Boom de navios cargueiros reduz lucros

27 de outubro de 2014 | Sem comentários Análise de Mercado Mercado

Folha de S. Paulo
25/10/14


Um helicóptero apareceu no céu por sobre o mar do Norte. Eram 7h de uma quarta-feira, algumas semanas atrás, e o helicóptero se aproximou em um longo arco antes de pairar por sobre um navio que viajava rumo ao sul em velocidade de 15 nós. Com comprimento da ordem de 400 metros, o navio em questão, o Mary Maersk, era decerto muito visível. Seu comprimento equivale à altura da Torre Eiffel, e o Mary e os demais cargueiros de sua classe são os maiores navios porta-contêineres do planeta.


Saindo do helicóptero, viu-se primeiro um par de pés, e depois as pernas de uma calça Levis; por fim, um homem foi baixado lentamente por uma corda até o convés do navio. O trabalho dele era pilotar a embarcação por um estreito canal dragado no rio Weser, em direção ao porto de Bremerhaven, na Alemanha.


Mais tarde na mesma manhã, o Mary realizaria a maior baliza de estacionamento da história – ou pelo menos a maior desde a última vez que havia atracado, no dia anterior, em Gotemburgo, Suécia.


A vida num cargueiro


As empresas buscam maneiras mais eficientes de transportar carga das fábricas na China aos consumidores na Europa, e o Mary está entre os novos navios de grande porte criados para a missão, uma classe conhecida como “Triplo-E”. Propriedade da A. P. Møller Mærsk, da Dinamarca, a maior operadora mundial de navios porta-contêineres, os navios da classe Triplo-E entraram em serviço no ano passado, abrindo caminho vigorosamente no setor de transporte de contêineres, que movimenta US$ 210 bilhões anuais. Eles também conquistaram seguidores: observadores cujo hobby é fotografar os navios Triplo-E e postar fotos deles online. A Lego criou uma versão miniatura do modelo, que requer 1.516 blocos plásticos para construção.


Até o fim dos anos 1990, os maiores navios porta-contêineres eram capazes de carregar 5.000 contêineres de aço, cada qual com cerca de seis metros de comprimento. Hoje, navios desse porte são considerados nanicos. O tamanho dos porta-contêineres disparou, refletindo seu papel como veículo básico da globalização. A cada ano, o setor de transporte marítimo embarca quase US$ 13 trilhões em produtos, cerca de 70% do total mundial de carga, de acordo com a OMC (Organização Mundial do Comércio).


LIMITAÇÃO


Cada Triplo-E é capaz de carregar mais de 18 mil contêineres, em pilhas de 20 unidades de altura – 10 acima do convés e 10 abaixo. Mas eles só são capazes de navegar entre a Europa e a Ásia, porque seu casco, com quase 60 metros de largura, é largo demais para uso em portos dos Estados Unidos ou para passar pelo Canal do Panamá. O Mary fará paradas em uma dúzia de portos, de Gdansk, na Polônia, a Ningbo, Yantian e Xangai, na China. Transporta perfumes, queijo ralado e carne de porco congelada. Da China, computadores e roupas são algumas das exportações mais frequentes; da Europa, produtos químicos e madeira.


O Mary -transportando pilhas de carga tão altas que pouco de suas linhas é visível além das duas chaminés e da ponte de comando envolta em vidro- é um símbolo perfeito para um mercado cada vez mais globalizado. Mas também representa a imensa ambição do setor de transporte naval de contêineres. Poucas operadoras além da Maersk são lucrativas, o número de navios novos em construção é excessivo, e a demanda por espaço em navios porta-contêineres está se desacelerando devido aos obstáculos que as economias da Europa e da Ásia vêm encontrando.


A Maersk, sediada em Copenhagen, encomendou 20 navios da classe Triplo-E à Daewoo, da Coreia do Sul, em 2011, ampliando em mais de 10% a sua capacidade mundial de transporte de carga. O momento do pedido foi incomum. Um relatório do Boston Consulting Group, que tem a Maersk como cliente, definiu 2011 como um ano que “os executivos no setor de transporte naval de contêineres provavelmente gostariam de esquecer”, em parte porque uma onda de novos navios encomendados em anos anteriores entrou em operação, inflando a capacidade disponível.


Mas a demanda por espaço vinha em ritmo morno desde 2008, de acordo com a Drewry, uma consultoria de navegação que acompanha as atividades do setor. O espaço ocioso disponível na frota da Maersk equivale a um Triplo-E.


“É uma lógica simples: quanto maior, melhor”, diz Ulrik Sanders, diretor mundial da divisão de navegação da Boston Consulting. “Mas só se você conseguir manter os navios cheios.”


