Procurada, a WCR não respondeu aos pedidos de entrevista da reportagem (Valor, 17/4/14)