Ao longo dos últimos anos, todo o corpo acadêmico e político brasileiro tem
tentado, em vão, preparar as bases para uma reforma tributária que garanta
competitividade para nossas empresas, equilíbrio fiscal para o federalismo e que
não comprometa a concorrência e a livre iniciativa, fatores fundamentais para um
desenvolvimento sustentável. A tributação não pode ser orientada por casuísmos.
Impõe-se sempre a adoção de um sistema coerente de tributos, mediante o emprego
de técnicas que afastem a discriminação, pelo favorecimento de certas empresas
ou atividades em detrimento de outras, e fortaleça o sentimento de justiça e de
equilíbrio.
E já que a nossa geração falhou em alcançar uma reforma tributária, pois não
fomos capazes de criar os melhores meios ou técnicas fiscais, que esta se faça
ao menos por setores da economia, como tem sido o exemplo de muitos países.
Mediante os chamados “estudos de setores”, a incidência tributária vê-se
compreendida e graduada conforme as situações específicas. Há tributos nos quais
esse tipo de estudo poderia ser muito útil, como é o caso do PIS e COFINS não
cumulativo.
A reforma que implicou a passagem do modelo cumulativo do PIS/COFINS (de
3,65%) para aquele de não cumulatividade (com alíquota global de 9,25%), ao
tempo da mudança, foi justificada unicamente pela atribuição de créditos quando
das aquisições de bens ou serviços, nos termos do artigo 3º das Leis 10.637/2002
e 10.833/2003 (regime geral), dentro outros dispositivos. O reconhecimento dos
créditos acumulados e a respectiva devolução aos partícipes da cadeia, portanto,
não é um “favor fiscal”, mas um direito constitucional, ao qual a União não pode
criar resistência ou usar de artifícios para impedir seu aproveitamento.
Em alguns casos, porém, a devolução direta (como crédito ordinário) não é
possível. É o que ocorre com mercadorias produzidas por pessoas físicas ou
cooperativas, cujas aquisições pelas indústrias e exportadores não geram
créditos. Para resolver esse problema, na cadeia de alguns produtos, como milho,
soja, café, leite, confere-se um “crédito presumido”, apurado conforme a
quantidade de intervenientes. Em vista dessas funções, seu emprego não pode
servir de meio discriminatório ou ser empregado sem atenção aos propósitos da
não cumulatividade. Há um caso que ilustra bem essa necessidade: as distorções
verificadas no setor de café.
Está para ser votado no Senado novo regime do PIS e COFINS (artigos 4º a 7º
da MP 545/2011), cujas consequências são muito graves, tanto para consumidores,
com aumento mínimo de preços na ordem de 3%, a agravar ainda mais a onda
inflacionária sobre alimentos, quanto para as exportações, que já amargou
redução de 25% em janeiro, além da redução de preços e de produção para os
produtores rurais. Este é o resultado da aplicação equivocada de critérios
jurídicos de tributação e orientados segundo interesses episódicos, sem uma
compreensão abrangente do setor.
O regime especial de crédito presumido surgiu, assim, para permitir uma
solução a essa dificuldade para as indústrias de produtos alimentícios de origem
vegetal e animal por meio do artigo 3, parágrafos 5º e 6º, da Lei 10.833/2003,
dispositivos que foram revogados pela Lei 10.925/2004, a qual dispôs acerca do
regime em questão em seu artigo 8º, cujo capute parágrafo primeiro ostentam a
seguinte redação:
“Artigo 8º As pessoas jurídicas, inclusive cooperativas, que produzam
mercadorias de origem animal ou vegetal, classificadas nos capítulos 2, 3,
exceto os produtos vivos desse capítulo, e 4, 8 a 12, 15, 16 e 23, e nos códigos
03.02, 03.03, 03.04, 03.05, 0504.00, 0701.90.00, 0702.00.00, 0706.10.00, 07.08,
0709.90, 07.10, 07.12 a 07.14, exceto os códigos 0713.33.19, 0713.33.29 e
0713.33.99, 1701.11.00, 1701.99.00, 1702.90.00, 18.01, 18.03, 1804.00.00,
1805.00.00, 20.09, 2101.11.10 e 2209.00.00, todos da NCM, destinadas à
alimentação humana ou animal, poderão deduzir da Contribuição para o PIS/Pasep e
da Cofins, devidas em cada período de apuração, crédito presumido, calculado
sobre o valor dos bens referidos no inciso II do caput do art. 3o das Leis nos
10.637, de 30 de dezembro de 2002, e 10.833, de 29 de dezembro de 2003,
adquiridos de pessoa física ou recebidos de cooperado pessoa física.(Redação
dada pela Lei nº 11.051, de 2004 / Vigência / Vide Lei nº12.058, de 2009 / Vide
Lei nº12.350, de 2010 ).
