As Mulheres e o Café
Schlendrian é um pai grosseiro e está
preocupadíssimo porque sua filha Lieschen entregou-se à nova mania de tomar
café. Todas as tentativas de desviá-la de tão detestável hábito com promessas ou
ameaças foram infrutíferas até que, para dissuadi-la, ofereceu-lhe um marido.
Lieschen aceita a idéia com entusiasmo e o pai parte apressadamente para
conseguir-lhe um. Esta é a idéia principal da Cantata do Café, obra cômica de J.
S. Bach, uma mini-ópera, que foi apresentada entre 1732 e 1735 na
Kaffeehaus de Zimmermann, em Leipzig. A primeira Kaffeehaus da
cidade foi aberta em 1694 — o café chegara à Alemanha em 1670 — e em 1735 a
burguesia podia escolher entre oito privilegiadas casas.
A Kaffeekantate, BWV 211, foi
encomendada a Bach por Zimmermann e é, em parte, uma ode ao produto e, de outra
parte, uma punhalada no movimento existente na Alemanha para impedir seu consumo
pelas mulheres. Acreditava-se que o “negro veneno” pudesse causar descontrole e
esterilidade ao sexo frágil, mas Bach, em troca do pagamento de Zimmermann,
ignorou estes terríveis perigos. Senão, talvez não musicasse uma ária que diz:
“Ah, como é doce o seu sabor. / Delicioso como milhares de beijos, / mais doce
que um moscatel. / Eu preciso de café”; e nem nos brindaria com estas
delicadezas…: “Paizinho, não sejas tão mau. / Se eu não beber meu café / as
minhas curvas vão secar / as minhas pernas vão murchar / ninguém comigo irá
casar”.
Bach aprendera muito bem, em sua vida familiar,
que influenciar os jovens não era assim tão fácil. Portanto, adicionou um
recitativo no qual os planos de Lieschen são revelados: o homem que quiser casar
com ela terá de consentir numa cláusula: o contrato matrimonial certamente
preverá que a mulher possa tomar café sempre que lhe apetecer.
No final, há um breve coro de três cantores, onde
o café e a evolução são admitidos como coisas inevitáveis. Esta Cantata — ao
lado de outras poucas obras vocais profanas — é uma evidente exceção na obra de
Bach. O compositor, que possui a injusta fama de sério, aceitou o convite de
Zimmermann para compor uma propaganda de seu Café e, como quase sempre fazia,
produziu uma obra-prima, uma pequena comédia que funciona tanto no palco quanto
nas salas de concertos. O efeito da primeira apresentação deve ter sido
consideravelmente ampliado pelo fato de que às mulheres não era permitido cantar
em cafés (nem em igrejas) e o papel de Lieschen foi, provavelmente, interpretado
por um cantor em falsete. Bach, com o auxílio do poeta Picander, construiu dois
personagens muito humanos e verossímeis: um pai resmungão e rústico e uma filha
obstinada e cheia de caprichos. O compositor parece estar à vontade ao traçar a
caricatura do pai com o baixo pesado, os ritmos acentuados e a prescrição
con pompa, enquanto os violinos rosnam para indicar seu temperamento
irascível. Quando ele ameaça privar Lieschen de sua saia-balão de última moda,
Bach indica seu tremendo diâmetro de forma escandalosa. A ária de Lieschen em
louvor ao café é convencional, tão convencional que parece que o compositor quer
insinuar que ela futilmente adotara tal hábito apenas para seguir a moda.
Entretanto, seu entusiasmo por um possível marido não é simulado… A alegria
expressa na melodia em ritmo de dança popular é contagiosa. Para os puristas, o
divino e sacro Bach chega a ser grosseiro: afinal, quando Lieschen diz que quer
um amante fogoso e robusto, os violinos e as violas silenciam,
como para deixar bem clara aos ouvintes esta afirmativa sem rodeios. O Café
Zimmermann deve ter vindo abaixo…
Há uma montanha de gravações esplêndidas desta
Cantata. Eu possuo essas quatro que são muito boas:
– Gravação da Naxos (bem barata e fácil de
encontrar): J.S.Bach, Coffee Cantata / Peasant Cantata; regência de Mátyás Antal
com a Failoni Chamber Orchestra, de Budapest. Ref. 8.550641.
– Gravação da
Hänssler com o Bach-Collegium Stuttgart; regência de Helmuth Rilling. Ref.
MM4188-2.
– Gravação da Archiv com a Kammerorchester Berlin, regência de
Peter Schreier. Ref. 2533 269 (Esta gravação é em velho vinil!.
Não tenho culpa de possuir 1200 destes bolachões…).
– Há uma gravação do
holandês voador Gustav Leonhardt com Barbara Bonney e Christoph Pregardien e a
Orchestra of the Age of Enlightenment. Tem tudo para ser a melhor.
Mais: há um bonito site onde encontramos uma biografia ilustrada do
mestre, com um mapa clicável das cidades por ele passou. E deve navegar por aqui — comece por
Curiosità — quem estiver interessado num site que fale sobre o café no
cinema, nas artes plásticas, na música, etc. (É em italiano, mas se eu que sou
burro entendi, imagine você!)
Bibliografia: leituras de textos de discos e CDs,
de livros que não lembro mais e de Karl Geiringer, principalmente