Carta Capital – Carente de estatísticas confiáveis e à espera de regulamentação, a agroecologia ganha espaço no Brasil. Enquanto isso, campanhas incentivam consumidores a rejeitar a monocultura da soja O Brasil é o vice-campeão mundial em área de produção orgânica, com 6,5 milhões de hectares. A sua frente, só a Austrália. Anunciada em feve reiro pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento [Mapa], a informação ainda deixa perplexo quem conhece os dados de 2003, quando o País ocupava o 34° posto do ranking, com pouco mais de 810 mil hectares.
O motivo do salto foi a decisão de incluir 5,7 milhões de hectares do extrativismo sustentável, onde há açaí, látex e outros produtos da floresta. Isto ajudou, segundo o ministério, a dar visibilidade para a agroecologia, que tem no mercado externo o principal alvo.
Seriam números sérios, se todas as áreas extrativistas fossem auditadas, critica Alexandre Harkaly, diretor-executivo do Instituto Biodinâmico [IBD], a maior certificadora de produtos orgânicos no País. Dos 803 mil hectares orgânicos no Brasil, estimativa da Federação Internacional dos Movimentos de Agricultura Orgânica [Ifoam], que ele cita, 210 mil hectares são certificados pelo IBD, 60% dos quais, áreas de agricultura.
‘Tivemos um boom nas certificações a partir de 1998, quando o Mal da Vaca Louca se alastrou na Europa’, lembra Harkaly. A ausência de agrotóxicos e adubos químicos, aliada à produção socialmente justa, fez dos orgânicos produtos cobiçados por consumidores conscientes dos EUA, Europa e Japão, que se dispõem a pagar mais por eles. Segundo a Ifoam, em 2004, da receita de US$ 200 milhões gerada pelos orgânicos no País, 60% referem-se a exportações. Entre os certificados pelo IBD, essa porcentagem sobe para 80%.
A produção agroecológica é subestimada, contrapõe Jean Pierre Medaets, assessor técnico da Secretaria de Agricultura Familiar do Ministério de Desenvolvimento Agrário [MDA]. A contabilidade oficial, diz ele, inclui apenas os projetos certificados, que reúnem produtores individuais ou grupos. Mas haveria um grande número, ignorado pelas estatísticas, de produtores não certificados que vendem a colheita localmente, em geral nos cinturões verdes de metrópoles. Além deles, uma enorme parcela de agricultores familiares raramente usa agroquímicos. Mas não conhece normas da sustentabilidade.
O tamanho das propriedades também é desconhecido, comenta Maria Cristina Prata Neves, pesquisadora da Embrapa Agroecologia [Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária]. Um projeto certificado pode ter dezenas de pequenos agricultores ou centenas de coletoras de castanha. Com dados coletados pelo BNDES, Maria Cristina calculou que o tamanho médio das unidades de produção orgânica seria de 44 hectares, menor que a média de 73 hectares das unidades convencionais. ‘No entanto, o tamanho é maior que as de base familiar voltadas à horticultura, segmento que mais tem aderido ao processo orgânico. O número reflete as áreas dedicadas aos carros-chefe dos orgânicos no Brasil, que são o açúcar, a soja, o café e a carne’; explica a pesquisadora.
O mercado dos orgânicos está em construção, interpreta Medaets. ‘Para os consumidores, a demanda é maior que a oferta e o preço, irregular. Entre produtores, mais de 70% são agricultores familiares, que nem sempre sabem colocar a produção no mercado. Neste ano, o MDA destinou cerca de R$ 40 milhões em assistência técnica, pesquisa e canais de comercialização para essa área’.
Para Renato Linhares de Assis, também pesquisador da Embrapa Agrobiologia, muitos agricultores pensam ser mais fácil atender ao mercado com o sistema convencional, sustentado pela monocultura e uso intensivo de agroquímicos. Mas os impactos ambientais podem ser desastrosos. No doutorado sobre agroecologia que defendeu na Universidade de Campinas [Unicamp], ele comparou produtores filiados à Associação de Cafeicultura Orgânica do Brasil e horticultores ligados às associações de Agricultura Orgânica e Horta e Arte [SP] aos pequenos agricultores não certificados, apoiados pela Assessoria e Projetos em Agricultura Alternativa [AS-PTA] no Paraná.
Mais que a cultura escolhida, a diferença fica para o porte do negócio, diz ele. A agroecologia tem práticas menos intensivas no uso de capital e mais intensivas no uso de mão-de-obra. Ponto a favor da agricultura familiar. Para grandes produtores, o processo de conversão é investimento de risco. A terra viciada com agroquímicos pode levar três anos para ser descontaminada. E o custo da mão-de-obra pesa. Outra surpresa: os piores e os melhores ganhos aconteceram na agricultura convencional. Entre orgânicos, houve estabilidade, com padrão de renda médio.
Agroecologia é nicho de mercado. Mas já influi em sistemas convencionais para minimizar certos impactos ambientais, afirma Ademar Romeiro, presidente da Associação Brasileira de Economia Ecológica. Método de preparo do solo sem aração, que reduz a erosão em países tropicais, o plantio direto já é aplicado em 14 milhões de hectares de cultivos convencionais. ‘Rapidamente ele chegará a 100% da produção de grãos. A perda de solo pode cair para 3 toneladas por hectare, bem menos que a taxa admitida nesta cultura, de 20 t/ha’, prevê.
