O valor de cada gota
Em Cristalina (GO), a união entre tecnologia e barragens para reter a água das chuvas torna sustentável a irrigação, feita por quase 600 pivôs
É muito bom fazer chover”, garante o entusiasmado Audacir Minetto, gaúcho da cidade de Caiçara, com os olhos fixos na lavoura de trigo irrigada, no Cerrado de Goiás. Foi na mesma Cristalina, onde hoje se debruça sobre o cultivo de 346 hectares, que ele viu um pivô rodando pela primeira vez, no final de 1998. “Juro que me emocionei.” Nos idos da década de 1980, Minetto desembarcou no município com os três irmãos, dentre eles Luiz Walmor, do qual é sócio até hoje. Levaram um punhado de conhecimento técnico e uma vontade imensa de trabalhar naquele lugar promissor. Hoje, entre os plantios de batata, feijão, cebola e trigo, o agricultor mantém cinco pivôs – mas quer chegar a oito, com 550 hectares sob a água. O feijão é o carro-chefe, mas o trigo é a menina dos olhos. “No Sul, uma média normal de produtividade é de até 2 mil quilos por hectare. Nós vamos fechar aqui com 6 mil quilos e de qualidade superior”, compara.
Editora Globo
Maróstica produz o máximo com o mínimo de águas nos 50 mil hectares irrigados de Cristalina
Tanto potencial poderia ter ficado pelo caminho não fosse o reforço em tecnologia que Minetto buscou. Há pouco mais de oito anos, ele usava o bico da botina para cavoucar a terra e descobrir o nível de umidade do solo, na tentativa de saber o momento ideal para acionar os pivôs. Até que conheceu uma estação meteorológica criada pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM) que, instalada na propriedade, ajuda a determinar a quantidade de água que a planta necessita. Assim, quando inicia um plantio, o agricultor já entra no site do sistema e cadastra a área, o pivô, a cultura, o sistema de plantio, o espaçamento entre linhas e o número de plantas, para então receber recomendações diretamente dos técnicos da universidade, com base na análise de itens como temperatura, umidade do ar e velocidade do vento. “Agora, sei exatamente quanto e quando irrigar”, afirma.
A economia de água veio na esteira. No caso do feijão, costuma-se gastar em torno de 450 milímetros para conduzir uma safra. Com o auxílio da estação, Minetto conseguiu reduzir para 300 milímetros. “Isso nos dá uma economia de 33,3% com água, que, em um pivô de 100 hectares, pode gerar uma redução de gastos de quase R$ 10 mil”, avalia. O uso racional da água reduz ainda a incidência de doenças nas lavouras, a exemplo do mofo branco, que destrói a planta do feijão – já que a umidade excessiva ajuda na propagação do mal.
Minetto é símbolo de uma geração de agricultores que, vindos do Sul do país, em sua maioria, fincaram raízes em Cristalina e resolveram se transformar em guardiães da água. O estalo para essa questão veio no susto, é verdade. Com a elevada oferta (a precipitação anual é de 1,6 mil milímetros) e a grande demanda por esse recurso na agricultura da cidade, os produtores triscaram o papel de perdulários, mas o destino pregou-lhes uma peça. No princípio da década de 1990, alguns rios da região começaram a secar, caso do Pamplona. Muitos tiveram de estancar a captação de água no momento em que as lavouras ainda estavam em desenvolvimento – e ainda foram autuados por órgãos ambientais pela atitude destrambelhada. Assustados, os agricultores decidiram custear um estudo hidrológico. As pesquisas mostraram que, com a construção de barragens para reter a água das chuvas, seria possível manter a sustentabilidade da irrigação. O esquema é simples: pequenas represas passaram a ser erguidas à beira dos rios (são mais de 250 na região) e feitas com saída de fundo (o chamado “desanerador”, que é a passagem que permite ao curso d’água continuar correndo e abastecendo a vizinhança). O que sobra na barragem é apenas o excesso da chuva, que antes correria em direção ao mar. Assim, o mesmo rio que secou com três ou quatro pivôs, hoje, chega a ter 30 e abundância hídrica. “Com a mudança na captação, conseguimos multiplicar em até três vezes a área irrigada na última década”, afirma Alécio Maróstica, superintendente de irrigação de Goiás.
Atualmente, existem em torno de 600 pivôs centrais em Cristalina, o que torna o município o maior parque de irrigação com esses equipamentos na América Latina. Por ideia de Maróstica, há seis anos, todas as propriedades de Cristalina foram georreferenciadas e criou-se um mapa, que atestou a existência de 132 irrigantes, com 32 mil hectares irrigados. À época, o Produto Interno Bruto (PIB) do município era de R$ 565 milhões, o maior do segmento agropecuário em Goiás. Hoje, esse montante já ultrapassa R$ 1 bilhão (sendo que os atuais 50 mil hectares irrigados produzem um PIB equivalente aos 300 mil hectares de sequeiro que a cidade possui). Calcula-se que o custo para irrigar um hectare seja de R$ 6 mil a R$ 7 mil, já com a instalação da barragem e do pivô.