A finalidade do artigo 8º da Lei 10.925/2004 sempre foi a de garantir ao
adquirente o cumprimento do princípio constitucional da não cumulatividade e a
imunidade das exportações, ao assegurar o direito de exportar produtos sem
“acúmulo de créditos” de PIS/COFINS, ao permitir o aproveitamento dos créditos
acumulados ao longo da cadeia produtiva naquelas situações onde a técnica não
consegue atuar (compras de produtores pessoas físicas ou de cooperativas). E
tudo vinha funcionando perfeitamente.
A inteligência do regime de crédito presumido do PIS e da COFINS está em
permitir a exclusão dos acúmulos de tributação em cascata sobre todos os bens ou
serviços consumidos nas etapas de custos e somados sobre a circulação do produto
unicamente pela impossibilidade técnica da “tomada de crédito”, por não se
tratar (o vendedor da mercadoria), de pessoa jurídica. É mera decorrência da
técnica não cumulativa dos tributos indiretos.
No setor do café, esse mecanismo sempre funcionou muito bem, guardadas
algumas ressalvas. Trata-se de segmento de excessiva informalidade, o que já não
pode prosperar. Urge que sejam empregados mecanismos de controle das operações.
Para tanto, pode-se utilizar certificação digital (como EFD Pis/Cofins) ou notas
fiscais eletrônicas (SPED Fiscal e Contábil, NF eletrônica e aquivos xml), como
forma de evitar casos de sonegação, como já identificados no passado, a exemplo
da chamada “operação broca”. Inibir a informalidade e garantir o controle
sanitário das operações é um dever do Estado e que não pode ser prejudicado por
interesses cartoriais.
De qualquer modo, faltava o aprimoramento do crédito presumido do artigo 8º
da Lei 10.925/2004, o que deveria vir acompanhado dos seguintes instrumentos: 1)
possibilidade de compensação ou de devolução integral dos créditos acumulados,
inclusive os presumidos; 2) reconhecimento dos créditos presumidos nas
aquisições para industrialização e venda no mercado interno; 3) aplicação do
ressarcimento nas exportações por tradings e 4) formalização dos intervenientes
ao longo da cadeia.
Para esse propósito, ainda que de forma parcial, foram introduzidos os
artigos 5º e 6º da MP 545/2011. Deve-se celebrar o reconhecimento dos créditos
presumidos na industrialização no mercado interno e o direito ao ressarcimento.
Contudo, inusitadamente, como solução a duvidoso “equilíbrio” das inexistentes
perdas de arrecadação, galgaram a redução de 100% para 10% do crédito presumido
nas exportações, o que lhes serve para reduzir a capacidade competitiva das
principais indústrias de café do país e responsáveis por mais de 60% das suas
exportações.
Duas graves consequências imediatas decorrem dessa desnecessária
discriminação: (i) no mercado interno, o aumento de preço linear, combinado
entre as empresas do setor de café à base de 2,90%; e (ii) no mercado externo,
dificuldades de exportação (reduzidas em 25%), na medida em que os preços no
exterior não podem ser aumentados, por se tratar de cotação em bolsa
(commodities) e o câmbio não favorecer.
A proposta sustenta-se na pífia diferenciação entre “café verde” e aquelas
formas torrado e moído ou solúvel, estes, favorecidos com créditos presumidos de
80%. Em verdade, a diferenciação de percentuais do crédito presumido nas
exportações, entre 10% e 80%, respectivamente, só servirá para prejudicar a
exportação daquilo que é mais relevante para o Brasil (café verde).
