Certificação de origem: o caso do café

Por: por Maria Celia Martins De Souza


Tentativas informais de associar a qualidade à origem de produtos alimentares e as iniciativas de regulamentá-las remontam à antiguidade. Nas cidades-estados gregas, o controle sobre a origem do terreno dos vinhedos de excelência reconhecida era feito com a identificação em ânforas próprias, inscritas com o nome da cidade, o nome do verificador e o nome do produtor ou seu símbolo.
A definição moderna de produtos de origem, além do território, incorpora as variedades, o savoir faire e os resultados comerciais, e não mais se restringe só aos vinhos, já que ela també se aplica a laticínios e carnes, entre outros produtos alimentares. As indicações geográficas são fruto de um processo histórico de organização e construção social de regras para definir e controlar direitos de propriedade intelectual, de modo a evitar conflitos de interesses entre direitos individuais e coletivos, como, por exemplo, a prevenção de fraudes.

As iniciativas de associar origem e qualidade também são antigas no setor cafeeiro. Tiveram início praticamente por força do comércio – como a origem dos grãos, fazendas, regiões ou portos de embarque – e da necessidade de definir padrões para a troca de mercadorias sujeitas a inúmeras especulações e variações de qualidade em mercados distantes.


Mais recentemente, origem acabou se transformando em estratégia de diferenciação de cafés especiais, com iniciativas individuais de famílias e fazendas mais tradicionais ou de empresas de pequeno porte. Paradoxalmente, os padrões de qualidade da classificação oficial de café, que poderiam conter parâmetros que estimulassem a qualidade associada ao território, não consideram a origem dos plantios.


As tentativas formais de indicações geográficas para valorizar a qualidade associada à origem dos cafezais são ainda muito recentes, não só no mundo como também no Brasil. Assim, entre os fatos relevantes de 2005 associados à identificação da origem do café brasileiro, destaca-se a indicação de procedência Região do Cerrado Mineiro, obtida pelo Conselho das Associações dos Cafeicultores do Cerrado (CACCER), assim como a iniciativa da Associação Brasileira da Indústria de Café (ABIC) e da Hediard, uma tradicional delicatessen francesa, como parte das comemorações do Ano do Brasil na França.


As indicações geográficas


Num dos protocolos da Organização Mundial do Comércio (OMC), criada em 1994 em Marrakesh, há um acordo sobre os direitos de propriedade intelectual relativos ao comércio, o TRIPS – Trade Related Aspects of Intellectual Property Rights, que reconhece a legitimidade da proteção de indicações geográficas. Ou, na definição oficial, “Entende-se por indicação geográfica uma indicação que serve para identificar um produto como sendo originário do território de um membro, ou de uma região ou localidade deste território, no caso em que uma qualidade, reputação ou outra característica determinada do produto possa ser atribuída essencialmente a esta origem geográfica”1. Cerca de trinta países se beneficiam com o uso de indicações geográficas.


Algumas regiões brasileiras têm conseguido se promover por meio da produção e certificação de produtos típicos, de locais específicos, com características peculiares. Os vinhos finos do Vale dos Vinhedos, na Serra Gaúcha, além das cachaças e da Certificação de Origem e Qualidade dos cafés de Minas Gerais são apenas alguns exemplos.


As tentativas formais de valorizar a qualidade associada à origem, no entanto, são ainda muito recentes no Brasil. As regras de proteção intelectual de indicações geográficas no País ainda não completaram uma década, enquanto a França comemorou em 2005 o centenário da primeira lei que instaurou as bases do conceito de origem, e os setenta anos de criação das AOCs – Apellations dOrigine Controlées, ou as Denominações de Origem Controlada.


A Lei no 9.279/96 estabelece duas modalidades de indicações geográficas: a Indicação de Procedência e a Denominação de Origem. Indicação de procedência é considerada o nome geográfico de um país, cidade da região ou da localidade do seu território, que tenha se tornado conhecido como centro de extração, produção ou fabricação de determinado produto ou prestação de serviço. Na denominação de origem, o nome geográfico designa produto ou serviço cujas características ou qualidades se devam exclusiva ou essencialmente ao meio geográfico, incluídos aí os fatores naturais e humanos.


As indicações geográficas estão entre as soluções que se apresentam para ampliar e estabilizar as margens, principalmente, no caso da produção em pequena escala em regiões delimitadas. O conceito de indicação geográfica permite associar a qualidade do produto à região onde foi produzido, quando se consideram as indicações de procedência, e/ou às tradições culturais, quando se levam em conta as denominações de origem.


