16/12/2012
Milk Quente
em uma fazenda no interior da Bahia, neolandesesproduzem leite integral de alta qualidade com vacas carinhosas soltas no pasto.
Quase todo mundo que conheço, quando quer tomar leite, vai até o supermercado, a padaria ou a geladeira, se ele já estiver lá. Mas, da última vez que tomei leite, o caminho foi mais complicado.
Um voo de São Paulo até Brasília. Uma estrada esburacada até Mambaí, “o encanto do turismo em Goiás”, segundo a placa. E outra estrada de terra e lama, 45 quilômetros longos e sacolejantes, desviando de caminhões atolados.
Treze horas depois, chegamos ao município de Jaborandi, no sudoeste da Bahia, onde fica a fazenda O jantar logo é servido: curry de salsicha
As coisas são diferentes nessa propriedade instalada no cerrado brasileiro. A língua falada é uma mistura aleatória de português e inglês. O traje típico não é camisa xadrez e chapéu de vaqueiro, mas camisa polo e chapéu australiano, ops, neozelandês. E, à noite, além de curry, come-se pizza ou queijos e vinhos.
Assim funciona a fazenda Leitíssimo, espécie de comunidade que um grupo de neozelandeses fundou há dez anos. A Nova Zelândia, apesar de ser pequena, é o maior exportador mundial de leite.
Seus nativos encontraram do outro lado do mundo boas condições de solo e clima para produzir um leite de qualidade a preço baixo. E, com o enorme mercado consumidor do Brasil, expandiram os negócios para cá e criaram o Leitíssimo, produto que frequenta as prateleiras de supermercados brasileiros há dois anos.
O modo de produção dos gringos também é diferente. As vacas ficam soltas o tempo todo, só se alimentam de capim e são criadas perto de gente (no Brasil, em geral, as vacas de leite comem ração e vivem confinadas).
A sensação é esquisita quando, às oito da manhã, ali no meio do pasto, uma vaca me lambe, cheira e empurra com o focinho. “É igual a um gato, a um cachorro…”, diz Craig Bell, 48, um dos fundadores da fazenda “Foram mal-acostumadas, criadas na mamadeira”, explica Dave Broad, 40, outro dos sócios. “Acabam ficando assim, sem medo de gente. São tranquilas e carinhosas.”
As vacas são uma mistura bem neozelandesa das raças Jersey e Friesian, que eles chamam de “kiwicross” —kiwi é o apelido carinhoso dado a tudo que vem da Nova Zelândia.
O leite produzido ali “compartilha princípios” com o orgânico (como causar o mínimo de impacto ambiental), mas não tem esse rótulo porque os fazendeiros questionam alguns procedimentos necessários para ganhar o selo.
Vaca de leite orgânico não pode tomar remédios, por exemplo. “E aí, o que fazer quando uma delas fica doente?”, questiona Roger Douglas, 25. “Ou muda de fazenda ou vira Big Mac”, responde ele mesmo.
O resultado das técnicas neozelandesas implantadas por aqui é um longa vida elogiado em fóruns de bebedores de leite na internet (“muito cremoso”, “leite de verdade” e “gostinho da fazenda” são as expressões mais usadas) e por quem usa a bebida profissionalmente.
Isabela Raposeiras, a melhor barista do Brasil em nove de dez eleições do tipo, usa o Leitíssimo para fazer seus cafés com leite.
MORTE E VIDA BOVINA
Em breve, a Leitíssimo dará cria em São Paulo. Um dos sócios vai abrir em janeiro a leiteria Delicari com parceiros locais. Além do leite kiwi-baiano, vão vender iogurtes e sorvetes.
Mas o charme é como as compras vão chegar à casa do cliente: quase à moda antiga, de bicicleta, numa caixa com isolamento térmico.
A loja será na Vila Nova Conceição, escolhida por ser um bairro plano, dizem os leiteiros (e provavelmente também pelo alto poder aquisitivo dos seus moradores).
No meio dos bichos, Juliano e Tatá, dois funcionários da fazenda, conversam sobre a morte da bezerra
Uma vaca morreu à noite (“Coisa muito rara”, diz Juliano) e perdeu junto a bezerrinha de que estava prenha. Foi no meio da madrugada, lamentam. Se não, dava tempo de ter salvado.
