Franco Iacomini e Rogerio Waldrigues Galindo | Gazeta do Povo
Há eventos que, pela sua intensidade e pelas conseqüências que provocam, mudam para sempre a vida daqueles que os enfrentam. Caetano Polato, João Batista Arruda e Otacílio Campiolo sabem bem disso. Eles tinham idades diferentes e viviam em cidades distintas no interior paranaense. Conservaram apenas um traço em comum – pertenciam a famílias que viviam da agricultura cafeeira – quando um momento desses surgiu com o vento frio da madrugada para levar cada um a cumprir trajetórias bastante diversas.
Foi no amanhecer de 18 de junho de 1975, há 35 anos, que uma das geadas mais intensas do século passado reduziu a zero a área cultivada com café no estado. Em escala maior, o próprio Paraná nunca mais foi o mesmo. Aquela manhã fria, aliada a outros fatos ocorridos na mesma época, disparou uma série de transformações econômicas e demográficas que fizeram do estado o que ele é hoje.
As estatísticas dão uma dimensão grandiosa dos eventos daquele dia. Na safra de 1975, cuja colheita já havia sido encerrada antes da geada, o Paraná havia colhido 10,2 milhões de sacas de café, 48% da produção brasileira. Era o maior centro mundial nessa cultura e tinha uma produtividade superior à média nacional. No ano seguinte, a produção foi de 3,8 mil sacas. Nenhum grão de café chegou a ser exportado e a participação paranaense na produção brasileira caiu para 0,1%.
Nos dias seguintes já começava a consolidar-se uma idéia de que o estrago seria duradouro. O governador Jayme Canet Júnior anunciava que o orçamento do estado seria reduzido em 20% no ano seguinte.
O prognóstico dos especialistas era de que o prejuízo chegaria a Cr$ 600 milhões (o equivalente, pela cotação da época, a US$ 75 milhões), apenas nas lavouras de café. Outras culturas, como o trigo, também sofreram perdas importantes, de mais de 50%. Mas era o café que sustentava a economia do Paraná naquela época – uma situação que mudaria logo em seguida, já que os cafeicultores nunca mais se recuperariam desse impacto.
É nas histórias individuais, mais do que nos grandes números da economia, que esse impacto pode ser aferido. Como na de João Batista, que tinha 38 anos quando foi atingido pelas intempéries. A destruição dos cafezais fez com que ele deixasse sua Cafelândia do Oeste em direção à invasão da atual Vila das Torres, em Curitiba, onde vive até hoje. Ou no caso de Otacílio, 41 anos em 1975, que continua vivendo da agricultura mas cujos ganhos vêm hoje mais do plantio de frutas do que do café. Ou ainda na trajetória de Caetano, que tinha 12 anos quando o gelo invadiu a propriedade da família em Engenheiro Beltrão. Depois de brigar com o tempo e com as condições de plantio no Paraná por mais cinco anos, os Polato decidiram seguir os boatos sobre terras baratas e produtivas no Centro-Oeste. A mudança levou-os a se tornarem um dos maiores produtores de sementes de soja do país.
Em uma geração muita coisa pode mudar. Mas parece certo que a geada negra de 1975 foi um daqueles raros momentos em que um único fato é capaz de precipitar mudanças históricas. “É bem difícil imaginar como seria o Paraná hoje se a geada não tivesse ocorrido”, diz o agrônomo Judas Tadeu Grassi Mendes, que à época trabalhava na Secretaria de Agricultura do estado e hoje é pró-reitor acadêmico do Centro Universitário FAE, em Curitiba. “O mais provável é que tudo o que aconteceu de 1975 para cá – a perda de importância da agricultura cafeeira, a supremacia da soja, o fortalecimento das cooperativas, a migração, a industrialização – tivesse lugar do mesmo jeito, mas não à mesma velocidade”, opina. Movida pelo vento frio da História, no entanto, a vida dos paranaenses nunca mais foi a mesma.
