O fotógrafo Brasileiro mais conhecido no mundo resume em duas centenas de imagens o seu trabalho dedicado à África
Numa visita à aldeia de Sabbatum, na Somália, o fotógrafo Sebastião Salgado presenciou “uma das coisas mais cruéis já vistas na vida”. A cena que o chocou, há seis anos, foi a de duas meninas que acabavam de ter seus clitóris arrancados e cujas pernas eram mantidas unidas por ataduras para não rasgar a cirurgia precária. “Elas não podiam se mexer, haviam acabado de perder a possibilidade de prazer no futuro”, lembra Salgado. “A expressão dos seus rostos era de tristeza fatal. Naquele dia eu não consegui mais fotografar.” Os retratos de Sitey Muse Mukhtar, na época com sete anos, e de Xalime Ali Sheik, de dez anos, fazem parte do extraordinário livro África (Taschen, 336 págs., R$ 199), no qual Salgado faz um apanhado de seu trabalho de 34 anos no continente africano. São 221 fotos selecionadas de 40 reportagens. Mas Salgado só identificou essas duas meninas somalis. E, claro, o líder etíope Hailé Sélassié, que lutou contra a dominação italiana, numa foto de 1974, publicada pela primeira vez.
Como aquela cena das circuncidadas, existem outras, inúmeras, que indignaram Salgado nessas três décadas de trabalho. E por isso foram documentadas e publicadas em revistas e jornais do mundo inteiro: como ele sempre lembra, seu trabalho de grande artista (palavra de que não gosta) é basicamente jornalístico. “Fotografo a realidade que está acontecendo. Não provoco aqueles fatos, eles fazem parte da nossa história”, diz. São massacres, êxodo de populações desesperadas e famélicas, retratos de pessoas vítimas de cólera, malária ou hanseníase em flagrantes difíceis de se ver. Salgado poderia falar em detalhes de cada uma das imagens, porque não deixa de anotar o contexto de nenhuma delas e tem a memória viva de tudo o que aconteceu. Numa cena de grande impacto, uma mulher foge com a filha sob o fogo cerrado de um bombardeio aéreo, em 1985. Ela leva na cabeça a panela, como se fosse um capacete. “Isso aconteceu na província de Tigray, no norte da Etiópia, durante a guerra contra o governo. Eram refugiados abandonando o país em direção ao Sudão”, diz ele.
Essa foto pertence à parte mais dramática do livro, aquela dedicada à região do Sahel (África Subsaariana) – as outras duas cobrem a África Austral e os Grandes Lagos. “Em Sahel foi a própria natureza que castigou o homem”, diz Salgado. Ao documentar o Lago Faguibine, no Mali, ele cruzou com um grupo de migrantes em pele e osso, cujas roupas negras contrastam com a luz escaldante refletida na areia. É como se entrassem num ponto cego da visão.
“Eles estão caminhando dentro do leito do lago que já foi o maior da África Ocidental.” Num paralelo a tanta dor e miséria, Salgado selecionou também imagens mais aprazíveis, como a reportagem sobre o cultivo de chá em Ruanda, primeira região africana que conheceu, quando ainda era economista da Organização Internacional do café, em 1971. Vinte anos depois ele voltou ao local e fez as fotos que estão no livro. Em 2004, realizou a série de paisagens com os vulcões e lagos da região, que também estarão nos volumes do projeto Genesis, previsto para 2011, sobre a parte “intocada” do planeta. Essas são as primeiras paisagens feitas por Salgado. Mas ele diz que a natureza sempre esteve presente em seu trabalho como contexto no qual se inseria o ser humano. “Não me tornei um fotógrafo de landscape”, diz.