O Brasil se lança como produtor de grãos finos e conquista fatia do mercado que mais cresce no mundo
PATRÍCIA CANÇADO
O casarão da fazenda continua praticamente o mesmo de 1870, quando foi construído pelo trisavô do atual dono. O terreiro onde o café é secado nunca recebeu uma camada nova de asfalto. Os frutos ainda são descascados por uma \”machina\”. Na Fazenda Pessegueiro, interior de São Paulo, tudo parece parado no tempo. Ou melhor, quase tudo. Desde o fim de 2003, os donos decidiram montar uma pequena torrefação dentro da fazenda. A parte mais nobre da safra agora sai de lá torrada, moída e embalada com a marca Pessegueiro. É vendida na Casa Santa Luzia, um dos empórios mais sofisticados de São Paulo, e entregue em 40 bares, cafés e restaurantes da capital paulista. O quilo sai, em média, por R$ 25, pelo menos três vezes mais caro que um café comercial. É um caso raro no mercado brasileiro, mas também o começo de uma arrancada saborosa que começa nos cafezais e termina em supermercados, cafeterias e restaurantes do país. Os brasileiros começaram a provar e a comprar marcas de qualidade, a freqüentar cafeterias sofisticadas e a participar de cursos de degustação. É um novo ciclo do café que se inicia.
A transformação começa nas fazendas. O país, apesar de maior produtor e segundo maior consumidor de café do mundo, vende o grão como uma mercadoria qualquer, por um preço baixo. A indústria que o torra, sobretudo a estrangeira, é que se apropria dos ganhos. Pior: o país ainda bebe a parte menos nobre de sua produção. Mas isso está começando a mudar. Em 2005, Clovis Gonçalves Dias, dono da Pessegueiro, pretende aderir à BSCA, sigla em inglês para a Associação Brasileira dos Produtores de Cafés Especiais, que reúne a elite da cafeicultura nacional. Além dele, outros 50 produtores aguardam na fila. A instituição tem 52 associados. Se os interessados forem aprovados, a BSCA vai dobrar de tamanho. \”O primeiro critério para entrar é a qualidade. Depois, é preciso passar por quesitos de responsabilidade ambiental\”, explica Marcelo Vieira, um dos fundadores da BSCA.
A associação reúne uma turma de produtores de vanguarda. Os atuais membros representam 0,02% dos produtores nacionais e 2,5% da produção. São empresários que estão introduzindo no mercado local uma mentalidade completamente nova. Em vez de vender o grão verde em quantidade, eles prezam pela qualidade e acabam vendendo o produto por um preço melhor. Em geral, avançam algumas etapas na cadeia. Torram o próprio café, vendem sem intermediários para lojas finas no exterior e no Brasil ou até abrem a própria rede de cafeterias. Como qualidade é o que garante dinheiro, o grão passa a ser cultivado e selecionado com cuidados especiais. \”Quanto mais bem feita é a colheita e a secagem, melhor é o preço para o produtor\”, diz Alberto Barreto, dono da fazenda Sertãozinho. Ex-executivo de banco, ele faz café de qualidade e já vende o produto para os Estados Unidos.
O mercado mundial de cafés de qualidade é estimado em US$ 500 milhões. A venda em supermercados, bares, cafeterias e restaurantes pode chegar a US$ 25 bilhões. O segmento cresce, em média, 15% ao ano, contra 1% do café tradicional. O Brasil chegou atrasado e morde apenas 10% da categoria. No mercado convencional, nossa fatia é de 30%. Mas quem conhece bem os concorrentes (Colômbia e Jamaica, principalmente) sabe que o Brasil tem condições de recuperar o tempo perdido. Ernesto Illy, dono da torrefação italiana que leva seu sobrenome, compra, aqui, mais da metade dos grãos que compõe seu blend (mistura de tipos diferentes de café). São 250 mil sacas por ano, pelas quais ele paga 15% mais que a média dos compradores convencionais. \”O melhor café para expresso é o brasileiro. Ele tem corpo, aroma, doçura\”, diz Illy.