Onde estão os filhos da geada
Quem quiser fazer negócios em Rondonópolis, cidade de Mato Grosso a 230 quilômetros da capital, Cuiabá, precisa acordar bem cedo. Todas as grandes empresas da cidade começam seu expediente às 7 horas, e muitas vezes os diretores chegam ainda mais cedo aos escritórios. Boa parte dessa gente madrugadora veio do Paraná a partir de 1975 para transformar a localidade, à época uma cidadezinha que vivia da pecuária e da lembrança da mineração de diamantes, na capital da soja do país – uma metamorfose que tem tudo a ver com a destruição dos cafezais paranaenses, ocorrida há exatos 35 anos.
A geada negra de 1975, que mudou a história paranaense ao aniquilar a principal cultura agrícola existente no estado, tornou a vida difícil para muita gente. Ao mesmo tempo, outros fatores surgiram para dar um empurrão extra. No Oeste do estado, a construção da usina de Itaipu obrigou pelo menos 8 mil agricultores a deixarem suas propriedades, gerando uma demanda por terra que não tinha como ser suprida na região. Ao mesmo tempo, culturas tradicionais no estado, como o trigo e o algodão, sofriam com o clima e com a conjuntura econômica. Em escala menor, uma geada ocorrida em 1983 repetiu para os produtores de trigo o estrago que os cafeicultores haviam sentido oito anos antes.
Produtores de lugares como Cornélio Procópio, Loanda, Maringá, São Miguel do Iguaçu e Engenheiro Beltrão começaram a sonhar com as terras planas e baratas de que se falava, mais ao Norte. Começou então um movimento migratório impressionante, que fez com que o estado perdesse 13% da população ao longo dos anos 80. O estado de Mato Grosso foi um dos principais destinos. A magnitude da migração pode ser avaliada pelos dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), feita pelo Instituto Nacional de Geografia e Estatística (IBGE). Em 2001, a Pnad mostrava a presença de 248 mil pessoas residentes em Mato Grosso que declaravam ter nascido no Paraná – o equivalente a 9,6% da população total, e o maior contingente de migrantes no estado. A pesquisa também não deixa dúvidas sobre o que eles foram fazer por lá: 68% deles vivem em áreas rurais.
O resultado da presença dos paranaenses – e também de gaúchos e catarinenses, que se transferiram em menor número para colonizar a região – pode ser visto nas estatísticas agrícolas do estado. Segundo o Levantamento Sistemático da Produção Agrícola do IBGE, o Mato Grosso colheu este ano 17,7 milhões de toneladas de soja, que equivalem a 26,5% da safra brasileira. Apesar da seca que abateu a fértil região Sul do estado, a colheita aumentou 21% em relação a 2004. Também está entre os maiores produtores de algodão e de milho. Os índices de produtividade do estado chamam a atenção de agricultores estrangeiros, que freqüentam as grandes fazendas matogrossenses para entender a razão de seu sucesso.
Para os migrantes que os recebem, a Rondonópolis de hoje lembra a Londrina dos anos 60 e do início dos 70. Uma intitulava-se a Capital Mundial do Café, a outra costuma usar o apelido de Capital Nacional do Agronegócio. Lá, famílias paranaenses que antes apertavam-se em pequenas propriedades descobriram o caminho para o crescimento. \”No Paraná nós éramos colonos\”, diz Tarcísio Sachetti, com o mesmo sotaque que trouxe do Oeste do estado. \”Hoje somos empresários. Passamos do faturamento de alguns milhares de reais para o milhão de dólares.\”
Não é exagero. O caso dos Sachetti – uma família de nove irmãos que vivia de uma propriedade de 130 alqueires em São Miguel do Iguaçu – é um bom exemplo. Chegaram a Itiquira, na região de Rondonópolis, em 1983. A princípio era apenas um projeto do engenheiro agrônomo Rogério, conhecido pelo apelido de Chicão, recém-formado na Universidade Estadual de Maringá. Mas a produtividade era alta e, um a um, os membros da família foram chegando. Hoje a família inteira está no estado. Gerencia um grupo que possui doze fazendas, somando 66 mil hectares em várias regiões de Mato Grosso. O arquiteto Adílton elegeu-se prefeito de Rondonópolis no ano passado, e o irmão Moisés é diretor do Detran de Mato Grosso. Uma história semelhante à do paranaense mais conhecido por aquelas bandas: o governador Blairo Maggi – tido como o maior produtor de soja do mundo –, cujo pai, André, era vizinho de Bonifácio, o patriarca dos Sachetti, em São Miguel do Iguaçu.
