ECOLÓGICO
26/02/2010
LUCIANO LOPES
redacao@jbecologico.com.br
Segundo registros históricos, a agricultura surgiu no planeta há cerca de 10 mil anos. De bem coletivo, de uso comum, passou à categoria de propriedade privada e causa principal de vários conflitos entre países mundo afora. Seu impacto no meio ambiente, antes incontestável e crescente à medida que a população aumentava, agora por certeza parece trilhar o caminho da sustentabilidade, reforçando sua interdependência para a manutenção da vida.
É o que nos mostra, nesta entrevista exclusiva à JB Ecológico, a Dra. Juliana Santilli, promotora de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e sócia-fundadora do Instituto Socioambiental (ISA). Juliana, que já atuou nas áreas criminal, de meio ambiente, direito do consumidor, direitos humanos e património cultural, defende a diversidade genética como uma das saídas para evitar a extinção das espécies vegetais e animais. Doutora em Direito Socioambiental, propõe ainda instrumentos jurídicos para a proteção e a valorização do meio ambiente e da biodiversidade agrícola, bem como dos direitos dos trabalhadores rurais. Confira:
JB ECOLÓGICO – A senhora afirma que tanto a sociedade quanto os ambientalistas fazem pouca militância em favor da diversidade biológica e genética na agricultura. Por que isso acontece?
JULUINA SANTILLI – Os ambientalistas e a sociedade, em geral, tendem a associar a biodiversidade a animais e plantas silvestres, esquecendo-se de que proteger variedades de mandioca, milho, arroz, feijão e os nossos ecossistemas agrícolas é tão importante quanto fazê-lo com a Floresta Amazônica, a Mata Atlântica, o mico-leão-dourado, o lobo-guará, etc. Poucas pessoas se dão conta de que o modelo agrícola hegemônico, baseado em grandes monoculturas e com uso intensivo de adubos químicos e agrotóxicos, nos impõe uma alimentação pobre. E isto tem consequências sérias para a nossa saúde. A alimentação pouco nutritiva e balanceada é um dos fatores responsáveis pela epidemia mundial de obesidade, diabetes e doenças cardiovasculares. Além disto, a maior parte dos agrônomos tem formação produtivista, pouco voltada para as questões socioambientais, e alguns ambientalistas ainda veem a agricultura como a grande vilã de desmatamentos e danos ambientais. Entretanto, tem crescido a aproximação entre ambientalistas e agricultores familiares e agroecológicos, que têm se articulado em prol de políticas de desenvolvimento rural mais sustentáveis.
Quais são os principais fatores que levam à perda da diversidade agrícola?
Ela é causada, sobretudo, pela substituição das variedades agrícolas locais e tradicionais, que se caracterizam por sua ampla variabilidade genética, pelas variedades “modernas”, de alto rendimento e estreita base genética, segundo o Relatório sobre o Estado dos Recursos Genéticos de Plantas do Mundo, coordenado pela FAO (Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura). Este relatório aponta que, nos últimos 100 anos, os agricultores perderam entre 90% e 95% de suas variedades agrícolas, e que a taxa de perda da diversidade genética vegetal é de 2% ao ano.
Isso não impacta diretamente a fauna?
A diversidade animal também está ameaçada. Segundo o Relatório sobre o Estado dos Recursos Genéticos Animais, cerca de 20% das raças de vacas, cabras, porcos, cavalos e aves existentes no mundo estão ameaçadas de extinção. E nos últimos seis anos 62 raças de animais foram extintas, o que representa a perda de quase uma raça por mês. A perda da diversidade agrícola está, essencialmente, associada a mudanças ocorridas na agricultura, especialmente a partir da revolução verde, nos anos 50 e 60, que promoveu um modelo agrícola dependente de insumos químicos (adubos e agrotóxicos), mecânicos (tratores, colheitadeiras mecânicas, etc.) e biológicos (variedades melhoradas). Com o apoio de órgãos governamentais e de organizações internacionais, a revolução verde expandiu-se rapidamente pelo mundo, promovendo uma intensa padronização das práticas agrícolas e artificialização do ambiente natural.