“Existe excesso de capacidade no mercado, e isso empurra os preços para baixo”, ele prossegue. “Do ponto de vista do setor, aumentar a capacidade não faz sentido algum. Mas do ponto de vista de uma companhia individual, pode fazer todo sentido. É uma questão muito espinhosa.”


CORRIDA ARMAMENTISTA


O capitão calça Crocs. Ele está em pé na ponte de comando, usando uma calça jeans preta e uma camisa branca com galões pretos nos ombros.


Franz Holmberg, o capitão, é um dinamarquês bonachão. No seu braço esquerdo, há uma tatuagem de uma águia em luta contra um dragão; ele diz que a imagem “já não é mais tão vívida” quanto no passado. Entre os instrumentos da ponte de comando, há uma câmera formidável -ele gosta de registrar as paisagens que percorre, como por exemplo a travessia do canal de Suez que ele usa como fundo de tela.


Holmberg vem de uma família de agricultores, mas decidiu tentar a vida no mar, e se encantou com ela. Depois de se formar na escola náutica, se tornou terceiro oficial de um navio com capacidade para 3.800 contêineres, um quinto da capacidade do Mary.


“A cada vez que surge uma nova classe de navios, todo mundo diz que chegamos ao limite, e que maior é impossível”, diz o capitão, acrescentando que “e aí alguns anos mais tarde alguém aparece com algo um pouquinho maior”.


MENOS COMBUSTÍVEL


O setor deseja navios capazes de carregar mais contêineres, navegando mais devagar. Os preços do combustível são um fator importante, e por isso hoje é comum que os navios naveguem “a meio vapor” para economizar combustível, operando em velocidades de cruzeiro de entre 16 e 18 nós, e não mais a 22 nós. Uma viagem típica entre a Polônia e a China dura 34 dias.


Durante uma recente viagem ao canal de Suez, a tripulação do Mary estava navegando em curso paralelo ao de um porta-contêineres da Maersk que entrou em operação 10 anos atrás; o Mary usava apenas 6% mais combustível do que o navio mais antigo, mas transportava duas vezes mais carga. “Nos últimos 10 a 15 anos, vimos alta dramática no custo do combustível”, disse Jacob Pedersen, analista do banco dinamarquês Sydbank. “Isso dá às companhias de navegação motivo para tirar de uso os navios mais velhos e menos econômicos.”


Mas o combustível é apenas parte da equação. “O suprimento de navios supera de longe o ritmo de crescimento” do tráfico de contêineres, diz Richard Meade, editor da “Lloyds List”, uma importante revista náutica, acrescentando que as maiores linhas de navegação “entraram em uma corrida armamentista em termos de tamanho, liderada pela Maersk” e sua rival suíça Mediterranean Shipping Co, uma empresa de capital fechado. Os navios mais novos, ele disse, “são mais eficientes, mais viáveis em termos econômicos e menos prejudiciais ao meio ambiente, mas só produzirão resultados caso naveguem a plena carga”.


Quando a economia mundial perde ímpeto, o mesmo acontece com o setor de navegação. Em uma das pontas da rota do Mary, o propulsor do crescimento chinês vem perdendo empuxo, enquanto na ponta oposta a Europa está uma vez mais flertando com a recessão.


O setor de navegação também está atrasado no que tange à consolidação, com as gigantes do setor de transporte muitas vezes vistas como parte do patrimônio nacional em seus países. As cinco maiores linhas de transporte de contêineres são todas empresas estatais ou sob controle familiar. A receita da Maersk, que tem capital aberto mas opera sob controle familiar, equivale a mais de 14% do PIB (Produto Interno Bruto) dinamarquês.


MAIS CAPACIDADE


Os estaleiros, condicionados a construir navios cada vez maiores, estão cortando seus preços a fim de conquistar novas encomendas. Os navios da classe Triplo-E foram construídos por apenas US$ 190 milhões por unidade, o que em 2011 era relativamente uma pechincha. Para fins de comparação, em 2007 a China Shipping Container Lines, outra grande linha de navegação, pagou US$ 1,36 bilhão por oito navios, ou cerca de US$ 170 milhões por unidade – mas capacidade deles era de 13,3 mil contêineres, quase 5.000 unidades a menos que a capacidade da classe Triplo-E.


“Nesse ciclo de queda, os preços para novas construções são baixos e os financiamentos são baratos, e por isso é muito melhor comprar os navios do que adquirir uma empresa” que controle navios mais antigos, disse Martin Dixon, diretor de produtos de pesquisa da Drewry. “Muitas linhas de navegação estão enfrentando dificuldades para ganhar dinheiro, e por isso liderança em termos de custos é chave para a sobrevivência. Portanto, está se vendo muito investimento em navios maiores.”


