21/10/09
Carlos Lessa
A crise estrutural da economia holandesa surgiu a partir de um “dom” da natureza: o Mar do Norte dispôs importantes reservatórios de gás natural que, explorados pela Holanda, deram origem a uma crescente geração de divisas. Em consequência, o florim holandês se valorizou em relação ao dólar e outras moedas fortes europeias. Os produtos importados se tornaram progressivamente mais baratos e as importações forçaram diversas empresas holandesas a paralisarem a produção local e se converterem em distribuidoras de produtos importados. Obviamente, houve uma redução acentuada da capacidade holandesa de competir com seus outros produtos de exportação que não o gás. Como este gerava crescente afluxo de cambiais, a queda de outras exportações não prejudicou o balanço comercial holandês. Quando começou a redução da extração de gás, afloraram as mazelas de atrofia e desmantelamento industrial e agrícola realizados com as facilidades de importação. Na literatura de então, isto foi denominado “doença holandesa”.
Historicamente, a América Latina poderia alinhar múltiplas experiências em que a combinação de uma exportação “exitosa” impediu ou destruiu atividades econômicas internas. A Península Ibérica registrou a decadência espanhola do século XVIII e a hibernação portuguesa do século XIX, derivadas do afluxo de prata e ouro que devastaram as atividades econômicas peninsulares, deram origem a fortes inflações e procrastinaram o desenvolvimento industrial.
O Brasil está vivenciando uma variante daquela “enfermidade holandesa”. Antes da crise mundial de 2008, as exportações de commodities (soja, açúcar, algodão, café, minério de ferro, carnes vermelhas e brancas etc), beneficiadas por uma demanda internacional crescente, acompanhada por alta de preços em dólar, geraram um superávit comercial que valorizou o real em relação ao dólar. Nas gôndolas de supermercados e nas vitrines das lojas, tornou-se possível registrar uma avalanche de importações de pouca prioridade: saladas verdes francesas pré-preparadas, guloseimas de todas as origens, vestidos e calçados de grifes famosas. Tornou-se frequente o carro de alto luxo, e assim por diante.
Como a ampliação da capacidade produtiva privada persistiu deprimida e o investimento público continuou atrofiado, gerando gargalos de infraestrutura, a economia nacional cresceu pouco. O juro primário hiperelevado seduzia excedentes econômicos para aplicações financeiras e comprimia o gasto público não-financeiro, obrigando a economia fiscal a gerar superávits crescentes, insuficientes para cobrir os juros pagos pelo governo federal.
A dívida pública, ao crescer, dava origem à ampliação de papéis que “garantiam” à poupança financeira rentabilidade certa e saborosas margens de ganho aos bancos privados. O medíocre crescimento produtivo fazia um dramático contraste com a rentabilidade dos agentes do mercado de capitais e com a progressão de lucros não-operacionais de algumas empresas privadas. O crédito se expandia para as compras de bens duráveis pelas famílias. As modalidades de crédito consignado faziam das famílias o alvo principal de crédito. Esse fenômeno chegou à espantosa venda de automóveis em 90 prestações, sem entrada. É conhecida a desvalorização de 20% a 25% do valor do veículo zero quilômetro ao sair da agência revendedora. Mesmo com a instituição brasileira do “fiel depositário”, a queda de emprego e de renda familiar converteria em pó as garantias fiduciárias.
Em 2009, o Brasil, ao manter elevada sua taxa primária de juros em um mundo onde os bancos centrais estão levando a zero suas respectivas taxas de juros, voltou a ser espaço de aplicações financeiras especulativas de capital de curto prazo do exterior. O dólar atingiu, em 4 de dezembro de 2008, a taxa de R$ 2,536, mas se desvalorizou em relação ao real e a taxa de câmbio chegou a R$ 1,700 no início de outubro de 2009. Os exportadores brasileiros estão à beira do pânico, pois preveem que rapidamente o dólar venha a atingir R$ 1,60. No mundo em crise, o preço das commodities está baixo e a demanda mundial anêmica.
O caso brasileiro é uma variante da “doença holandesa”. A variável que valoriza o real não é a exportação de commodities, mas sim a chuva de cambiais que ingressam no Brasil. Entre abril e setembro de 2009, o Banco Central, tentando evitar a valorização assustadora do real, adquiriu mais de US$ 10 bilhões. Ao fazê-lo, emite reais e vende Títulos do Tesouro para reduzir a circulação monetária. Sua recusa em reduzir a taxa de juros primária e o aumento de reservas internacionais estimula novas entradas de capitais do exterior. Os que vieram na frente, ganham, além dos juros, a valorização do real: quem vai ficar com o “mico”?
As trombetas em torno do pré-sal e a consagração da escolha como sede da Olimpíada deslocam o “mico”. O real foi uma das moedas que mais se valorizou. Isso propõe a ampliação das importações brasileiras dos EUA, de países europeus e, principalmente, dos asiáticos, com a China puxando a enxurrada de supérfluos para nosso mercado interno e arruinando a presença brasileira em alguns mercados clássicos para nossas exportações. O melhor exemplo é o aço chinês (feito com o minério de ferro exportado pela Vale) que expulsa nossa siderurgia do mercado argentino.
A atual valorização do real é assemelhada à valorização do florim holandês em passado recente; nossa diferença reside na intencionalidade com que o Banco Central mantém a elevada taxa primária de juros e afirma que a economia brasileira “está perigosamente aquecida e com risco de ressurgência inflacionária”. O Brasil deveria se inspirar na política cambial chinesa, que mantém o yuan paralelo ao dólar. A China, ao contrário da Holanda, está crescendo sua base produtiva e bloqueia as intervenções especulativas de capital estrangeiros de curto prazo. Carlos Lessa é professor emérito de economia brasileira da UFRJ. Escreve mensalmente às quartas-feiras.