JP ARTIGOS
02/08/2008
O desafio da certificação de produtos agropecuários
Marcelo Carneiro
O último número da revista Agroanalysis (Fundação Getúlio Vargas) apresenta um dossiê interessante sobre a tendência crescente da adoção de sistemas de certificação nas principais cadeias produtivas da agropecuária brasileira (Pecuária, Café, Cana-de-açúcar, biocombustíveis, suinocultura). O conjunto de artigos mostra que a expansão da oferta de produtos vegetais e animais não pode ser pensada somente do ponto de vista da quantidade, devendo incluir necessariamente a questão da qualidade social e ambiental da atividade realizada.
A adoção de uma certificação significa que um determinado agente econômico (uma empresa, um setor empresarial, uma cadeia produtiva) está comprometido com a adoção de determinadas práticas no âmbito de suas atividades, práticas essas que podem ser verificadas e avaliadas através de sistemas de rastreabilidade.
No Brasil o sistema de certificação mais desenvolvido é o do Conselho Brasileiro de Manejo Florestal (FSC-Brasil) que atesta que a exploração de florestas manejadas ou plantadas é realizada segundo padrões sociais e ambientais sustentáveis. As empresas envolvidas nesse sistema, que recebem o selo (ou certificado) do FSC-Brasil comprometem-se com a adoção dos parâmetros referentes, entre outras coisas, ao padrão da tecnologia de exploração florestal utilizada, ao respeito da legislação trabalhista, fundiária e ambiental e com a adoção de práticas sustentáveis no relacionamento com as comunidades diretamente envolvidas nas suas atividades. A adoção de um certificado serve, portanto, como um sinalizador para os consumidores da qualidade da atividade econômica realizada por um ou mais produtores.
O desenvolvimento de sistemas de certificação está relacionado com dois aspectos interligados que surgiram nas últimas décadas do século XX: a redução da ação regulamentadora do Estado na economia e a eclosão de crises quanto a qualidade dos produtos agro-alimentares.
A retração da ação regulamentadora no Estado trouxe para o primeiro plano a questão da necessidade da construção de novos tipos de controle sobre as empresas. Num primeiro momento a ação dos movimentos de consumidores traduziu-se em campanhas de boicote ao consumo de determinadas empresas cuja atuação negava direitos elementares, como o caso exemplar do boicote a produtos da Nike (cf. KLEIN, Naomi. Sem Logo: a tirania das marcas em um planeta vendido. São Paulo: Editora Record).
A certificação pode ser entendida como um segundo tipo de reação dos movimentos de consumidores, que, incorpora algumas características do boicote (produtos florestais que não possuem o selo do FSC tem muita dificuldade de aceitação em mercados como os da Europa ocidental), mas, que se diferencia pelo fato de diferenciar positivamente aquelas empresas que adotaram um determinado certificado ou selo socioambiental.
Aqui, contudo, é necessário que se ressalte que existem “certificados e certificados”, e das importantes diferenças quanto aos mecanismos de criação de um selo socioambiental, bem como quanto às exigências para sua concessão e monitoramento. Assim, podemos dizer que a credibilidade de um selo está na razão direta de sua qualidade (o tipo de exigências que ele prescreve para a sua concessão) e de sua independência face as empresas certificadas.
Assim, de nada adianta um conjunto de empresas se reunirem para a criação de um certificado de qualidade socioambiental de suas atividades se esse processo não tiver a participação de representantes de todos os atores dessa cadeia produtiva.
Pensemos, por exemplo, o processo de criação de um certificado que procurasse atestar a qualidade social e ambiental da cadeia produtiva da pecuária bovina no estado do Maranhão, marcada pela presença de situações de trabalho escravo, como mostram os dados sobre as fiscalizações realizadas pela DRT e pelo Ministério do Trabalho.
Quais atores a construção desse selo deveria envolver? Uma listagem não exaustiva indica a necessidade da presença de representantes dos pecuaristas, dos frigoríficos, dos trabalhadores rurais empregados, de organizações ambientais e de defesa dos direitos humanos e dos demais atores sociais impactados por essa atividade econômica.
Voltando ao dossiê da revista Agroanalysis, diria que o alerta contido na sua apresentação é importante, pois, ainda que de uma forma bastante tímida, chama atenção para um desafio que está longe de ser enfrentado pela agropecuária brasileira, o da necessidade de melhorar profundamente o seu perfil social e ambiental.
Marcelo Carneiro, professor da UFMA, escreve para o Jornal Pequeno às sextas-feiras, revezando com a professora Arlete Santos Borges