Os navios de maior porte, enquanto isso, vêm sendo sustentados por um crescimento no tráfego de contêineres que é três vezes mais alto que o crescimento da economia mundial, já há décadas -mas esse ritmo acelerado parece estar chegando ao fim.


Nenhum país estimulou mais que a China o boom do transporte em contêineres, que surgiu como subproduto da transferência das fábricas do planeta para locais a milhares de quilômetros dos maiores mercados de consumo de seus produtos.


A Maersk tem presença enraizada na China, com mais de 20 mil funcionários no país. Ela opera terminais de contêineres em sete portos chineses, adquiriu 118 navios construídos na China, a um custo de US$ 3,5 bilhões, e controla duas fábricas que produzem contêineres no país.


A China também vem exercendo influência sobre o setor. As autoridades regulatórias chinesas recentemente bloquearam uma tentativa da Maersk e duas rivais europeias de formar uma parceria, afirmando que isso prejudicaria a concorrência. A Maersk recentemente propôs uma aliança menos ambiciosa com uma única rival, a Mediterranean Shipping Co.


As transações propostas representam uma admissão de que o volume de carga não está se recuperando tão rápido, e portanto as companhias de navegação precisam compartilhar custos e espaço de carga. Os navios tipicamente carregam carga plena da China à Europa mas viajam parcialmente vazios no percurso oposto. O transporte de cargas europeias para a Ásia cresceu em cerca de 30% nos últimos cinco anos, em parte devido à demanda crescente da classe média chinesa, que está em ascensão. Mas isso de maneira alguma basta para encher os contêineres.


Ao mesmo tempo, parte da produção industrial está sendo transferida para mais perto dos mercados consumidores, uma tendência que contribui para a desaceleração no crescimento do tráfego de contêineres. A China, além disso, está tentando estimular o crescimento das linhas nacionais de navegação. Este ano, a China Shipping Container Lines ordenou cinco navios com capacidade individual de 19 mil contêineres, cerca de mil a mais que a classe Triplo-E. Eles começarão a operar antes do fim do ano.


COMO ESTACIONAR UMA BALEIA


Era hora de estacionar o maior navio porta-contêineres do planeta. Diversas horas haviam passado desde a chegada do piloto por helicóptero, e um segundo piloto, Karsten Burckner, também havia chegado, vindo de um rebocador. Burckner e o capitão estavam fumando juntos na ponta oposta da ponte de comando – Burckner cigarros enrolados à mão, e o capitão Marlboros.


O trabalho de Burckner é ajudar a manobrar navios de grande porte diante do porto de Bremerhaven e depois conduzi-los aos seus lugares no atracadouro, onde imensos guindastes começariam a remover contêineres assim que a manobra terminasse. Mas rápida não se pode dizer que ela foi.


Os rebocadores empurravam o Mary, enquanto os dois motores do navio o propeliam em direções opostas. O navio começou um giro completo, lentamente. Aproximava-se aos poucos dos grandes colchões de borracha que revestem o cais. Mais além se via contêineres de aço, empilhados como dominós e se estendendo pela vasta área pavimentada do porto. Os contêineres são carregados por grandes veículos vermelhos conhecidos como “Straddle Carriers”, não muito mais largos que um caminhão mas altos o bastante para transportar três ou quatro contêineres.


O capitão e o piloto observavam a manobra pelo flanco do navio e conversavam usando walkie-talkies com marinheiros posicionados em terra. Os minutos passavam lentamente – 10, 20, 30. O Mary, se arrastando em velocidade de apenas um décimo de nó, começou a se aproximar do cais.


“Comparadas ao tamanho e ao peso imensos do navio, as placas de aço do casco são na realidade bem finas”, o capitão explicou. “Se manobrarmos em velocidade mais rápida que isso, corremos o risco de entortá-las.”


Ele sorriu. “E isso obviamente não cairia bem para ninguém”.


Burckner também foi capitão de um navio porta-contêineres -11 anos atrás. Mas teve de deixar o posto. “Fui forçado”, ele disse, fazendo uma pausa dramática. “Pela minha mulher”, completou, abrindo um sorriso. Isso é fato para muitos pilotos, que tendem a ser homens que trocam os meses de trabalho em alto mar pela vida caseira.


O navio que ele comandava tinha capacidade para 2.500 contêineres. “Na época, era considerado um navio grande”, explica Holmberg.


“Quando comecei, ninguém imaginava que um navio do tamanho deste viesse a ser construído”, disse Burckner. “Não faço ideia de onde essa expansão vai parar”, ele disse, contemplando o tamanho gigantesco do Mary. “Melhor perguntar à Maersk.”


Tradução de PAULO MIGLIACCI

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