05/02/2007 06:02:11 – Carta Capital
FOTOGRAFIA Um país em transição, sob as lentes desbravadoras de Marc Ferrez
POR PEDRO ALEXANDRE SANCHES
Desde 26 de julho de 2005, mais de 80 mil pessoas já estiveram cara a cara com as imagens de um Brasil em transição entre o Império e a República. O passaporte de volta ao passado tem sido oferecido pelo fotógrafo brasileiro Marc Ferrez (1843-1923), cuja obra roda o País dentro do projeto O Brasil de Marc Ferrez, e também já fez parada na França, no museu Carnavalet, em 2005.
Atualmente em cartaz em São Paulo, na Galeria de Arte do Sesi e em dois espaços do Instituto Moreira Salles (IMS), a mostra reúne mais de 350 fotografias pertencentes ao acervo do IMS, além de equipamentos e outras reminiscências do artista.
A iniciativa tem tido o impacto de reajustar o foco sobre um Brasil jovem que também se auto-retratou, além de ter sido constantemente esmiuçado por artistas estrangeiros como Jean Baptiste Debret, Joachim Lebreton e Nicolas-Antoine Taunay, integrantes da Missão Artística Francesa que em 1817 trouxe ao Rio o escultor Zépherin Ferrez, pai de Marc. Futuro fotógrafo, seu filho nasceria no Rio, em 1843, e, embora criado e educado em Paris após a morte precoce dos pais franceses, voltaria ao Brasil aos 21 anos e aqui residiria até o fim da vida.
Dono de um eterno sotaque francês, Marc Ferrez viveria (assim como os influenciadores da geração anterior) sob a tensão entre documentar o Brasil como ele era e derramar sobre o País um olhar estrangeiro, colonizador, exploratório. Mas, à diferença dos outros, era filho da terra, e talvez não fosse mera coincidência que, em 1888, ano da Abolição da Escravatura brasileira, se tornasse o primeiro fotógrafo a utilizar flash de magnésio para registrar trabalhadores no interior de uma mina, em Minas Gerais.
“Nessas fotos, apenas o feitor da mina está calçado. O negro forro não tinha direito a sapato, e essa distinção não aparece nas fotos por mera coincidência. Ferrez chamava muita atenção para isso. Suas fotos são dramáticas, transpiram e deixam muito marcadas as posições dele”, afirma o superintendente executivo do IMS, Antonio Fernando de Franceschi, defendendo que Ferrez foi, à maneira de seu tempo, um retratista politizado do Brasil.
Intitulado ora fotógrafo da Marinha Imperial, ora membro oficial da Comissão Geográfica e Geológica do Império, Ferrez desbravou fotograficamente um Brasil ainda governado pela natureza. Na pulsão entre o olhar aventureiro e as lentes colonizadoras, fotografou ora cenas idílicas do rio São Francisco e da cachoeira de Paulo Afonso, na Bahia, ora o trabalho escravo em fazendas de café no Vale do Paraíba. Bipartido entre o espírito rebelde e a domesticação pelos cargos oficiais que ocupava, alternou-se entre documentar a Revolta da Armada (1893), no Rio de Janeiro, e as araucárias do Paraná. Retratou escravos baianos, índios goianos e jornaleiros cariocas, mas também o imperador dom Pedro lI, a princesa Isabel, o conde dEu e até, num viés mais cultural, o escritor Machado de Assis.
Trata-se de experiências à parte na trajetória de Ferrez, que passou à história como um “fotógrafo de vistas diversas”, um fotógrafo-paisagista. Documentou o Brasil de Belém do Pará a Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, mas foi fundamentalmente o tradutor visual de um Rio de Janeiro semivirgem, de inúmeras paisagens da Baía de Guanabara vista de Niterói, da ilha de Paquetá ou das praias de Copacabana e Ipanema.
Ao mesmo tempo, documentava a transição, eternizando a urbanidade do Canal do Mangue, a construção passo a passo da avenida Central, o movimento no centro da capital do Império morredouro e da República nascente … Com essas fotos, correria mundo em sucessivas exposições internacionais e ganharia notoriedade para muito além das fronteiras nacionais.
“Pode-se contar quase a história do Brasil pelas fotos de Ferrez: a natureza preservada do País num certo momento, a Abolição da Escravatura, o ciclo do café, a industrialização a partir de São Paulo”, sintetiza Fransceschi sobre o arco de ação amplo, por vezes até contraditório, do explorador-desbravador.
Ferrez viveria a modernização do País ele próprio, em seu ambiente profissional. Em 1907, tornou-se um dos arrendadores de dois prédios da avenida Central, para a instalação da terceira sala fixa de cinema do Rio, o Cine Pathé. Antes loja e laboratório de fotografia, a Casa Marc Ferrez tornava-se também distribuidora de filmes para os cinemas que iam sendo inaugurados dali por diante, segundo documenta a pesquisadora Maria Inez Turazzi na cronologia montada para o livro-catálogo O Brasil de Marc Perrez (também editado pelo IMS).
Avançando por essa seara, Ferrez tornou-se, em 1908, produtor de filmes como a comédia pioneira Nhô Anastácio Chegou de Viagem e A Mala Sinistra, esse último dirigido por seu filho Júlio. A paixão audiovisual continuaria percorrendo gerações na família Ferrez – o material hoje sob a guarda do IMS existe por cuidado e dedicação de Gilberto Ferrez (1908-2000), neto de Marc, cuja coleção chegou a 4 mil imagens.
Quem procura resumir a relevância de Ferrez e de seu resgate é Paulo Skaf, presidente da Fiesp, em cuja sede está abrigada hoje a exposição principal do fotógrafo. Ele classifica como “fantástico” o trabalho do artista, e explica: “Refiro-me ao conjunto da obra, desde os limites tecnológicos da época, que o artista soube superar com incrível qualidade, passando pela sua incrível consciência social até chegar à beleza das imagens retratadas. É uma exposição que nos oferece muito além da arte fotográfica, um importante registro histórico do Brasil”.
Com longevidade ao gosto de resgates parecidos do IMS, o registro histórico movimentado pelo projeto O Brasil de Marc Ferrez cumpre roteiro sem data para terminar: a itinerância começou pelo Rio, viajou a Paris, passou por Porto Alegre, São Paulo e Poços de Caldas, voltou a São Paulo e em março segue para Belo Horizonte.
Curioso é lembrar que, em vida, Ferrez chegou a atrair 20 mil pessoas a uma exposição no Rio, em 1887. As mais de 80 mil pessoas dispostas a conhecê-lo mais de um século depois (15 mil delas em Paris) parecem atestar não apenas a permanência e a importância do artista fundador, mas também o interesse simbólico por um processo de (re) descoberta do Brasil, em pique de auto-retrato.