Outro doutorado, do agrônomo Manoel Baltasar Costa, hoje na Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da USP em Piracicaba [SP], avaliou quatro décadas de agricultura em 25 municípios da região metropolitana de Curitiba. ‘O agricultor foi o mais prejudicado. Em 40 anos, todos os preços agrícolas caíram. Em 2002, a cebola valia 15% do valor pago em 1975. Mas os insuetos agrícolas encareceram’.
Ele observou 32 sistemas agrícolas, orgânicos ou nao, até quanto à sustentabilidade energética, que compara a energia gerada pelo alimento produzido com o gasto energético no processo produtivo, o que inclui produção e transporte de insumos externos, como adubo. Só 30% das propriedades revelaram padrões aceitáveis de sustentabilidade. O saldo negativo surgiu tanto na agricultura convencional como em parte dos sistemas orgânicos, em que a única troca real foi de agroquímicos por insuetos orgânicos. ‘E menos impactante, mas não basta’, pondera Baltasar.
Na busca de alternativas, a Rede Ecovida espalhou-se por 170 municípios do sul brasileiro. Além de 2,4 mil famílias de agricultores reunidas em 270 organizações, participam ONGs, cooperativas de consumidores, pequenas agroindústrias e comercializadoras. Um dos temas é a certificação participativa. ‘Agricultores familiares têm dificuldade de pagar pelo alto custo da certificação externa’; opina Paulo Mayer, coordenador do conselho de certificação. Já existem, no País, 34 certificadoras para agricultura orgânica.
São os agricultores que definem, com representantes de organizações locais e consumidores, melhorias que cada produtor deve introduzir, para obter o Selo Ecovida. O olhar externo é das comissões de ética, criadas nos 21 núcleos regionais. O processo termina com a subscrição de um compromisso coletivo.
Em setembro, a proposta de regulamentação da Lei de Agricultura Orgânica [Lei 10.831/03] deve entrar em consulta pública. Ela prevê três formas de comercialização, avisa Fabiana Nobre, fiscal da Coordenação de Agroecologia do Ministério da Agricultura. Localmente, a venda direta embasada na relação de confiança entre produtor e consumidor [com respaldo de uma organização regional]. A certificação participativa, validada por associações de produtores e consumidores, é a segunda opção. O outro ca minho é a concessão feita por certificadoras externas, que poderá se tornar a única via para quem quiser exportar.
Na outra ponta, a do mercado europeu, a notícia do desmatamento de 26,1 mil quilômetros quadrados na Amazônia, entre agosto de 2003 e agosto de 2004 [segunda maior taxa desde 1994], já inspira campanhas pela busca de informações sobre a origem de ingredientes, antes de comprar o produto. Sem entrar no mérito do sistema de plantio, convencional ou orgânico, a idéia é mostrar que dá para rejeitar produtos originados de áreas nativas, devastadas para o plantio, na Amazônia ou no Cerrado.
A soja é o mais importante produto de nossa balança comercial. Em 2004, as exportações superaram os US$ 10 bilhões. Maior compradora européia, a Holanda absorve 22% da soja exportada pelo Brasil. É onde se formou a Articulação Soja Holanda, para conscientizar consumidores e produtores.
A Articulação Soja Brasil, que reúne dezenas de ONGs e movimentos sociais brasileiros, propôs critérios de compra social e ecologicamente justos. ‘Nossa proposta é que só adquiram soja plantada em áreas desmatadas antes de dezembro de 2003 ou, no caso da Amazônia, outubro de 1999. Não deve ser soja transgênica. E o cultivo deve estar em situação legal, por exemplo, não explorar trabalho escravo’, cita Mauricio Galinkin, do Centro Brasileiro de Referência e Apoio Cultural [Cebrac], que coordena o coletivo.
No estudo A Teia da Soja, do Cebrac, que está em fase de conclusão, revela-se que, dos 21,7 milhões de hectares plantados com soja na safra 2003/2004, cerca de 60% estavam no Cerrado. Cada milhão de hectares do Cerrado emprega cerca de mil trabalhadores diretos, entre fixos e temporários, muito menos que na agricultura familiar, ‘Também calculamos que 71,3% da soja brasileira é exportada, in natura, processada ou incorporada na carne de animais’, diz Galinkin.
‘Soja responsável’ é o termo preferido de uma terceira corrente, que mobiliza a cadeia produtiva do setor. O maior encontro sobre o tema, em março, foi organizado por um grupo diversificado: ONG WWF, Grupo Maggi [maior produtor individual de soja no País], Unilever, rede varejista suíça Coop, Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar – Região Sul [Fetraf-Sul] e a organização católica holandesa Cordaid. Na época ainda não havia sido publicado um dado alarmante: 48,1% da taxa de desmatamento entre 2003 e 2004 foi no Mato Grosso, Estado governado por Blairo Maggi.
‘Trabalhamos para estimular o diálogo entre os players deste mercado’, informa Ivan Kruglianskas, coordenador do programa Agricultura e Meio Ambiente do WWF-Brasil. Hoje, a soja está em uma infinidade de alimentos industrializados, e outras ONGs têm campanhas contra transgênicos. ‘O WWF decidiu se concentrar em estratégias socioambientais para proteger os recursos naturais.’
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