A produção se sofisticou tanto que as melhores fazendas já têm um laboratório para preparo e teste de blends. Essas propriedades recebem a visita de clientes estrangeiros, que já saem de lá com uma mistura pronta para torrar. Em outubro, a dona da terceira rede de café do Canadá, a Timothy’s, esteve pessoalmente na Fazenda Daterra, do empresário Luiz Norberto Paschoal, para desenvolver um blend. O foco do empresário é o mercado externo — para onde vão 92% de sua produção —, mas em 2005 ele dará mais atenção ao consumidor brasileiro. O cafeicultor vai colocar sua marca no site Ateliê do Café, criado por produtores de primeira linha. \”A idéia é criar uma butique virtual de café para donos de bares e restaurantes que querem cafés premiados\”, explica Paschoal. A iniciativa vai entrar em operação em 2005.
Os consumidores locais, assim como europeus, americanos e japoneses, começam a valorizar o produto nobre. E a pagar mais caro por ele também. A rede Pão de Açúcar já tem em suas lojas nove marcas de cafés considerados especiais. Há três anos, não tinha nada. Elas custam 50% mais que uma comercial, mas nem por isso saem menos. A venda, nessa categoria, dobrou no último ano. A empresa contratou a barista Eliana Relvas para selecionar as grifes de grãos e dar cursos de degustação aos clientes especiais. A resposta do consumidor foi tão boa que o Pão de Açúcar vai montar em 2005 uma minitorrefação em uma de suas lojas.
O ritmo de abertura de cafeterias finas nos últimos dois anos também é um termômetro do fenômeno do consumo. A Cafeera, com três lojas em São Paulo, é um bom exemplo. Ela funciona como uma vitrine do café produzido na fazenda Ipanema, do ex-banqueiro Júlio Bozano. O negócio é modesto — fatura R$ 1,8 milhão por ano —, mas o objetivo é construir no Brasil uma rede ao estilo americano, no modelo Starbucks. \”Em 2005 serão abertas pelo menos duas novas lojas na capital paulista. Como o conceito é novo, vamos devagar\”, diz Alexandre Adoglio, fundador e sócio de Bozano na Cafeera. \”Não queremos criar uma lanchonete que também serve café.\”
Em São Paulo, outras casas, como Santo Grão e Suplicy Cafés Especiais, abriram com o mesmo conceito. Em Curitiba, há a Lucca Cafés Especiais. O Armazém do Café, com seis unidades, é o melhor representante no Rio de Janeiro. Outra rede do gênero vai estrear no mercado. É a Senhor Café, que vai vender pó torrado, moído e embalado de Franca, interior de São Paulo, para a Europa. \”O Brasil nunca participou do mercado dessa forma\”, diz Celso Piva, da Exata, empresa que tocará a operação da Senhor Café. Serão 20 unidades no primeiro ano de operação. Metade delas será aberta em Portugal.
Cerca de 6 milhões de sacas de cafés finos são produzidas anualmente. Do Brasil, saem 600 mil
O Brasil tem 52 produtores afiliados à Associação Brasileira de Cafés Especiais. Outros 50 aguardam para fazer parte do time * Venda do grão antes de ser torrado Fontes: BSCA, Abic e estimativas de mercado
Tradição e modernidade Há um ano a família Gonçalves Dias montou na antiga Fazenda Pessegueiro, em São Paulo, uma pequena torrefação. Agora, a parte mais nobre da safra sai de lá torrada, moída e embalada
Lição na xícara Eliana Relvas, barista do Pão de Açúcar, durante degustação com clientes. Os cafés finos fazem tanto sucesso que a rede decidiu montar numa de suas lojas uma minitorrefação Ambição Alexandre Adoglio quer transformar a Cafeera numa Starbucks nacional
GRÃOS DE GRIFE
O melhor do café brasileiro agora fica nas xícaras locais
TENDÊNCIA
Cafeterias, como a Suplicy Cafés, já vendem ao cliente o grão torrado, moído e embalado na hora
TROFÉU
O grão da fazenda Cachoeira foi premiado seis vezes seguidas no Cup of Excelence. Só a TAM consome 2.000 quilos de café por ano
IGUARIA
A fazenda Lambari está lançando a versão Bourbon de seu Astro Café. Como se trata de um grão raro, o quilo será vendido a R$ 35
ARTESANAL
Desde o fim de 2003, a fazenda Pessegueiro torra e mói o próprio café. É vendido na Casa Santa Luzia, empório sofisticado de São Paulo