Quanto mais diferentes são as plantas, maior a chance de encontrar frutos com características que interessem para os produtores e apreciadores.
O engenheiro agrônomo Gerson Silva Giomo apresenta com deferência os cafeeiros altos, encorpados e uniformes que formam uma mancha verde de um dos lados de uma estrada de terra da Fazenda Santa Elisa, nas bordas da cidade de Campinas. É o resultado de quase um século de melhoramento genético, que fez a produtividade dar um salto de 250%. Em seguida, Giomo sorri com discrição ao mostrar, do outro lado da estradinha, o que mais lhe interessa: fileiras de cafeeiros miúdos, desgrenhados e deselegantes.
“Quem disse que esses pés feios, pequenos e com poucos frutos não podem produzir café de qualidade?”, ele indaga. “Quanto mais diferentes são as plantas, maior a chance de encontrar frutos com características que interessem para os produtores e apreciadores.” À frente do programa de cafés especiais do Instituto Agronômico de Campinas (IAC), Giomo está colhendo os grãos que devem resultar em cafés mais doces, encorpados, leves, achocolatados ou frutados, para serem bebidos com calma, como café, não como um rápido cafezinho, ou usados em misturas de cafés, os blends, e em molhos para carnes.
Em julho Giomo acompanhou a colheita dos grãos dos cafeeiros pouco valorizados, embalados separadamente. Ele esperou os grãos secarem sem pressa durante 30 dias em um dos galpões de secagem do IAC e estava perto na hora de torrar, quando os grãos esverdeados ganham cor, aroma e acidez, antes de serem moídos e aproveitados para se fazer uma das bebidas mais consumidas do mundo.
Em seguida foi como degustador certificado pela Associação Americana de Cafés Especiais (SCAA) que Giomo escolheu os de sabores e aromas mais originais, que ele pretende apresentar neste mês para um grupo de degustadores – pelo menos dois dos Estados Unidos. “São eles que vão nos dizer quais as variedades a que devemos dar mais atenção no IAC”, assegura. A SCAA estabelece 10 itens de avaliação, como sabor, aroma, doçura, acidez, corpo, sabor residual e equilíbrio. Acidez mais alta é valorizada, mas depende do tipo de acidez: “É melhor uma acidez cítrica ou frutada; a acidez acética, que lembra o vinagre, é ruim”.
Escolhidos os melhores entre os melhores, os pesquisadores devem voltar ao campo e ampliar a produtividade das plantas em que cresceram os grãos do café que mais impressionaram os provadores. Giomo acredita que em sete anos os produtores poderão ter à mão pelo menos 10 novas variedades que conciliem características marcantes e diferenciadas de sabor e aroma com uma produtividade aceitável. “Queremos que os resultados cheguem aos produtores interessados o mais rapidamente possível”, apressa Oliveiro Guerreiro Filho, diretor do Centro de Café do IAC.
Cana, o exemplo
O trabalho integrado com os produtores foi o que recuperou o programa do IAC para melhoramento genético da cana-de–açúcar. No final da década de 1980, Marcos Landell, então pesquisador recém-contratado, encontrou o programa agonizante: os especialistas mais experientes se aposentavam, nenhuma pesquisa nova à vista. Logo depois, dois programas de pesquisa em cana criados nos anos 1970 encolheram, estimulando o IAC a se reorganizar nessa área. “Como éramos poucos, tratamos de nos organizar”, conta Landell. Ele e dois colegas de outras unidades do IAC, Pery Figueiredo e Mário Campana, procuraram técnicos de usinas produtoras de açúcar e álcool e pesquisadores de universidades e de outras instituições. Durante um ano reuniram-se uma vez por mês no bar Ao Leste do Éden para levantar problemas e possibilidades de ação. As conversas, ele garantiu, eram bastante produtivas, mas a mulher de um deles reclamou das noitadas, sem acreditar que eram encontros técnicos, e em abril de 1992 começaram a se reunir dentro do IAC de Ribeirão Preto. Trocaram as cervejas por café e chá, mas o grupo já havia crescido de meia dúzia para cerca de 40 participantes – hoje são 130. Em conjunto, planejaram e testaram novas técnicas de colheita, identificaram novas variedades de cana que poderiam ser usadas, detectaram e combateram pragas e doenças que começavam a chegar.