Para quem conheceu o desastre que foi a geada de 75, Rondonópolis é algo muito semelhante ao paraíso. É o caso de Orlando Polato, que tinha 22 anos quando a lavoura que a família tinha em Engenheiro Beltrão foi arrasada. \”Não sobrou nem um pé de café, nem uma espiga de trigo\”, diz. Até então os Polato, que estavam entre os maiores produtores de trigo do Paraná, julgavam-se relativamente seguros por plantar café em terras altas – tanto que, nos primeiros momentos, a geada provocou mais surpresa do que tristeza. \”O pai chamou a gente para ver o gelo, era uma novidade para todo mundo\”, diz Caetano Polato, irmão de Orlando. \”O trauma veio depois e foi um sofrimento para a família toda. Foi como se tivesse pegado fogo em tudo.\”
Depois de arrancar o café, os Polato ocuparam as terras de Engenheiro Beltrão com soja. Hoje não têm mais nada no Paraná. Plantam soja, milho e algodão, investiram na produção de sementes de soja e em uma companhia de logística. Suas áreas de cultivo, divididas em três fazendas nas regiões Sul e Norte de Mato Grosso, ocupam um território maior do que o do município de Engenheiro Beltrão, de onde saíram há 25 anos. Nessa vastidão, cerca de 51 mil hectares, há um lugar muito mais sentimental do que econômico para o café. Há dois anos os Polato iniciaram um plantio experimental de dois hectares na Fazenda Bahia, a fazenda-modelo do grupo, localizada na região da Serra da Petrovina, no município de Alto Garças. Caetano diz que o teste não deu certo. Para produzir café na escala necessária para as grandes áreas do Centro-Oeste, seria necessário irrigar os pés no período de seca, que vai de maio a setembro. \”Não temos água suficiente para isso na serra\”, conta Orlando. No sangue dos Polato, o café não corre mais.
Tecnologia, produtividade e estudo (de preferência, no PR)
No centro da invasão paranaense a Mato Grosso está um fator que continua a ser crucial nos dias de hoje: a educação. A escolaridade é provavelmente a maior diferença entre a geração que fez do Mato Grosso o maior produtor de soja do país e os patriarcas que, há 30 anos, lideraram a marcha para o o Centro-Oeste. E é uma característica cada vez mais valorizada na Capital Nacional do Agronegócio, Rondonópolis.
A trajetória da maioria das famílias que foram bem-sucedidas do Centro-Oeste é semelhante. No início da história está um agricultor de pouco estudo, nascido no Sul do país. Com a relativa prosperidade conquistada na lavoura, ele enviou os filhos para estudar em centros maiores. Ao voltar para casa, quase sempre formados em Agronomia, Veterinária ou outros cursos ligados à agropecuária, eles descobrem que a pequena propriedade da família não permite aplicar todos os seus conhecimentos. Impelidos por essa necessidade de crescimento, pelo empreendedorismo e pela conjuntura de cada época – um cenário que inclui desde a geada de 75 até a facilidade maior em obter crédito no Cerrado e na Amazônia, nos anos 70 –, os filhos acabam por encontrar terras baratas em locais distantes. Assim começou a aventura que levou as propriedades de Mato Grosso a um padrão de produtividade mais alto do que o do Sul.