Algumas iniciativas em 2005


A primeira indicação geográfica formal para o café brasileiro, que estava em tramitação desde 1999, foi concedida ao CACCER, em junho de 2005. O registro de indicações geográficas do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI), o órgão oficial responsável, vinculado ao Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC), dá ao seu titular – o CACCER – o reconhecimento oficial da indicação de procedência da denominação Região do Cerrado Mineiro.


A região tinha sido demarcada oficialmente pelo governo estadual, em 1996, com o Decreto no 38.559 que instituiu regras para emissão do Certicafé, o certificado de origem para os cafés de Minas Gerais, e delimitou quatro regiões produtoras: Cerrado, Sul de Minas, Jequitinhonha e Montanhas de Minas. A região do Cerrado “compreende as áreas geográficas delimitadas pelos paralelos 16º 37 a 20º 13 de latitude e 45º 20 a 49º 48 de longitude, abrangendo as regiões do Triângulo Mineiro, Alto Paranaíba e parte do Alto São Francisco e do Noroeste. Caracteriza-se por áreas de altiplano, com altitude de 820 a 1100 m, clima ameno, sujeitas a geadas de baixa intensidade e com possibilidade de produção de bebida fina, de corpo mais acentuado”.


A indicação de procedência obtida pelo CACCER avançou nesta região não só graças à alta qualidade do café produzido, mas também pela união e complementaridade dos esforços e pelo forte poder de organização dos cafeicultores do cerrado mineiro. Curiosamente, a indicação de procedência foi concedida a uma região que não pode ser considerada tradicional na cultura, uma vez que a ocupação cafeeira no Cerrado, iniciada em meados dos anos 1970, está entre as mais recentes no país. Além disso, a estratégia que visa adicionar valor à qualidade de produções pequenas foi implementada numa região onde predominam as grandes propriedades e a produção em larga escala.


Outra iniciativa relevante quanto à associação entre qualidade e origem dos cafés brasileiros em 2005 diz respeito ao Ano do Brasil na França, país que anualmente escolhe outro para promover e estreitar relações econômicas, políticas e culturais. Entre as diversas homenagens, a tradicional delicatessen francesa Hediard, com apoio da ABIC, lançou uma caixa comemorativa exclusiva com quatro embalagens de 250 g de cafés brasileiros, num convite à descoberta do Brasil através de suas regiões produtoras da bebida. Os cafés – arábicas torrados, moídos e embalados a vácuo no país – foram rigorosamente selecionados e obtiveram um selo do programa de qualidade da ABIC, para assegurar o respeito aos critérios de escolha da Hediard.


As regiões escolhidas foram Bahia, Minas Gerais, São Paulo e Paraná. Nas embalagens, muito bem cuidadas, o único símbolo padronizado que associa o produto à origem, a exemplo de Juan Valdez para o Café da Colômbia, é o do Cafés do Brasil. Três das embalagens – de Minas Gerais, São Paulo e Paraná – têm a imagem específica para café, enquanto uma – a da Bahia – tem a imagem genérica dos produtos brasileiros destinados à exportação. Com exceção do café de São Paulo, que cita o município de São Sebastião da Grama, não há qualquer menção, tanto nas embalagens quanto no folheto explicativo que acompanha a caixa, a informações mais detalhadas sobre as fazendas, municípios ou regiões produtoras dos estados.


A falta de regras específicas para promoção da origem, como padrões na classificação oficial, e de ações coordenadas e complementares para sua valorização, reflete a importância da definição dos direitos de propriedade. O pequeno apoio ao fortalecimento das indicações geográficas e de objetividade na exposição da origem aos consumidores, principalmente quando a qualidade está associada ao território, pode se constituir em fonte de perda de valor.


Apesar dos esforços que vêm sendo empreendidos para valorizar a qualidade associada à origem dos produtos agropecuários, ainda resta muito a ser feito, sobretudo na organização e mobilização dos atores sociais nos territórios. Também são escassos os instrumentos para fortalecer políticas em diferentes esferas – nacional, regional e municipal – de apoio a valores culturais e tradições locais, que promovam o avanço deste mecanismo de diferenciação.


No caso específico do café, várias ações vêm sendo empreendidas, porém nem sempre com a complementaridade necessária para evitar a duplicação de esforços e o desperdício de recursos. As iniciativas da agroindústria cafeeira e do governo brasileiro para divulgar a origem de nossos cafés, não só no mercado externo, mas também dentro do próprio País, ainda carecem de maior coordenação para disseminar os benefícios potenciais das indicações geográficas.


por Maria Celia Martins De Souza*
* Maria Celia Martins De Souza (mcmsouza@iea.sp.gov.br) é pesquisadora do Instituto de Economia Agrícola (IEA).

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