Uma consulta realizada em uma feira agrícola realizada no IAC indicou que os produtores queriam uma cana mais adequada à alimentação do gado. “Vimos que havia mais de 1,5 milhão de pecuaristas que usavam cana para gado, mais que para etanol”, conta Landell. Sua equipe, em conjunto com colegas do Instituto de Zootecnia e da Embrapa, identificou no próprio acervo do IAC uma variedade de cana forrageira menos fibrosa e mais doce, capaz de fazer as vacas produzirem mais leite, lançada em 2002. “Renascemos das cinzas, sem recursos, mas com a disposição de pessoas das usinas e da administração do instituto que deixaram o caminho aberto para atuarmos com criatividade”, celebra Landell, que desde 1995 dirige o centro de pesquisa e coordena o programa de melhoramento de cana. A contratação de nove pesquisadores em 2005 ampliou os trabalhos conjuntos com outros centros de pesquisa do país e de outros países.
Desse tipo de abordagem, se funcionar outra vez, poderão resultar cafés de gostos diferenciados, tornando a produção brasileira respeitada não só pela quantidade, mas também pela qualidade. O Brasil é hoje o maior produtor mundial de café: a safra de 2011 deve ser de 43,5 milhões de sacas de 60 quilogramas (kg). Apenas duas espécies, as mais produtivas até agora encontradas, dão conta dessa montanha de café. A Coffea arabica, que produz os grãos usados no café consumido como bebida, ocupa 76% dos cafezais, enquanto a Coffea canephora, também chamada de robusta ou conilon, usada em cafés solúveis, os outros 24%.
O melhoramento genético fez a produtividade aumentar em 250% desde 1727, quando o sargento Francisco de Melo Palheta plantou no Pará as primeiras mudas de café, que ele trouxe clandestinamente da Guiana Francesa. Por outro lado, a qualidade não foi tão enfatizada. “O melhoramento genético elimina a diversidade para valorizar a produtividade”, diz Maria Bernadete Silvarolla, pesquisadora do IAC.
As novas variedades devem ser escolhidas entre as raridades que crescem na fazenda do IAC – algumas delas nem parecem um pé de café, são longilíneas e têm folhas largas como uma jaqueira. Essa coleção de cafeeiros, a maior do país, começou a ser formada em 1932 com variedades trazidas da Etiópia, do Quênia, da Costa Rica, de El Salvador e da Guatemala. Por uma área de 70 hectares se espalham cerca de 120 mil plantas de 15 espécies ou combinações entre elas. “Por causa das leis que desde os anos 1990 dificultam a troca de material genético entre pesquisadores de países diferentes”, diz Bernadete, “hoje seria impossível formar uma coleção tão rica em diversidade genética”.
Uma das espécies silvestres que crescem perto do centro de pesquisa do café é a Coffea eugenioides. É um arbusto de folhas pequenas e frutos vermelhos bem pequenos, a partir dos quais se pode produzir um café suave, límpido, com baixa adstringência e um tênue aroma floral. Estudos recentes indicaram que essa espécie é uma das que originaram espécies das quais se formou a Coffea arabica. Outra conclusão importante: a doçura e o aroma agradável dessa espécie mais cultivada comercialmente provêm dos genes herdados da C. eugenioides.
“O surgimento da Coffea arabica foi um fenômeno espontâneo dos mais felizes, ocorrido há cerca de 700 mil anos, unindo os genes de Coffea eugenioides e de uma espécie mais robusta, a Coffea canephora”, diz Carlos Colombo, pesquisador do IAC que participa de uma equipe de especialistas com ramificações em vários estados que analisa os genes do café.
O problema é que a produtividade das espécies silvestres normalmente é baixa, e não é nada fácil fazer com que essas variedades produzam mais, por meio de cruzamentos com outras, sem perder os sabores especiais. Um cafeeiro demora dois anos para frutificar pela primeira vez e só é considerado um candidato à nova variedade se produzir grãos com as características desejadas e em uma quantidade razoável por pelo menos quatro anos seguidos.
