31 de Outubro de 2009 – 13h06 – Última modificação em 31 de Outubro de 2009 – 13h34
“Temos uma terceira escravidão no Brasil”, diz especialista em relações de trabalho
Gilberto Costa
Enviado Especial*
Caxambu (MG) – O sociólogo e professor emérito da Universidade de São Paulo (USP), José de Souza Martins, é considerado um dos intelectuais brasileiros mais respeitados. De origem humilde, foi operário aos 11 anos de idade e formou-se em Ciências Sociais em 1964, pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Sua formação teve influência de professores como Florestan Fernandes, Otávio Ianni e Fernando Henrique Cardoso.
Quando começou a pesquisar as questões agrárias e do trabalho, criou uma “sociologia da vida cotidiana”, que ajuda a entender a sociedade pelo que está à margem. Seu conhecimento ajudou na formação do Grupo Executivo de Repressão ao Trabalho Escravo, durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, e o levou a ser, durante dez anos, membro da Junta de Curadores do Fundo Voluntário da Organização das Nações Unidas (ONU) contra as Formas Contemporâneas de Escravidão.
Martins cativa o interesse pela investigação social sobre os excluídos até em seu hobby, a fotografia. Sobre o assunto, escreveu o livro A Sociologia da Fotografia e da Imagem. Durante o 33º Encontro Anual da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Ciências Sociais (Anpocs), que terminou nesta quinta-feira (29), em Caxambu (MG), José de Souza Martins concedeu a seguinte entrevista à Agência Brasil.
Agência Brasil – No seu hobby de fotógrafo o senhor tem registrado o fechamento de fábricas em São Paulo. Qual a explicação sociológica para esse fenômeno?
José de Souza Martins – Essa é uma visão impressionista minha, porque andei em algumas fábricas que fotografei e em outras. Há nos antigos bairros operários de São Paulo e no subúrbio uma clara e extensa desativação de fábricas. Os fatores são vários e combinados. A supervalorização dos terrenos torna aquela fábrica antieconômica. Se o dono da terra agrega no preço do terreno o capital que ele mobilizou para produzir, acaba sendo mais interessante para ele fechar a fábrica, vender tudo o que tem, transformar em ferro-velho (foi o que eu documentei em foto), e vender o terreno nu para construir condomínios, prédios, supermercados, etc. Só na área em que eu nasci, em volta da minha casa, três grandes fábricas foram fechadas nesses últimos 20 anos. Além da supervalorização da terra, podemos acrescentar outras coisas: algumas fábricas tornaram-se obsoletas, não têm mais sentido, o produto que fabricavam não interessa mais. Um exemplo: ao lado da Estação de Santo André havia a fábrica Kowarick, da avó do Lúcio Kowarick, professor de Ciência Política na USP. Ela fechou porque era produtora de casimira [tecido]. Ninguém mais faz terno de casimira, que vai lã no meio. Estamos em um país tropical, a casimira é de uma época em que os brasileiros queriam se vestir como os europeus, não importando a temperatura.
Abr – Também há o deslocamento da produção, não?
Souza Martins – Outro fator que houve, especificamente na região do ABC, foi que o adensamento de trabalhadores fortaleceu muito a classe operária. O fato de ter uma fábrica ao lado da outra, quando desencadeia uma greve a possibilidade de comunicação, especialmente se forem do mesmo ramo, é rapidíssima. Eu acho que houve uma estratégia da indústria no sentido de dispersar as fábricas para o interior, lugares onde não há tradição de lutas operárias. Isso é uma técnica social, é uma forma de esvaziar os sindicatos. Pode ser até uma forma de modernizar, de sair da greve, que rapidamente pelo cochicho se difunde, e ir para um padrão de mobilização que envolve mais negociação.
Abr – Em sua apresentação, durante o encontro da Anpocs, o senhor também chamou a atenção para o processo de “menos-valia”, de desacumulação de capital. O que é isso?
Souza Martins – A menos-valia é outro lado da questão. A gente tende a pensar o capital como se fosse um ser imortal, quer dizer, o empresário que o personifica nunca vai perder o que tem. Há alguns anos a revista Veja publicou uma capa muito interessante: havia uma fotografia de 1929 com a primeira diretoria da Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo]. Todos os grandes nomes da história da industrialização de São Paulo estão lá: Roberto Simonsen, Francisco Matarazzo, etc. Aí a reportagem pergunta: “quantas famílias desses empresários ainda mantém a indústria?”. A resposta: “só uma”. Eles faliram, perderam tudo. Os familiares não conseguíram tocar o negócio, não demonstram competência empresarial, o dinamismo que dizem que devem ter. Quer dizer, o capital era muito personalizado e se reproduzia em condições muito particulares. Então também tem isso: uma cultura empresarial ainda com pouca solidez.
Abr – Há muita idealização sobre esse processo inicial de industrialização brasileiro. O senhor já demonstrou que ele não foi exatamente ético e legal.