Nada mais rudimentar, em termos tributários, mas também na técnica cafeeira,
do que a distinção entre esses tipos. O “café verde” não é o “grão” colhido do
pé de café e ensacado. Esse termo é adotado para o café que não foi torrado e
moído, o que não quer dizer que não tenha passado por uma industrialização. As
atividades de separar por densidade dos grãos, beneficiar, preparar e misturar
tipos de café (blend), são exemplos, o qual gera valor agregado similar ao do
“Café Torrado e Moído” ou do “Café Instantâneo”, apenas agregados de outros
insumos que os diferenciam, tais como embalagens, energia elétrica, dentre
outros.
O Brasil é o principal produtor mundial de “café verde”, saiu de 16% em 2001
para mais de 32% da produção mundial de café na atualidade, o que mostra um
crescimento de mais 100% a partir de 2002, quando entrou em vigor o regime não
cumulativo e do crédito presumido. Basta lembrar que o 2º e 3º lugar mundiais
representam apenas algo em torno de 13% e 11% da produção. Com a simples entrada
em vigor dessa medida, as exportações de café sofreram uma queda de 25,1%,
comparando-se com janeiro de 2011.
Para os fins de devolução do crédito acumulado de PIS e COFINS, sob a forma
de crédito presumido, é um engodo a diferenciação entre “café verde” e aqueles
ditos “processados”, na forma de torrados e moídos ou mesmo do café solúvel. Na
estrutura do mercado internacional de “café verde” persiste uma concorrência
imperfeita, pois a oferta mundial realiza-se por poucos países produtores
(Brasil, Vietnã, Colômbia, Indonésia e México), com concentração da demanda por
outros países, como Alemanha (20%), EUA (18%), Itália (11%) e Japão (9%), os
quais apresentam fortes resistências à entrada de café na forma processada.
Esses graves equívocos trarão consequências desastrosas para setor cafeeiro,
caso sejam aprovados os dispositivos na forma em que se encontram. Há, porém,
oportunidade para correção do rumo que se quer imprimir ao café: recuperar a
isonomia na exportação e assegurar a condição de “cesta básica” nas vendas no
mercado interno.
De fato, no mercado interno, a solução que não oneraria o consumidor com
aumento de preços ou impacto na inflação seria permitir inclusão do café no
regime da “cesta básica”, à semelhança do que temos para farinha, leite, trigo e
outros, todos com não incidência do PIS e da COFINS. Essa desoneração não traria
qualquer impacto à arrecadação, devido ao tratamento da suspensão dos tributos
já em vigor. A desoneração do café como produto da cesta básica seria uma forma
de garantir a redução da tributação sobre os mais pobres e, com isso, praticar
uma evidente justiça fiscal.
Seria profundamente temerário pretender, em período de crise econômica
mundial, como o atual, com câmbio valorizado, aumento inflacionário e crescente
ampliação do protecionismo de países importadores, pretender criar embaraço para
algo que se demonstra um êxito obtido com a política de devolução dos créditos
presumidos das contribuições ao PIS e COFINS, a título de pretensa substituição
das exportações pelo café processado (torrado e moído ou solúvel), cuja
participação econômica não chega sequer a 3% do volume exportado de “café
verde”.
O aperfeiçoamento do modelo atual de incidência do PIS/PASEP ou da COFINS
sobre as operações no mercado interno e na exportação do café poderia ser
equivalente ao que se passou com a carne, cítricos ou com a soja, sem
discriminação. O crédito presumido pode ser atribuído para as indústrias de
café, em todas as suas formas, no percentual de 80%, com retificação do
percentual de 10% no caso de exportação do “café verde” para aquele percentual
de 80%, nas exportações. Não há justificativa para a diferenciação criada, de
forma completamente aleatória.