Uma variedade de café naturalmente descafeinado mostra como o trabalho nesse campo pode ser longo. Bernadete examinou a quantidade de cafeína em grãos de 3 mil plantas até encontrar três, vindas da Etiópia, com 0,07% de cafeína, enquanto uma variedade comercial bastante usada de Coffea arabica chamada Mundo Novo, usada como comparação, contém 1,2%. Em um artigo de 2004 na Nature, ela e outros pesquisadores do IAC e da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) apresentaram a provável razão da escassez de cafeína: a deficiência na quantidade ou no funcionamento da enzima cafeína sintase, que transforma a teobromina em cafeína. Essas três variedades, batizadas de AC em homenagem a Alcides Carvalho, pesquisador que liderou o programa de melhoramento genético de café no IAC durante 60 anos, tinham muito mais teobromina que a Mundo Novo.
Desde 2004, a equipe de Bernadete cruzou plantas ACs com outras, mais produtivas. Quatro anos depois, nenhuma das 600 plantas dessa primeira geração produziu café sem cafeína porque, hoje se sabe, essa característica se deve à ação conjunta de pelo menos dois genes, ambos recessivos: os grãos terão baixo teor de cafeína somente quando uma cópia de um gene vinda de um pai e outra cópia vinda de outro pai forem recessivas.
Depois de outro cruzamento dirigido e mais três anos de espera, os pesquisadores examinam quimicamente os grãos da primeira safra das 400 plantas da segunda geração, esperando encontrar algumas capazes de produzir grãos sem cafeína – e com uma produtividade que justifique seu cultivo em escala comercial. Se encontrarem, talvez possam produzir mais rapidamente, por meio de clonagem, outras plantas com essa mesma característica. Bernardete acredita que o café naturalmente descafeinado poderia alegrar os paladares refinados e quem não pode ingerir cafeína, sob o risco de ganhar uma insônia ou desmaiar.
Isolados na mata
Pode haver outras raridades além das cercas do IAC. Cafezais hoje são raros no interior paulista – foram substituídos por canaviais e outras culturas que exigem terras menos férteis –, mas cafeeiros isolados ainda florescem em meio aos fragmentos de mata atlântica. “A natureza fez uma superseleção genética de graça para nós nos remanescentes florestais”, observa Sergius Gandolfi, professor da Universidade de São Paulo (USP). “Nos fragmentos de florestas existem milhares de cafés provavelmente únicos, em sabor, resistência a doenças ou capacidade de crescer à sombra, que resistiram à competição com outras plantas e ataque de pragas e viveram isolados, sem trocar genes com outros cafés de outros fragmentos, durante um século, talvez 20 gerações.”
A qualidade dos grãos e da bebida não depende só da genética, mas também do ambiente e do processamento. Por essa razão é que a equipe do IAC pretende conseguir a colaboração de produtores que possam ceder terras, se possível em todo o país, para avaliarem se as plantas selecionadas mantêm as qualidades desejadas em outros ambientes. Se conseguirem, talvez possam encurtar o tempo de desenvolvimento de novas variedades – as que derem certo já estarão nas terras dos produtores.
Outra possibilidade é modificar o ambiente para as plantas expressarem suas qualidades. Já se sabe que o cafeeiro cresce melhor em áreas mais altas, como as de Minas Gerais e da Alta Mogiana, em São Paulo, e que a arborização parcial pode compensar a baixa altitude e contribuir para melhorar a qualidade. Os cafés da Etiópia e do Quênia estão entre os melhores do mundo porque o café cresce em meio a florestas, seu ambiente original, com menos estresse, e os frutos podem amadurecer mais lentamente e produzir as substâncias que acentuam o sabor e o aroma.
Gandolfi lembra que um estudo feito na Costa Rica indicou que a produção de grãos poderia ser 20% maior quando há uma floresta perto dos cafezais. A proximidade beneficiava também a qualidade dos grãos, por facilitar a polinização, mais eficaz quando feita por abelhas nativas. “Em tempos de mudança do Código Florestal”, diz ele, essas evidências “se contrapõem ao discurso de que os pequenos proprietários não precisam de florestas”.
A produção de cafés especiais poderá exigir também ajustes na colheita e beneficiamento. Os grãos maduros talvez tenham de ser colhidos várias vezes, em vários momentos; hoje o colhedor puxa dos ramos de uma só vez os frutos verdes, maduros, cuja cor varia do amarelo pálido ao vermelho intenso, dependendo da espécie, e os já ressecados, depois os separando. Os grãos podem secar mais rapidamente no terreiro de cimento, como se faz há mais de um século, mais lentamente em secadores suspensos ou um pouco ao sol e depois em secadores mecânicos. Aindá há muito trabalho – e café – pela frente.