Foi assim com o atual governador de Mato Grosso, Blairo Maggi, formado em Agronomia pela Universidade Federal do Paraná, e com o prefeito de Rondonópolis, arquiteto pela mesma UFPR. A formação avançada fez com que a nova geração desse um valor maior à tecnologia e à pesquisa agrícola, movendo o ciclo educação-produtividade cada vez mais rápido. Hoje as grandes fazendas do Mato Grosso são grandes empregadoras não só de peões como também de pessoal especializado. A Sementes Adriana, maior produtor individual de sementes de soja do país, segue essa lógica. Seu quadro de funcionários – todos registrados, contrariando a lógica que leva a crer que o emprego rural deve ser forçosamente informal – inclui atualmente 300 pessoas. A maioria tem trabalho manual na fazenda, mas 15 são engenheiros agrônomos, trabalhando tanto em vendas como em pesquisas. O laboratório da fazenda, cuja sede é toda ligada ao mundo por fibras óticas, foi o primeiro do país a obter certificação de qualidade pelas normas ISO 17.025.
O investimento em pesquisa justifica-se pelo ineditismo da investida no Centro-Oeste. \”Em nenhum outro lugar do mundo há produção de sementes em áreas tropicais na escala que nós precisávamos\”, conta o diretor-presidente Odílio Balbinotti Filho – engenheiro agrônomo formado em Londrina. Seu pai, o deputado federal Odílio Balbinotti (PMDB-PR), está entre os pioneiros da Serra da Petrovina, onde instalou-se em 1980. A produção de sementes começou três anos depois, para suprir a falta de variedades comerciais adaptadas à região. Os problemas eram múltiplos: conservar as sementes mesmo sob umidade, impedir que germinassem durante o armazenamento, garantir que estivessem prontas para o plantio na época correta. \”O que existe hoje foi resultado de pesquisas nossas, não só da Adriana como de todas as sementeiras do Centro-Oeste\”, diz Odílio.
Saúde
Tarcísio Sachetti, presidente do grupo Sachetti, afirma que o mais comum entre as famílias de agricultores bem sucedidos é enviar a nova geração estudar no Paraná. \”Hoje estão surgindo novas faculdades por aqui e a qualidade está melhorando, mas antes era muito difícil\”, diz. \”Além do mais, todos nós estudamos lá e nos sentimos em casa.\”
História semelhante tem Edílson Mastelaro, produtor nascido em Cornélio Procópio e radicado em Rondonólis em 1982. Há três anos, ele mandou o filho ao Paraná quando chegou a época do cursinho. As viagens do menino, no entanto, hoje com 18 anos, começaram muito, mas muito antes. E se deve a uma outra desconfiança que os paranaenses costumavam ter no Mato Grosso – desta vez, em relação aos serviços de saúde. \”O pré-natal e o parto dos meus dois primeiros filhos foi no Paraná\”, admite Edílson. \”Isso também é bem comum por aqui.\”
Agricultores querem ajuda para compensar perdas com o câmbio e a seca
Rondonópolis está apreensiva. Não apenas os agricultores nem os vendedores de defensivos ou os concessionários de colheitadeiras – toda a cidade está preocupada. O ano de 2005 foi bastante problemático para os produtores locais. Em fevereiro e março, uma seca prolongada provocou perdas nas lavouras de soja e afetou ainda a produção de algodão. Para complicar, há o câmbio: todos compraram insumos quando o dólar estava acima de R$ 3, agora têm de vender seu produto a R$ 2,40. Embora a colheita no Mato Grosso tenha sido maior este ano do que em 2004, os grandes produtores do Sul do estado tiveram perdas.
Quase sempre, a turma diz que o produtor do Mato Grosso é injustiçado. \”O pessoal do Rio Grande grita mais alto e consegue socorro do governo federal\”, diz Edílson Mastelaro, agricultor de Cornélio Procópio que chegou a Rondonópolis em 1982, sete anos depois de seu pai comprar terras na região. \”Nosso prejuízo é até maior do que o deles.\”
\”Agricultura é como pé de fruta\”, filosofa Jair Resmini, um catarinense que chegou a Mato Grosso em 1990 e desde então já abriu oito restaurantes e uma microcervejaria, a maioria hoje sob a administração de parentes. \”Num ano carrega muito, no outro não dá a metade.\” Resmini acha que esse é o grande pecado dos produtores rurais da cidade, que não pouparam para o tempo ruim. Agora, ele espera que a situação melhore para investir mais nos negócios porque, em Rondonópolis, até o vendedor de picolé sabe que os seus negócios dependem da safra da soja.