Como consta do artigo 150, II (não discriminação tributária), é vedado
instituir tratamento desigual entre contribuintes que se encontrem em situação
equivalente. Ora, se a finalidade da norma é autorizar a exclusão dos “créditos
acumulados”, é necessário, adequado e razoável que tal norma vincule o crédito
presumido de forma idêntica, seja qual for o destino. Pessoas jurídicas que
exportem “café verde” (i) devem ter o mesmo tratamento dirigido às pessoas
jurídicas que exportam café torrado e moído e café instantâneo (ii), uma vez que
são iguais em face do referencial adotado – aquisição de produto em cuja cadeia
há acúmulo de créditos -, a justificar a concessão do crédito presumido, de modo
a permitir a observância da não cumulatividade e da devolução de créditos na
exportação, a atender o princípio do destino.
A concessão de crédito presumido de PIS/COFINS, porquanto correspondente a
instrumento que possibilita a realização da não cumulatividade e, em caso de
produtos destinados a exportação, da devolução da tributação incidente ao longo
da cadeia, a fim de se promover a desoneração constitucionalmente determinada,
encontra-se perfeitamente compatível com o regime do GATT e das decisões da OMC
vigentes, como sempre esteve no passado.
Em conclusão, a MP 545/2011 estabeleceu dois referenciais, em relação aos
quais deveria ser feito o juízo de igualdade. Um refere-se ao produto – “café
verde” – e outro à atividade (“elaboração dos produtos classificados nos códigos
0901.2 e 2101.1”) realizada pela pessoa jurídica que adquire o produto. A
isonomia entre os regimes corresponde à melhor forma para atender aos interesses
nacionais no presente setor. Diante disso, na falta de critério coerente de
diferenciação, além de discriminatória, a Medida Provisória 545/2011, ao reduzir
a 10% o crédito presumido na exportação do “café verde”, e outorgar os 80% para
o café processado, na forma de torrado e moído ou solúvel, promove grave quebra
da neutralidade tributária, tanto no plano interno quanto no mercado
internacional de café, como demonstrado.
Portanto, não há critério que justifique manter diferença de regime do
crédito presumido entre o chamado “café verde”, que passa por diversas etapas de
industrialização (i), daquele que se aplica para o cálculo do PIS/COFINS sobre
Venda de Café Torrado e Moído e Café Instantâneo destinado à exportação (ii),
assim como do café vendido no mercado interno (iii). Não restam dúvidas de que
odiscrimen relativo à atividade (café torrado e moído ante aquele do chamado
“café verde”; ou mesmo entre vendas para mercado interno e mercado externo) ou
aos demais produtos agrícolas (trigo, soja etc) não se justifica em face do
princípio da neutralidade concorrencial e da isonomia, haja vista o motivo
adotado para sua concessão.
Na ausência de justificativa para diferenciação do crédito presumido de
PIS/COFINS, conferida à aquisição de pessoas físicas ou cooperativas de pessoas
físicas, qualquer tratamento divergente nos percentuais esbarra em
inconstitucionalidade, ao afetar a isonomia tributária do artigo 150, II, da
Constituição, por não se tratar de benefício fiscal, mas de típico caso de
cumprimento do princípio de não cumulatividade daquelas contribuições, o que não
autoriza a diferença de percentuais do crédito presumido nas exportações, entre
10% e 80%. E isso sem falar dos prejuízos às regras e princípios que garantem a
livre iniciativa e concorrência.
Comprova-se, assim, como medidas tópicas, desprovidas da compreensão integral
do setor sobre o qual recaem seus efeitos, podem gerar efeitos danosos aos seus
partícipes, mas principalmente à economia nacional.
A exigência de uma reforma tributária consistente continua pendente. Por
isso, ainda que não seja mediante reforma constitucional ampla, que venha uma
reforma por análise de setores ou por conjuntos normativos bem marcados, como a
tributação da renda, do consumo ou dos serviços. Seguir com o modelo caótico e
assistemático que hoje predomina só servirá para impedir o crescimento da nossa
capacidade produtiva e inovadora, além de criar obstáculos à concorrência e à
melhoria nas remunerações dos empregos. E se queremos ser um país de classe
média, com erradicação da miséria, pleno emprego e melhoria global da qualidade
de vida da nossa população, urge que se verifique o fortalecimento das fontes de
produção de renda e a expansão da balança comercial, mediante o aprimoramento do
modelo tributário e financeiro.
A matéria é de Heleno Taveira Torres, publicada pela Revista Consultor
Jurídico.