O custo é alto, mas o retorno é garantido: há 34 culturas em campo e o município é o maior produtor de batata, alho, cebola, trigo irrigado, milho doce e tomate do Brasil. Essa diversificação só foi possível graças ao acesso à água; já o clima é muito definido: chove durante seis meses e nos seis meses restantes a seca dá o tom. A Fazendas Figueiredo foi uma das pioneiras na irrigação (o que permitiu manter a produção ao longo do ano inteiro) e também uma das primeiras a atentar para o uso racional da água. E veio do cafezal a grande sacada: diferentemente do modelo convencional, que molha a área toda, a fazenda começou a utilizar o sistema de lepas, uma adaptação que aproxima o aspersor da planta e faz uma espécie de “chuveiro” sobre cada pé. “Temos uma economia de água de 20% a 30% com esse método, que irriga de maneira localizada e poupa das poças as ruas entre as linhas de plantio. Economizamos até em utilização de maquinário, já que a infestação de ervas daninhas acaba reduzida sem o despejo de água em áreas não desejadas”, afirma Marcone de Castro Cardoso, engenheiro agrônomo da propriedade. Dos 750 hectares com café que o grupo mantém na região, 500 hectares – o equivalente a 3 milhões de pés – estão sob as lepas. E por que não o gotejamento, que em tese seria ainda mais econômico no uso de água? “Esse sistema não funciona bem em nossa realidade. A planta fica de 60 a 70 dias sem água após a colheita, então, para retirá-la do estresse hídrico e encher a caixa do solo para sincronizar a florada, tendo assim uma colheita mais uniforme, é preciso uma carga maior”, explica Cardoso.
Na avaliação de Maróstica, também não convém irrigar produtos como alho, cebola ou batata nem por gotejamento nem por microaspersão. “São culturas que têm pouco espaçamento, então, não compensa a irrigação direcionada”, diz. Por isso é que, nesses casos, o ideal é maximizar a produtividade e minimizar a demanda hídrica por lavoura. “Estamos em busca de saber a quantidade mínima de água para colher o máximo de alimento por hectare”, afirma o superintendente.
A preocupação com o desempenho por cultura motivou a Goiás Verde a criar um núcleo de pesquisa. A empresa detém 5 mil hectares irrigados, com base em 40 barragens, e, por estar localizada em uma região bem diferente de onde é testada grande parte das tecnologias de irrigação, sentiu a necessidade de fazer um ajuste fino. “Nosso objetivo não é fazer pesquisa científica, mas de validação, para sermos mais eficientes não apenas no uso da água, mas também dos insumos, porque esses fatores não atuam de maneira isolada”, afirma Carmo Spies, gerente agrícola da Goiás Verde. Os testes estão sendo conduzidos em algodão, feijão, soja, trigo, milho comercial e doce, ervilha, batata, beterraba, cenoura, tomate e crotalária, em uma área de 45 hectares (metade de um pivô), e podem durar dois anos.
Estima-se que Cristalina atinja 150 mil hectares irrigados em até 20 anos, uma expansão que pode vir também pelas mãos de produtores de menor porte. “Hoje, conseguir uma outorga é um calvário. Não dá para fazer exigências tão grandes que o pequeno não possa cumprir, mas temos de organizá-lo para que ele seja responsável por esse uso”, afirma Maróstica. O governo federal está dando um impulso importante, ao manifestar interesse em construir as barragens – até então custeadas pelos próprios produtores. A primeira será levantada em Campo Alegre, município vizinho a Cristalina, com recursos do Plano de Aceleração do Crescimento (PAC). “O governo está atento porque sabe que a cada vez que os agricultores irrigam e produzem mais que em sequeiro deixam de desmatar”, afirma o superintendente. O Sindicato Rural de Cristalina também quer criar uma associação de irrigantes estadual, que faria vigilância sobre as barragens e serviria como um fórum para discutir outras questões ligadas à atividade – a exemplo da possível cobrança pelo uso da água, que pode ter início no ano que vem. Hoje, o estado já fala em transferir para o comitê de bacia a outorga da quantidade de água que cada um tem. “O cálculo de um hidrólogo indicará quanto a propriedade produz de água e esse será o limite de utilização do recurso pelo agricultor”, diz Maróstica.
De acordo com Jorge Antonini, pesquisador da Embrapa Cerrados, os dispêndios com irrigação representam de 15% a 25% do custo total de produção, em média. “Mas, infelizmente, a maioria dos agricultores do país só se preocupa com os gastos quando a margem fica pequena e, hoje, a produção irrigada tem boa rentabilidade”, afirma. Para ele, o produtor é consciente de que existem formas de manejo racionais de água, entretanto, muitos ainda não se submetem à instalação de equipamentos adequados, a exemplo de sondas e tensiômetros, que permitem avaliar a demanda de evapotranspiração e a quantidade de água retida no solo. “Não é uma questão financeira, mas cultural, porque tudo isso é relativamente barato e fácil de fazer”, conclui Antonini. Que Cristalina, a promissora capital da irrigação no Brasil, possa servir de inspiração.