Café de quê?!

21 de julho de 2008 | Sem comentários Mais Café Opinião
Por: Diário dos Açores

Café de quê?!
——————————————————————————–
Opinião
Bento Sampaio
20/07/2008 09:07:9 


“o café, Adelaide, é que tinha um gosto nim-por-isso…”, e comparava-o com o da cunhada


Só o de milho amarelo torrado, de graça e gostoso, conheci. Esse era o café lá de casa, para todos, com minha mãe fora do baralho – ainda meu pai a tinha como a priminha que viera da América -, e a farinha torrada enfeitava o leite gordo, dando-lhe um paladar sempre apetecido – como era tão bom o outro tempo.
Mas de tudo se dava alento para que saísse um chá à maneira de se servirem pelo dia adiante – ervas de boa monda, de árvores esfolhadas -, “o primo por que não experimenta o chá das barbas de milho?”, aconselhava o divertido Nuno terramoto, vendo meu pai achacado com cólicas renais, “calha bem, é o tempo delas…”, e já não passou pelo simpático Garcia, pondo-se a caminho de casa.
E quem lhe mandou largar caminhos para pegar em atalhos… e toca ele de se encharcar na beberagem milagreira, “mais uma tigela de chá, Maria Ana…”, e minha mãe, aflita com o seu estado, sabendo-o à porta da farmácia, “não te perdoo, João …”.
Esperançado no assombrado efeito do barbudo milho, ficou ele… e nada, “vá, Maria Ana, mais uma tigela de chá…”, e o resultado foi o mano velho cavalgar o valentão do Austin, noite alta, em busca do remédio, que o sabido Dr. Aníbal receitara.
Mesmo enrolando-se com dores tamanhas – o gasto desnecessário de gasolina, um furo no pneu da frente -, ainda ironizou, “Maria Ana, se bem não fez… olha, mais uma tigela desse consoloso chá…”.
Verdade que muitos se recolhiam em mezinhas domésticas, por tudo ter começado em casa, e ala de se adiantarem nuns emplastros de sopa esquentada para amolecer o raio de uma endiabrada bichoca… Ah, e não só, pois… que ricas xaropadas, infusões de cascas, quantas houvessem, que a fruta se comia primeiro…
Há sempre uns dizeres da terra de cada um… que ninguém se meta; olhem, e cada um carregue a sua cruz…
Alto e bom som dizia o meu professor de ginástica, Roberto Viveiros, “parece que és dos Arrifes”, quando nos saíamos mal num exercício atlético. Já se vê que aquilo caía como fruta verde, bem amarga, “e ele donde é, donde é?…”, queixavam-se os da laboriosa terra de nevoeiros cerrados, do leite em carroças-de-boi, pela cidade, mulheres para as fábricas de tabaco, matraqueando as galochas na calçada – francamente, não era coisa de se dizer.
Logo a seguir aos Arrifes, vinha Rabo de Peixe com os reparos que carrega ainda hoje em dia. Também o Dr. Armando Cortes-Rodrigues zombava, “esse é da Ponta Garça…”, referindo-se ao meu bom irmão Nuno, quando dos dois, ele e o Linhares Furtado, era a este que se referia.
Mas isso é assim: moça da tua terra, limpa-lhe o ranho e casa com ela, que Arrifes, Rabo de Peixe, ou Ponta Garça, são terras dos nossos maiores – o bondoso cardeal Humberto Medeiros, o estudioso Rui Galvão de Carvalho, ou o poeta-padre José Jacinto Botelho.
E vai daí… chegou da América a carta ainda cheirosa, “Maria, mamã tinha aquele impanho de se interrar aí…”, mas, que diabo, pediam-lhe um dinheirão pelo frete, “pois alevá… olha, mandei-te uma saca…”, que agradável nova para ir a correr ao Correio, “veio algum papel amarelo pra gente, senhora Rolanda?”, logo a presteza da funcionária da terra, “leva este também para tua tia” – e voltaram elas, de carreira, a levantar as sacas.
Que coisas bonitas… “o que tu mandaste foi uma lindeza”, tudo servira aos rapazes e raparigas, “estão todos vestidos para a Senhora do Rosário…”, menos o marido que o julgavam ainda barrigudo, “depois do malezinho, descarnou muito…”, assim seguiu a carta para Fall River, “olha, Adelaide, seja pela alma dos nossos, de uma banda e outra”.
Mas se tudo era apreciado – sabonetes e água-de-cheiro, de rica fragrância, latas de cocoa, candins -, havia um pequeno senão, “o café, Adelaide, é que tinha um gosto nim-por-isso…”, e comparava-o com o da cunhada, “não era como dela, esse sim…”, talvez, “por ser ela de São João…”
Mas paciência, “não faças caso, foi o meu que inteimou para botar isto no papel…”, e acrescentava, “não sabe ler, mas tam aquelas teimas…” – sorte amarga os do Caranguejo…
Não tardou nada que viesse outra carta, “tou tam apoquantada, Maria querida”, era tal e qual a pressa dela.
E que consumição seria? Porventura o marido perdera o trabalho, algum dos rapazes estava a caminho da guerra do Vietname, o noivo da filha mais velha, pronta para casar, arranjara outra, uma loiraça da Nação, “que sará, Maria?”, interrompeu-lhe o marido, “espera p´ra aí home ansioso”, e continuou para baixo na leitura, “Maria, esqueici-me de te prevenir que…”, ai, o frasco do café… “oh, meu Deus da minh´alma…”, não poderia nunca ter o sabor refinado do da comadre, “aquilo, Maria querida, erim as cinzas de mamã…”, credo, que heresia… “esse frasco, Maria querida, como eu te alumiei, as cinzas que ele tinha erim para las botares, Maria querida, imciba da campa de papá…”.
Pois claro, tinha razão o marido, “eu não te dizia, Maria…”, e sem estorvo, que não era homem para tanto, “pior foi ter bebido aquilo coma café…”.
Será que os respeitos pelos nossos se ficam por uma piedosa ave-maria de ocasião, uma lágrima de faz hoje anos… ou, salvo seja, um café de quê?! – tão-só de cinzas…
Se calhar, ainda há alguém que assobie para a banda, “eu não sou d´inredos, Bibiana, e nonde é que isso assucedeu?”.
Se fosse vivo, o Dr. Luís Gouveia, médico na terra, diria, “foi em Rabo de Peixe”.
A palavra do leitor


 

Mais Notícias

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.