Souza Martins – Em nenhum lugar do mundo esse processo foi limpo. Algum tipo de lesão ao direito sempre aconteceu. Eu sempre me lembro de uma placa fixada ao lado da porta do Barclays Bank, em Cambridge [na Inglaterra] que dizia algo como: o fundador desse banco [1690] tinha como lema “o que vocês chamam de corrupção, eu chamo de relações de interesse”. Os empresários não questionavam moralmente o negócio. Houve muita coisa desse tipo no Brasil, negócio com o governo, etc. Você pega a história da industrialização no país no final do século 19 e no começo do século passado, sempre há alguma coisa estranha que as pessoas levantavam suspeita. Hoje há mais controle, naquela época não havia nenhum. Se pensarmos no período Vargas, quanta licenciosidade não havia no Estado brasileiro, quanto não se facilitou a vida desses empresários com grandes empréstimos a juros subsidiados, às vezes considerados escandalosos.
Abr – Além dessa lesão ao direito, a industrialização e outras atividades econômicas no Brasil também estão assentadas em processos de grande exploração da mão de obra e de destruição ambiental.
Souza Martins – Isso vem desde o começo. Grande parte da chamada “acumulação primitiva” ocorreu com a escravidão. Essa história de que o capitalismo brasileiro esperou o fim da escravidão, isso é teórico. Na verdade, a grande acumulação se deu na escravidão. No caso do Sudeste, foi no café mesmo. O trabalho livre chegou aqui no limite da história da escravidão, enquanto houve essa possibilidade eles seguraram. Introduziram trabalho livre porque não havia reposição com a cessação do tráfico negreiro e o preço do escravo começou a subir a ponto de virar uma mão de obra antieconômica. Depois, eles reintroduziram o trabalho escravo com outra cara, que é o colonato, sistema em que trabalhador produzia a sua própria comida e praticamente não recebia salário. Dizer que acabou a escravidão e começou o trabalho assalariado não é verdade.
Abr – Uma forma assemelhada do que hoje chamamos de trabalho análogo à escravidão?
Souza Martins – Que não é análogo. Nós temos uma terceira escravidão no Brasil. Há um sistema razoavelmente eficiente no governo federal de combate à escravidão, mas só razoavelmente eficiente, porque não consegue acabar com a escravidão. Quer dizer, ela sai daqui e aparece ali. A nossa economia, diferente da economia de modelo, da literatura teórica, histórica e econômica, é uma economia dependente da acumulação primitiva. Ou seja, tem o lucro normal do capital mais o lucro extraordinário da acumulação primitiva, que depreda o ambiente, depreda a mão de obra, rebaixa os custos por meios violentos. Enfim, é uma economia muito dependente de formas primitivas de extração da riqueza.
Abr – Essas atividades não são periféricas na nossa economia?
Souza Martins – Eu estudei muito isso, não é periferia. Se você pensar a economia em grupos econômicos, articulados em rede, você vai ver que todas as grandes empresas têm o seu centro e a sua periferia. E na sua periferia, pratica trabalho escravo. Isso vai da indústria à agricultura. Eu me lembro do caso emblemático da fazenda Vale do Rio Cristalino, no sul do Pará, que era da Volkswagen e onde havia trabalho escravo. No fim da ditadura militar [1964-1985], uma comissão de deputados recebeu uma denúncia de que havia exploração de trabalho escravo na produção de carne. A fazenda tinha o equipamento mais moderno para abater, frigorificar e transportar essa carne para a Alemanha, que ia de avião e chegava lá no dia seguinte, como carne fresca. O trabalho de derrubar a mata, plantar o pasto, o trabalho bestial era trabalho escravo, a chamada “peonagem”, escravidão por dívida. Cada vaca da Volkswagen tinha um chip implantado e a saúde do rebanho era controlada por computador, via satélite, na fábrica de São Bernardo.
Abr – De um lado a modernidade da tecnologia e de outro lado o passado no trabalho precário.
Souza Martins – Essa coisa da sociologia brasileira, de separar o tradicional e o moderno, está errada. Os dois estão juntos, não se separam. Você encontra isso permanentemente. Por isso, tivemos grande acumulação de capital e até industrialização na escravidão. Isso não foi anômalo. As duas coisas estavam juntas no mesmo sistema de produção de riqueza. A mesma coisa continua acontecendo até hoje.
Abr – Mas isso não tem grande visibilidade, não?
Souza Martins – A sociedade não vê porque ela não acredita. Nós temos uma cultura escolar de bestificação das pessoas. “Acabou a escravidão no dia 13 de maio de 1888”, esta é uma historiografia idiota! Não analisa os processos. Não salienta que tivemos duas escravidões no Brasil e temos agora uma terceira. Tivemos então: a escravidão indígena, a escravidão negra e depois a escravidão da peonagem, com radiantes em várias partes do Brasil. Se a escola educasse melhor para as pessoas enxergarem a história como ela é, as pessoas seriam mais sensíveis. Essa informação sobre a terceira escravidão está sendo publicada todo o tempo, mas as pessoas não enxergam. É uma deturpação cultural derivada da matriz de entendimento das coisas.
* O repórter viajou a convite da Anpocs
Edição: Andréa Quintiere