Mas a agricultura e a pecuária não são responsáveis por degradar grandes áreas florestais?
Na Amazônia, a pecuária tem sido a principal responsável pelo desmatamento. Além disto, as grandes monoculturas voltadas para a exportação de commodities, principalmente da soja e da cana de açúcar, têm avançado sobre o Cerrado, a Caatinga e a Floresta Amazônica, causando impacto em áreas importantes para a conservação da agrobiodiversidade e para a produção de alimentos para o mercado interno. E o pior: a alta produtividade das monoculturas não significou mais comida na mesa do brasileiro.
Por quê?
Um estudo do Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) demonstrou que o aumento recorde das safras agrícolas em 2003 e 2004 não trouxe maior segurança alimentar ao país. Ainda hoje, 32 milhões de pessoas, ou 210% da população brasileira, se alimentam deforma insuficiente e com alimentos de baixa qualidade.
Há alternativas para este modelo agrícola predatório?
Sim, principalmente no âmbito da agricultura familiar e agroecológica. Iniciativas desenvolvidas por ONGs têm demonstrado a viabilidade econômica de modelos agrícolas mais sustentáveis. Um bom exemplo são os sistemas agroflorestais (ou agrossilviculturais), em que os cultivos agrícolas convivem com as florestas. Esses sistemas promovem o aumento da matéria orgânica nos solos, diminuem a erosão e conservam a diversidade biológica e genética.
E quanto ao impado das mudanças climáticas na agrobiodiversidade? O que deverá ser feito para que haja uma adaptação sem grandes perdas?
As interfaces entre agrobiodiversidade e mudanças climáticas são múltiplas. a biodiversidade agrícola é, por um lado, afetada pelas mudanças climáticas, que provocam a redução de espécies e ecossistemas agrícolas; e, ao mesmo tempo, é essencial para o enfrentamento dos impactos causados pelo aquecimento global Só a conservação da diversidade permitirá que espécies e ecossistemas agrícolas se adaptem às mudanças e variações das condições ambientais. Plantas e animais so conseguirão enfrentar os desafios do futuro, inclusive aqueles representados pelas mudanças climáticas, se puderem contar com ampla variabilidade genética, biológica e ecológica. Os cientistas têm apontado diversas estratégias para enfrentar as mudanças climáticas, como a diversificação da produção agrícola e o desenvolvimento de variedades agrícolas adaptadas a eventos climáticos extremos.
Quais são as culturas mais ameaçadas hoje pelas mudanças climáticas?
O aquecimento global ameaça a agricultura como um todo, e não apenas algumas culturas agrícolas. A agricultura será uma das atividades mais afetadas pelas mudanças climáticas, pois depende diretamente de condições de temperatura e precipitação. No Brasil, pesquisadores da Embrapa apontam o possível deslocamento de culturas perenes, como a laranja, para o sul, na busca de temperaturas mais amenas. Elevadas temperaturas de verão também podem levar ao deslocamento de culturas como arroz, feijão e soja para a região Centro-Oeste, mudando o atual eixo de produção. No Sul, a produção de grãos poderá ficar inviabilizada com o aumento da temperatura, secas mais frequentes e chuvas restritas a eventos extremos de curta duração.
E a diversidade genética é a saída?
É fundamental recorrer à diversidade genética de espécies e variedades agrícolas e de seus parentes silvestres. Elas são importantes fontes de genes para o desenvolvimento de novas variedades adaptadas a calor excessivo, secas, inundações, etc. Muitos cientistas têm defendido a necessidade de que a pesquisa agrícola passe a dar maior prioridade ao aumento da capacidade de adaptação das plantas às mudanças climáticas do que à elevação de sua produtividade.
Os agrocombustiveis já são uma realidade efetiva no Brasil?