Mas não perdem muito tempo no luto. Juliana põe uma luva e vai fazer inseminação artificial em três vacas no cio. Enfia a mão no reto, deposita o sêmen no útero. Com uma seringa de uns 30 cm. Três vezes. Uma atrás da outra. Sem parar para descansar. Romance é artigo em falta na fazenda moderna, dizem. Três inseminações depois, tira a luva, lava bem a mão e acende um cigarrinho.
Além do convívio íntimo com as vacas, Juliana e Tatá têm outra coisa em comum. Ambos frequentaram a escolinha da fazenda Tatá, que começou como peão e agora é chefe, aprendeu a ler e a escre-
ver em português. Juliana, gerente da fazenda, estuda inglês. Mas a escola é mais usada pelas crianças, filhas de fazendeiros, funcionários e vizinhos. Ali, as 11 alunas são meninas. “Somos muito sexistas”, brinca Ana Tonon, 42, mulher de Dava e mãe de três Marias.
Entre os humanos, a unanimidade feminina é pura coincidência Já as vacas são inseminadas artificialmente com uma técnica que produz só fêmeas.
Na escola, as meninas se apresentam para os visitantes. Como o Natal vem aí, cantam “Noite Feliz” seguida de “Silent Night” e emendam “Bate o Sino” em “Jingle Balis”. Ensaiam uma música que acabaram de inventar e fala em “Two pães de queijo, five goiabadas, six veadinhos…” Uma professora brasileira e outra neozelandesa dividem as atividades nas duas línguas e, nas prateleiras, “Aurélio” e “Thesaurus” convivem em harmonia.
A neozelandesa Liz Argue, vinda de um povoado “que tem mais cavalos que gente”, ensina as garotas a jogar softball (uma variação de baseball) e diz que a diferença de dar aulas aqui e lá é que as crianças kiwis não dão abraço nem beijo.
Chama uma das alunas mais beijoqueiras, Danieli Macio, 9, para me contar, orgulhosa, que está dando aulas de inglês para o pai e outros quatro adultos em casa
MASOQUISTAS RURAIS
No alto da “gin tower” (torre do gim), uma espécie de “lounge” em cima de uma caixa d’água, os neozelandeses partilham o queijo e o vinho conosco, os forasteiros, e curtem a lua cheia do cerrado.
No violão, Paul Schuler, 47, toca Bob Marley e U2. Grande admirador da dupla sertaneja César Menotti e Fabiano (“César é o Andrea Bocelli brasileiro”), diz que nunca aprendeu a tocar uma música em português porque os brasileiros riam muito toda vez que ele tentava
Nas rodinhas de conversa, neozelandeses falam sobre o caráter desbravador de seus nativos e se orgulham de suas mulheres —o país foi o primeiro a permitir o voto feminino. Mas, com tantas mulheres admiráveis por lá, por que acabam se casando com as brasileiras? “Somos masoquistas”, brinca Craig. Além dele e de Dave, outro gringo, chamado Gregory, casou com uma local, Cleuza. E até trocou de nome: virou Geraldo.
É na casa de Gregory/Geraldo e Cleuza que me hospedo. Despensa de fazenda neozelandesa moderna também é diferente. No armário de porta de vidro, tem mistura para fazer iogurtes nos sabores “greek” e “apricot”, pó para fazer curry e refresco em pó de laranja. Tudo da Nova Zelândia
É de lá, também, que chegam amigos para montar fazendas de leite ali ao lado. Para eles, não é concorrência. “Vamos trocar experiências e desenvolver juntos a tecnologia para produzir um leite cada dia melhor”, diz Craig. E, por falar em tecnologia, ali não pega telefone, mas a internet funciona bem quase o tempo todo (apesar de o GPS do meu celular não localizar onde estamos no mapa).
Simon Wallace, 41, formado em filosofia, diz que eles se sentem “muito bem-vindos na baiano family”. “Aqui, achamos pessoas trabalhadoras e inteligentes, ao contrário do que se diz por aí.”
Com o objetivo de produzir o “futuro do leite de alta qualidade no Brasil”, ele vive solto como as vacas: passa 300 dias por ano na fazenda e há dez anos não sabe o que é ter que trancar a casa ou o carro. Nem o que é ter que ir ao supermercado, à padaria ou sacolejar numa estrada de terra para tomar um bom leite.