Ainda é cedo para saber se eles serão efetivamente uma alternativa energética sustentável, do ponto de vista socioambiental. Atualmente entre 8o% e go% do biodiesel brasileiro é produzido do óleo de soja, e o etanol (álcool), da cana-de-açúcar. As monoculturas de soja e cana-de-açúcar têm produzido, historicamente, efeitos socioambientais perversos. As lavouras de cana-de-açúcar para produção de etanol têm, inclusive, avançado sobre áreas prioritárias para a conservação do cerrado, um dos biomas brasileiros mais ameaçados e menos protegidos. Além disto, os cientistas têm lançado muitas dúvidas sobre a efetiva contribuição dos agrocombustíveis para mitigar os efeitos do aquecimento global. A eventual redução das emissões de gases de efeito estufa (GEE) se perde quando florestas que captam carbono são derrubadas para dar lugar a plantações destinadas à produção de agrocombustíveis.
Que análise você faz do sistema agrícola nacional? O que ainda é um gargalo para a agrobiodiversidade?
O universo agrário e agrícola brasileiro é extremamente complexo, seja em função da grande diversidade da paisagem agrária (meio físico, ambiente, variáveis econômicas etc.), seja em virtude da existência de diferentes tipos de agricultores, que têm diferentes formas de se organizar e de produzir. O sistema agrícola hegemônico (atualmente representado pela agricultura patronal ou agronegócio) é fruto da nossa história colonial. Apesar do rico patrimônio biológico e cultural brasileiro, o modelo agrícola estabelecido pelos portugueses se baseou na monocultura, especialmente de espécies exóticas voltadas para a exportação (como a cana-de-açúcar e o café), no latifúndio e na escravização forçada dos povos indígenas e dos negros trazidos da África. Os ciclos econômicos que se sucederam no Brasil maltrataram a terra, produziram intensa devastação ambiental e a concentração de terras nas mãos de poucos proprietários. As consequências socioambientais deste modelo agrícola são amplamente conhecidas. Os agricultores estão conscientes sobre a necessidade de preservação ambiental? Tem crescido muito a consciência ambiental dos agricultores brasileiros, assim como as iniciativas voltadas para a agricultura sustentável. Muitas iniciativas agroecológicas têm sido adotadas por ongs, sindicatos de trabalhadores rurais e empresas sociais. Podemos citar experiências como a rede nacional de produção e comercialização de sementes agroecológicas da empresa Bionatur, a experiência da Unaic (União das Associações Comunitárias do Interior de Canguçu), no Rio Grande do Sul, com a recuperação de sementes crioulas, a experiência da Rede de Sementes da Articulação do Semiárido Paraibano e as práticas de recuperação, produção e melhoramento de sementes crioulas de hortaliças do Movimento de Mulheres Camponesas, de Santa Catarina. A Articulação Nacional de Agroecologia (ANA) conta com mais de 100 organizações espalhadas por todo o país, e as experiências agroecológicas têm se multiplicado.
Qual avaliação você faz da atuação do ministro Carlos Minc frente à pasta ambiental do país?
Apesar de muitas iniciativas positivas, como a defesa de uma meta brasileira de redução da emissão de GEE, o ministro Carlos Minc tem uma posição isolada dentro do governo. Para serem eficazes, as políticas públicas ambientais devem ser transversais, ou seja, perpassar o conjunto das políticas públicas capazes de influenciar o campo socioambiental, o que não tem ocorrido no governo Lula O ministro da agricultura, Reinhold Stephanes, é ligado ao agronegócio e defende o enfraquecimento das leis florestais. E a Dileta Rousseff defende uma revisão das normas do licenciamento ambiental, porque quer aprovar logo obras do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), sem avaliação criteriosa dos impactos socioambientais.
O ISA vai completar 16 anos em 2010. Qual o balanço que você faz deste tempo de atuacão e luta ambiental?
O ISA se tomou uma referência nacional e internacional em relação às principais questões socioambientais brasileiras. OISA (www.socioambiental.org) tem proposto soluções sustentáveis e integradas para diversas questões ambientais e sociais, e este é provavelmente um de seus diferenciais em relação às outras organizações ambientalistas. E desenvolve um papel fundamental na produção e divulgação de informações altamente qualificadas, que têm influenciado positivamente as políticas públicas socioambientais.